Tuesday, November 14, 2017

As Formas do Heroísmo Guerreiro




É com grande prazer que iniciamos hoje a tradução de três artigos de Julius Evola para o português sobre a temática da guerra e da sua significação espiritual.

Esta iniciativa vem na esteira de algumas discussões tidas ultimamente sobre as influências pré-cristãs na Europa Ocidental, em geral, e na Idade Média, em particular. E é de facto inegável que se a Europa pode ser considerada Cristã há mais de 1500 anos - se tomarmos em conta o ano de 323 como o da adoção formal do Cristianismo como religião oficial do Império Romano – é inegável que permaneceram um conjunto de mitos, éticas, instituições, comportamentos, etc. que, fazendo parte fundamental da herança europeia, não são reconduzíveis de modo algum a essa herança confessional.

Uma dessas heranças é sem margem de dúvida a da Cavalaria, que, encontrando o seu apogeu na época das Cruzadas, permeou pelas suas instituições e espírito o ambiente Europeu da Idade Média de forma marcante. Quais as origens antigas desta instituição? Donde podemos ir buscar a génese do espírito guerreiro de que estas Ordens se encontravam imbuídas? Mais importante, em que outras alturas e latitudes se podem encontrar exemplos e formas talvez ainda mais puras deste espírito?

Estas e outras questões sobre este tema, Julius Evola foi dando resposta em diversos artigos ao longo da sua vida, tendo alguns deles sido compilados em 2011 pela editora Arktos, no livro Metaphysics of War. Os três artigos aqui traduzidos do inglês, foram originalmente publicados em 1935 na revista Diorama, e debruçam-se, respetivamente, sobre os tipos de heroísmo guerreiro, o sentido sagrado da guerra para os antigos romanos e o significado espiritual das Cruzadas.

Em baixo deixamos a tradução das ‘Formas de Heroísmo Guerreiro’, onde Evola nos fornece uma descrição das tipologias do heroísmo, recorrendo à sua conceção da involutiva regressão das castas. Aqui, a conceção da guerra, a sua significação íntima e respetivas possibilidades irão acompanhar esse retrocesso quadripartido que, partindo de uma civilização cujo centro é domínio por uma elite espiritual e divina, degenera ultimamente numa civilização em que o elemento preponderante é dominado pelos interesses da casta dos escravos.

Última nota relativa à referência ao Fascismo feita por Evola. Se por esta altura ele ainda tinha esperanças em moldar o regime italiano com vista à restauração de um novo Império Romano, tal em breve deu lugar à desilusão, que, diga-se, não o impediu de se mostrar presente em alturas críticas, nomeadamente durante a República de Saló, mais por dever de lealdade guerreia deste espírito khsatriya do que por questões de afinidade ideológica ou política.
  

------------------------------------


O princípio fundamental subjacente a todas as justificações da guerra, do ponto de vista da personalidade humana, é o ‘heroísmo’. A guerra, é dito, oferece ao homem a oportunidade de acordar o herói que dorme dentro dele. A guerra quebra a rotina da vida confortável; por meio das provações árduas, ela oferece um conhecimento transfigurador da vida, vida de acordo com a morte. O momento em que o indivíduo consegue viver como um herói, mesmo que nos momentos finais da sua vida terrena, pesa infinitamente mais na escala dos valores que uma existência prolongada, usada no monótono consumo das trivialidades citadinas. Duma perspetiva espiritual, estas possibilidades compensam as tendências negativas e destrutivas da guerra, que são tendenciosamente acentuadas pelo materialismo pacifista. A guerra obriga a que o indivíduo se aperceba da relatividade da vida humana e também da lei de ‘mais que a vida’ e portanto a guerra tem sempre um valor anti-materialista, um valor espiritual.

Tais considerações têm mérito indisputável e cortam com as tagarelices do humanitarismo, com o sentimentalismo grisalho, com os protestos dos campeões dos ‘princípios imortais’, e com a ‘Internacional’ dos heróis da caneta. No entanto, deve ser considerado que, em ordem para totalmente definir as condições sob as quais o aspeto espiritual da guerra se torna visível, é necessário examinar o assunto mais profundamente e definir uma espécie de ‘fenomenologia da experiência guerreira’, distinguindo várias formas e ordenando-as hierarquicamente para salientar o aspeto que deve ser considerado a epítome da experiência heroica.

Para chegar a este resultado, torna-se necessário recordar a doutrina com a qual os leitores habituais da ‘Diorama’ já estarão familiares, a qual – tenha-se em mente – não é produto de qualquer construção particularista, pessoal ou filosófica, mas antes uma ideia real, de natureza positiva e objetiva. É a doutrina da hierárquica quadripartição, que interpreta a história mais recente como a de uma queda involuntária de cada um dos quatro degraus hierárquicos para o próximo. Este quadripartição – deve ser recordado – é a que, nas civilizações tradicionais, deu origem a quatro castas distintas: os escravos, a classe-média burguesa, a aristocracia guerreira, e os portadores de uma autoridade pura, espiritual. Aqui, ’casta’ não significa – como a maior parte assume – algo artificial e arbitrário, antes o ‘lugar’ onde indivíduos, partilhando da mesma natureza, o mesmo tipo de interesse e vocação, a mesma qualificação primordial, se juntam. Uma ‘verdade’ específica, uma função específica, define as castas, no seu estado normal, e não vice-versa: esta não é portanto um assunto relativo a privilégios e modos de vida que são monopolizados com base numa constituição social mais ou menos mantida de modo artificial e inatural. O princípio subjacente por detrás de todas as instituições formativas em tais sociedades, pelo menos nas suas formas históricas mais autênticas, é a de que não existe um simples e universal modo de viver a vida individual, mas vários caminhos espirituais distintos, respetivamente apropriados ao guerreiro, à burguesia e ao escravo, e que, quando as funções sociais e repartições             correspondem de facto a esta articulação, existe – de acordo com uma expressão clássica – uma ordem secundum equum et bonum.

A ordem é ‘hierárquica’ no que implica uma dependência natural dos modos inferiores de vida aos modos superiores – e, de acordo com a dependência, cooperação; a tarefa do superior é a de obter expressão e personalidade numa base puramente espiritual. Apenas tais casos, nos quais esta direta e normal relação de subordinação e de cooperação existem, são saudáveis, como é tornado claro pela analogia do organismo humano, que se torna enfermo se, por qualquer hipótese, o elemento físico (escravos) ou o elemento vegetativo da vida (burguesia) ou aquela da vontade animal incontrolada (guerreiros) tomar a primazia e o lugar guia da vida de um homem, e é saudável apenas quando o espírito se constitui no ponto de referência central e último das restantes faculdades, às quais, no entanto, não é negada uma autonomia parcial, com vidas e direitos subordinados próprios dentro da unidade do todo.

Aqui não falamos de uma qualquer antiga hierarquia, mas acerca da ‘verdadeira’ hierarquia, o que significa que o que se situa acima e governa é realmente o que é superior, é necessário referirmo-nos a sistemas de civilizações que, no centro, contém uma elite espiritual, e onde os modos de vida dos escravos, da burguesia e dos guerreiros derivam o seu significado último e suprema justificação pela referência ao princípio que é a herança específica desta elite espiritual, e manifestam este princípio na sua atividade material. No entanto, chega-se a um estado anormal se o centro se move, pelo que o ponto de referência fundamental, em vez de ser o princípio espiritual, é o da casta servil, a burguesia ou os guerreiros. Cada uma destas castas manifesta a sua própria hierarquia e um certo código de cooperação, mas cada uma é mais perversa, mais distorcida, e mais subversiva que a última, até o processo chegar ao seu limite – isto é, um sistema no qual a visão de vida característica dos escravos tudo orienta e se imbui em todos os elementos sobreviventes do conjunto social.

Politicamente, este processo involuntário é bastante visível na história Ocidental, e pode ser rastreado até aos tempos mais recentes. Estados do tipo aristocrático e do tipo sagrado foram sucedidos por Estados monárquico-guerreiros, em larga medida já secularizados, que por sua vez foram substituídos por estados governados por oligarquias capitalistas (casta burguesa ou mercantil) e, finalmente, temos assistido a tendências em direção a estados socialistas, coletivistas e proletários, que culminaram no Bolchevismo russo (a casta dos escravos).

Este processo é igualável às transições de um tipo de civilização para outro, de um significado fundamental de vida para outro. Em cada fase, todo o conceito, todo o princípio, toda a instituição assume uma significação diferente, refletindo a mundivisão da casta predominante.

Isto também se aplica à ‘guerra’, e portanto podemos lançar-nos à tarefa a que originalmente nos comprometemos, de especificar as variedades de significado que a batalha e a morte heroica podem adquirir. A guerra tem uma face diferente, em concordância com a sua colocação sob o signo de uma ou doutra casta. Enquanto no ciclo da primeira casta, a guerra foi justificada por motivos espirituais, e claramente mostrava o seu valor como uma via para a realização espiritual e para a obtenção da imortalidade pelo herói (este sendo o motivo da ‘guerra sagrada’), no ciclo das aristocracias guerreiras eles lutavam pela honra e poder de um príncipe específico, ao qual mostravam uma lealdade que era voluntariamente associada ao prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mãos da burguesia, houve uma profunda transformação; nesta altura, o conceito de nação materializou-se e democratizou-se e uma conceção antiaristocrática e naturalista de pátria é formada, pelo que o guerreiro é substituído pelo soldado-cidadão que luta simplesmente pela defesa e conquista da terra; as guerras, no entanto, geralmente mantém-se maliciosamente guiadas por motivos supremacistas ou por tendências fundadas dentro da ordem económica e industrial. Finalmente, a última etapa, na qual a liderança para as mãos dos escravos, já foi possível realizar – no Bolchevismo – outro significado de guerra, que encontra expressão nas, características palavras de Lenine: ‘A guerra entre as nações é um jogo infantil, preocupado que está pela sobrevivência da classe média que não nos interessa. A verdadeira guerra, a nossa guerra, é a da revolução mundial com vista à destruição da burguesia e ao triunfo do proletariado’.

Dado tudo isto, é óbvio que o termo ‘herói’ é um denominador comum que embarca tipos e significados muito díspares. A prontidão para morrer, para sacrificar a própria vida, poderá ser o único pré-requisito, do ponto de vista técnico e coletivista, mas também do ponto de vista do que hoje, bastante brutalmente, se tornou referido como ‘carne para canhão’. No entanto, é também óbvio que não é deste ponto de vista que a guerra pode reclamar qualquer valor espiritual verdadeiro em relação ao indivíduo, quando o último não aparece como ‘carne’ mas antes como personalidade – como o é na perspetiva romana. Este último ponto de vista é apenas possível desde que exista uma relação dupla dos meios em relação aos fins – isto é dizer, quando, por um lado, o indivíduo aparece como um meio com respeito a uma guerra e aos seus fins materiais, mas, simultaneamente, quando uma guerra, por sua vez, é um meio para o indivíduo, como uma oportunidade de um caminho para o fim da sua realização espiritual, favorecida pela experiência heroica. Existe então uma síntese, uma energia e, com ela, uma eficiência mais elevada.

Se prolongamos esta cadeia de pensamento, torna-se bastante claro, do que foi dito, que nem todas as guerras contêm as mesmas possibilidades. Isto por via de analogias, as quais não são meras abstrações, mas que atuam positivamente ao longo de vias invisíveis para a maior parte das pessoas, entre o caráter predominante nos vários ciclos de civilização e o elemento que corresponde a este caráter no todo da entidade humana. Se, nas eras dos mercadores e dos escravos, triunfam forças que correspondem às energias que definem a parte pré-pessoal, física, instintiva, ‘telúrica’ e vital-orgânica, então, nas eras dos guerreiros e dos líderes espirituais, forças encontram expressão que correspondem, respetivamente, ao que no homem é caráter e personalidade volitiva, e o que nele é personalidade espiritualizada, personalidade realizada de acordo com o seu destino sobrenatural. Por causa de todos os fatores transcendentes que nelas se levantam, é óbvio que, numa guerra, a maioria não pode coletivamente submeter-se a um despertar, correspondente mais ou menos à influência predominante dentro da ordem das causas que foram as mais decisivas para a eclosão daquela guerra. Individualmente, a experiência heroica leva então a diferentes pontos de chegada: mais precisamente, a três pontos primários.

Estes pontos correspondem, basicamente, aos três tipos possíveis de relação nos quais a casta guerreira e o seu princípio podem encontrar-se com respeito às outras manifestações já consideradas. No estado normal, eles estão subordinados ao princípio espiritual, e então desperta-se um heroísmo que guia à supra-vida, à supra-personalidade. O princípio guerreiro pode, no entanto, construir a sua própria forma, recusando reconhecer qualquer coisa superior a si própria, e então a experiência guerreira toma uma qualidade que é ‘trágica’: insolente, temperamento de aço, mas sem luz. A personalidade mantem-se, e reforça-se, mas, ao mesmo tempo, também o limite constituído pela sua natureza naturalística e simplesmente humana. No entanto, este tipo de ‘herói’ mostra uma certa grandeza, e, naturalmente, para os tipos hierarquicamente inferiores ao guerreiro, i.e., os tipos burguês e escravo, esta guerra e este heroísmo já se tornam em superação, elevação, realização. O terceiro caso envolve um princípio guerreiro degradado, que passou ao serviço dos elementos hierarquicamente inferiores (as castas abaixo de si). Em tais casos, a experiência heroica encontra-se unida, quase fatalmente, a uma evocação, e a uma erupção, de forças instintivas, sub-pessoais, coletivas, irracionais, pelo que ocorre, basicamente, uma lesão e uma regressão da personalidade do indivíduo, que só pode viver a vida de modo passivo, guiado tanto pela necessidade ou pelo poder sugestivo de mitos ou de impulsos impetuosos. Por exemplo, as notórias histórias de Remarque refletem apenas possibilidades deste último tipo; elas recontam as histórias de tipos humanos que, levados para a guerra por falsos idealismos, pelo menos apercebem-se que a realidade é algo de muito diferente – eles não se tornam vulgares, nem desertores, mas tudo que os impele em frente através dos testes mais terríveis são forças elementares, impulsos, instintos e reações, nas quais não resta muito de humano e que não conhecem qualquer momento de luz.

Numa preparação para a guerra que não deve ser apenas material, mas também espiritual, é necessário reconhecer tudo isto com uma visão clara e inabalável em ordem a ser permitido orientar as almas e as energias em direção a uma solução mais elevada, a única que corresponde aos ideias dos quais o Fascismo recolhe a sua inspiração.

O Fascismo aparece-nos como uma revolução construtiva, no que afirma um conceito aristocrático e espiritual de nação, contra ambos o coletivismo socialista e internacionalista, e a noção democrática e demagógica de nação. Em adição, o seu desprezo pelo mito económico e a elevação da nação na prática ao grau de ‘nação guerreira’, marca positivamente o primeiro grau desta reconstrução, que é a de subordinar os valores das antigas castas dos ‘mercadores’ e dos ‘escravos’ aos valores da casta imediatamente mais elevada. O próximo passo será o da espiritualização do próprio princípio guerreiro. O ponto de partida encontrar-se-á então presente para desenvolver uma experiência heroica no sentido mais elevado das três possibilidades acima mencionadas. Para entender como tal possibilidade mais elevada e espiritual, que foi efetivamente experimentada nas maiores civilizações que nos precederam, e que, para falar verdade, é o que nos mostra o seu caráter constante e universal, é mais do que erudição estudiosa. Tal é o que com iremos lidar nos nossos próximos escritos, nos quais nos focaremos essencialmente nas tradições peculiares à Romanidade antiga e Medieval.


No comments:

Post a Comment

Wakinyan-Tanka - O Simbolismo da Águia Entre os Peles Vermelhas

Com a devida vénia, deixamos traduzido o ensaio de António Medrano, originalmente publicado na já defunta publicação tradicionalista ...