O vazio não existe. Desde o início da existência da
humanidade, o homem acreditou que a sua estadia terrena era ditada por
correntes e influências espirituais que penetravam a sua vida individual e
coletiva, o seu modus vivendi, seja
este físico, psíquico ou divino. Mesmo o homem moderno, pese o seu intenso
‘realismo’ e de desdenhar o homem tradicional que acreditava no sobrenatural,
crê e vive sob a influência de mitos e correntes psíquicas que ultrapassam a
sua existência individual e definem os seus pensamentos e atitudes. E não
falamos aqui somente dos nossos contemporâneos que se afirmam religiosos, pois
basta fazer referência aos dogmas profanos atuais como o cientismo ou o
progressismo, por ora reinantes, para perceber que – consciente ou inconscientemente
– as ideias chaves de uma época não são aleatórias e obedecem a uma corrente
psíquica que impregna a mentalidade dos coevos. Tomando o exemplo do mito
evolucionista hoje tão predominante, um pouco de reflexão sob o seu modo de
implementação na menta coletiva permite concluir que tal paradigma de
entendimento não foi implementado por via da reflexão racional efetuada por
mentes humanas individuais, ainda mais sabendo-se que tal conceção foi sempre
estranha à grande maioria da humanidade terrestre até há poucos séculos atrás,
incluindo às próprias elites governativas e educacionais anteriores.
Portanto, concebemos a história humana como que
saturada por diversas correntes supra-humanas que a cada momento da existência
permeiam as mentes dos seres que habitam a Terra. E se de facto uma corrente
tiver uma maior preponderância num dado momento ou latitude, tal não significa
que outras de sentidos opostos - ou inclusive com o mesmo sentido mas de
direção mais extremada – não existam, tão só que apenas subsistem em estados
mais latentes. Para exercerem efeito sobre a humanidade, não dependem somente
delas mesmas, mas da aptidão – melhor diríamos, da disposição – dos seres
humanos para as receberem e as potenciarem. E se concordamos que a maioria – a
esmagadora maioria – da humanidade é agente passivo da história, existe
necessariamente elites de homens, que, por ações e omissões, funcionam como
conduto entre as forças sobre-humanas que lhes são afins e a Terra, veiculando
aquelas e influenciando, assim, indiretamente, as atitudes mentais da época. E
se uma corrente de pensamento efetua maior influência numa dada época do que
noutra, tal se deve tanto a uma diminuição das conexões estabelecidas pelos
representantes terrestres da que era anteriormente a predominante, como a uma
correspondente intensificação da ativação de correntes de orientação distinta por
parte de seres que as desejam atiçar para assim influenciarem conjuntos de
populações mais ou menos alargados que se encontram sob a sua ‘alçada’.
Não querendo soar demasiado ‘esotérico’ nem assustar
os nossos leitores ‘pragmáticos’, apenas gostaríamos de realçar na nossa
introdução ao tema deste ensaio que, de facto, a todas as etapas da humanidade
correspondem ideias-chave que determinam os respetivos comportamentos, como se
cada época fosse dominada por um - à falta de melhor termo – espírito
preponderante.
Se existe um espírito que domina a época atual, tal é
o espírito burguês. Avisamos que tal nome não é de modo algum perfeito e contém
falhas, e inclusive poderíamos adotar outras designações, inclusivamente com
conotações religiosas, mas parece-nos que a designação escolhida encaixa na
perfeição ao período histórico moderno, que vai do séc. XVI até aos nossos dias
e que acentua o seu caráter particular numa maior corrente subversiva de
duração infinitamente maior – a qual, se adotarmos uma perspetiva religiosa sob
o mesmo tema, também se pode denominar por satânica.
O espírito burguês como força predominante no mundo
Ocidental surgiu com toda a sua pujança durante o Renascentismo europeu,
especialmente nas regiões de Inglaterra e da Europa Central e do Norte, que
foram as primeiras que assistiram à ascensão do chamado Terceiro Estado às
rédeas do poder político e cultural, formalizada politicamente pela Revolução
Francesa de 1789.
Esta classe de seres, que até então viam a sua
influência na sociedade limitada pelas antigas classes dominantes, deixou a
partir desse momento de encontrar freio na sua usurpação dos aparelhos
culturais, sociais, políticos, económicos, administrativos e religiosos. A tal
usurpação muito contribuiu o surgimento da heresia do Luteranismo, que assentou
de feição nestas mentes individualistas e economicistas que sentiam-se
destinadas para comandar comunidades de homens onde a finança, o comércio e o
mercantilismo já eram os valores supremos. Com o triunfo de Lutero e o
reconhecimento do novo evangelho pelos poderes de então, as antigas
instituições nobiliárquicas e clericais perderam a sua autoridade e o caráter
individualista da sociedade acentuou-se, passando-se a enfatizar a busca
terrena da felicidade individual, que na ótica burguesa correspondia
fundamentalmente ao ato produtivo e mercantil com o intuito da criação de lucro
e da acumulação de riqueza.
Procuremos então analisar a mentalidade da nossa época,
encapsulada pelas características do seu arquétipo - o burguês.
O burguês tem como principal função da sua estadia
terrestre, como é sabido, enriquecer, o mais que pode e consegue. Para ele, a
consecução da riqueza terrena é fundamental como objetivo de vida e a ele vai
devotar a maioria das suas forças e energias. O dinheiro, consequência visível
e a medida deste sucesso, é o barómetro que lhe permite distinguir-se dos
restantes seres humanos, e portanto procura-o tanto pelo reconhecimento do seu
esforço e habilidade, como para usá-lo de novo como instrumento de
multiplicação do mesmo, seja em investimento em capitais produtivos, seja para
influenciar decisões favoráveis nesse desiderato. Considerações de inspiração
divina e religiosa são extremamente raras nesta classe de seres, e se as há,
coadunam-se e subordinam-se sempre ao exercício do seu mister comercial ou
mercantil – que é a sua imagem de marca adquirida por via hereditária ou por
uma ambição pessoal acentuada. Todas as suas relações sociais e modos de
comportamento são guiados com este fim egoísta. Mesmo quando o bem comum é
considerado – entendido por ele num sentido puramente materialista –
subordina-se na esmagadora maioria dos casos à consecução da sua felicidade
terrena.
O burguês não pratica a atividade pela atividade em
si, mas sim pelo fim que esta lhe permite alcançar: acumulação de riqueza, que
por sua vez granjeará maior acumulação de riqueza. Seja qual for a atividade
(comercial, financeira, industrial ou agrícola), o burguês nunca a vê como fim
mas sempre como meio. Ao contrário das classes nobres e clericais cujo fim da
sua atividade era a atividade em si (guerra, administração, ascetismo,
estabelecimento dos ritos, etc.), o burguês, como o escravo, visa o trabalho
para obter um benefício material, que no limite se resume à mera sobrevivência
terrena. Tudo o que é espiritual, cultural e social, é acessório à sua função
essencial.
Esta perspetiva de vida cria uma visão maniqueísta do
mundo guiada pelos interesses privados, em que imperam os instintos de
sobrevivência e a competição por recursos limitados onde os outros seres que
pertencem à sua comunidade são: ou potenciais aliados seus - sejam sócios de
negócio, fornecedores ou clientes - ou inimigos - competidores comerciais ou
representantes de frentes e de correntes ideológicas que podem criar barreiras
á sua atividade mercantil e financeira. Assim, é-lhe imperioso cair nas boas
graças de todos e de manter uma rede de contactos a mais alargada possível que
lhe permita potenciar ao máximo as oportunidades de negócio e respetiva rede de
relações comerciais, assim como aniquilar os competidores atuais e potenciais.
O burguês sabe que quantos mais homens conhecer e possa influenciar – sempre
por via material, que no fundo é o único móbil que o guia e que projeta em
todos os elementos da sua comunidade – aumenta exponencialmente as suas hipóteses
de fortuna, pelo que naturalmente devota interesse às atividades coletivas da
sociedade que lhe permitam publicitar o seu nome e assim ganhar credo e favores
junto de uma rede o mais extensa possível. Assim, o seu ativismo social é quase
sempre público, incluindo as suas atividades caritativas, que na verdade, constituem
para ele investimentos que lhe trarão benefícios a algum prazo.
Este esforço constante de agradar ao máximo número de
pessoas possível, manter uma aparência de caráter e de comportamento
necessárias para efetuar negócios e estabelecer relações de interesse, mesmo
que tal não corresponda à sua disposição interior, são das características
principais do burguês. Ele é um exímio projetador da disposição e da atitude
que julga serem as mais adequadas ao ambiente e aos interlocutores do momento,
já que de tal depende o seu sucesso comercial. Além disso, ele deve dominar as
práticas do chamado marketing e da autopromoção, enaltecendo a todo o momento a
superior qualidade dos seus produtos e serviços, comparando-as favoravelmente
às dos seus competidores, que subtilmente menospreza. Neste contexto, mais que
a verdade e a etiqueta, ele tem de se preocupar em criar na mente dos seus
interlocutores o cenário que mais lhe é favorável, por meio de artifícios
variados, que no limite não correspondem de todo à realidade. Manter as
aparências é mister. Quando na presença de um potencial cliente, ele tem de
apreender a disposição e os gostos do mesmo, assim como a respetiva estação
social e económica, de forma a adaptar a sua postura e atitude, para poder cair
nas suas boas graças com o intuito de aumentar as probabilidades de efetuar a
venda. A busca incessante do lucro que consome a maior parte da sua vida
mental, aliada ao medo da concorrência e da erosão da sua fortuna - que teme
acima de tudo o mais - causam nele uma profunda inquietação e irrequietismo,
pelo que é normal vê-lo num constante afã com as suas atividades comerciais, sempre
projetando futuros cenários de expansão comercial e de poupança, que para
sempre consomem a sua vida, mesmo quando já é abastado.
O burguês é na essência um cosmopolita, no sentido
moderno do termo, já que a busca da sua felicidade individual e material é
potenciada pela constante expansão do seu círculo social, seja de que estrato,
condição e latitude este consista. Se pertence formalmente a uma nação ou a uma
instituição coletiva regional, a sua ambição, refletida na expansão da sua
atividade, obriga ao estabelecimento de contactos e relações permanentes com
interlocutores e mercados estrangeiros, pelo que a sua lealdade às instituições
de origem é sempre de ordem secundária àquela atividade da qual depende o seu
modo de vida.
Mais do que conhecimentos teóricos, religiosos e
filosóficos, ele preocupa-se sobretudo com conhecimentos técnicos da respetiva
atividade a que se encontra associado ou que possam facilitar o estabelecimento
de negócios, como línguas estrangeiras, contabilidade, finanças, gestão, ou a
criação de códigos e linguagens comerciais que reduzam ao máximo as barreiras
mercantis. E do mesmo modo que pratica a sua atividade, ele apreende este
conhecimento com o desiderato principal de assim obter mais vantagens
materiais. A sua necessidade de conhecimento, limita-se quase sempre ao que de
mais prosaico existe, resumindo-se na maior parte dos casos à coleção das
notícias e factos que lhe permitam conceber uma ideia ou uma previsão de como
navegar as águas turvas em que se movimenta na sua atividade comercial. Mesmo
nas suas demandas mais intelectuais, raramente busca o conhecimento pelo
conhecimento, pois quase sempre se dedica a algo que o possa beneficiar
materialmente ou que lhe permita impressionar o seu círculo de relações. Mais
que ser, o parecer continua a imperar.
O espírito burguês é essencialmente democrático, por
várias ordens de razões. Primeiro, o burguês liberto detém um caráter
subversivo, já que nutre dentro de si, originalmente ou por herança familiar,
ressentimentos para com as classes que anteriormente se encontravam mais
elevadas na hierarquia social – realeza, nobreza ou clérigo. Ele, quando não
integrado em estruturas hierárquicas fortes e vivificadas, desconfia daquelas e
vê como injusta a sua antiga ou ainda presente condição de subordinação – do
seu posto, só observa a plebe do alto – e desdenha as tradições daquelas, que concebe
somente como formalismos vazios pois, no fundo, sente-se inferiorizado pela
mais elevada dignidade de porte que pressupõe uma superioridade que não é
somente material, no fundo a única que o burguês e a plebe conhecem. O burguês,
em todos os lugares em que se libertou dos grilhões da Tradição, aboliu as
classes sociais superiores ou tentou usar a sua fortuna e influência para se
lhes juntar, sinal já do ocaso eminente daquelas. Por outro lado, o burguês, vendo
em todos os seres potenciais clientes ou parceiros de negócio, apreende a
sociedade como um conjunto de seres qualitativamente iguais, mesmo que apenas
formalmente. Qualquer distinção hierárquica ou imposição à liberdade individual
é vista com desconfiança já que afetará a sua capacidade de expansão comercial e
margens de lucro. Por outro lado, sendo a sua vida estabelecida à volta de
contratos de compra e venda e de relações que se baseiam não na palavra dada ou
na honra, mas na vontade escrita e legalmente ou judicialmente demandável - pois
de tal depende a sua subsistência num mundo mercantilizado – tende naturalmente
a expandir esta mundividência a toda a vida social e política. Partindo da sua
vivência interior e dos hábitos que adota nos seus relacionamentos, concebe que
todos os seres humanos são passíveis de faltar à palavra dada, pelo que cabe
contratualizar o máximo de relações possíveis, maximizando assim a
possibilidade do cumprimento das mesmas. Porém, o idealismo político da mente
burguesa, que no fundo tem sempre um substrato utilitário, esbarra em todas as
ocasiões em que as circunstâncias políticas ou económicas do momento ameaçam
perturbar o seu modo de sustento. Em tais casos, quando se depara com uma
oportunidade de negócio que só pode ser obtida por via política ou
administrativa, ele não tem pejo em usar de táticas ilegais ou contrárias à
ideologia coletiva que professa, já que, no final de contas, a sua ambição de
sucesso comercial e social sobrepõe- se às convicções políticas e espirituais a
que adere num dado momento, das quais se desenvencilha assim que tal se lhe
depara como mais conveniente.
A visão contratualista e legalista do mundo e da vida
vai efetivamente criar sistemas ideológicos que, por um lado, veem o bem
privado como algo fundamental a proteger, que deve ser preservado a todo o
custo da cobiça de terceiros, e que, por outro, minimizam a influência de
órgãos superiores nas vontades individuais e comerciais. Este contratualismo
estende-se obviamente ao seio das suas empresas e ofícios, onde, na pele de
administrador de homens - vistos como meros recursos produtivos destituídos de
verdadeira personalidade – uniformiza o mais possível as relações entre os
trabalhadores e o detentor do capital, descurando sempre que pode as distinções
qualitativas entre os homens, para focar unicamente as quantitativas (sejam
físicas ou mentais) que contribuam para o maior sucesso da empresa, com a
correspondente diferenciação na componente salarial de cada indivíduo, que
adquire correlação com a componente produtiva. E se a exploração do fator
humano na empresa mercantil é apresentado pelo burguês como sinal da sua
fundamental bondade e dedicação à causa pública, justificando assim a busca crescente
de mais e mais lucro, ele é o primeiro a implementar métodos de produção cada
vez mais desumanos e duros, a deslocalizar empregos ou a automatizar por via
mecânica e tecnológica a produção desde, quando tal lhe é mais benéfico.
Por outro lado, o burguês é essencialmente um produto
do seu tempo, em todas as áreas, assumindo sempre publicamente as posições e as
atitudes dominantes da comunidade. Ele vai sempre projetar-se para os outros
como um esteio dos ‘melhores’ valores e conceções do momento, obrigação que
estende aos elementos do seu círculo familiar mais próximo, cuja atividade e
reputação podem igualmente afetar as suas atividades mercantis. E será sempre
ele, seja em capacidade oficial ou como cidadão privado, a promover
publicamente a moralidade reinante, os costumes sociais considerados de bom-tom
ou os valores assumidos pela maioria dos concidadãos. Nunca o burguês toma
publicamente posições radicais ou consideradas extremistas, já que tal afetará
o seu negócio, que depende sempre de cair nas boas graças do maior número
possível de potenciais clientes. No entanto, como no caso dos ideais políticas
que perora publicamente, as suas práticas comerciais são suscetíveis de não se
coadunarem com a moralidade que faz questão de pregar. E se a sua ambição o
‘obriga’ amiúde a práticas comerciais desleais e desonestas, não raras vezes
embarca em atividades comerciais imorais e perniciosas para a sociedade que
contrariam a propagada moralidade, mas que rapidamente racionaliza como
criadoras de riqueza e de emprego para o coletivo.
Pensamos que o acima indicado, não sendo exaustivo,
deixará ao leitor uma ideia mais bem-definida do arquétipo psíquico burguês que
representa o espírito da nossa época. Não lhe será difícil transpor este
espírito para o nosso tempo e observar este espírito a guiar as nossas
empresas, escolas, igrejas, ministérios, partidos, ideologias, atitudes e
comportamentos. Tal mereceria um outro ensaio, como também mereceria uma
análise separada a crescente influência de um outro espírito, de tendência
ainda mais inferior, que já corrói os alicerces do mundo burguês e que o irá
destronar a médio prazo. Contamos debruçarmo-nos sobre ambos num futuro que
esperamos breve.