É com grande
prazer que iniciamos hoje a tradução de três artigos de Julius Evola para o
português sobre a temática da guerra e da sua significação espiritual.
Esta
iniciativa vem na esteira de algumas discussões tidas ultimamente sobre as
influências pré-cristãs na Europa Ocidental, em geral, e na Idade Média, em
particular. E é de facto inegável que se a Europa pode ser considerada Cristã
há mais de 1500 anos - se tomarmos em conta o ano de 323 como o da adoção
formal do Cristianismo como religião oficial do Império Romano – é inegável que
permaneceram um conjunto de mitos, éticas, instituições, comportamentos, etc.
que, fazendo parte fundamental da herança europeia, não são reconduzíveis de
modo algum a essa herança confessional.
Uma dessas
heranças é sem margem de dúvida a da Cavalaria, que, encontrando o seu apogeu
na época das Cruzadas, permeou pelas suas instituições e espírito o ambiente
Europeu da Idade Média de forma marcante. Quais as origens antigas desta
instituição? Donde podemos ir buscar a génese do espírito guerreiro de que
estas Ordens se encontravam imbuídas? Mais importante, em que outras alturas e
latitudes se podem encontrar exemplos e formas talvez ainda mais puras deste espírito?
Estas e
outras questões sobre este tema, Julius Evola foi dando resposta em diversos
artigos ao longo da sua vida, tendo alguns deles sido compilados em 2011 pela
editora Arktos, no livro Metaphysics of War. Os três artigos aqui traduzidos do
inglês, foram originalmente publicados em 1935 na revista Diorama, e debruçam-se,
respetivamente, sobre os tipos de heroísmo guerreiro, o sentido sagrado da guerra
para os antigos romanos e o significado espiritual das Cruzadas.
Em baixo
deixamos a tradução das ‘Formas de Heroísmo Guerreiro’, onde Evola nos fornece
uma descrição das tipologias do heroísmo, recorrendo à sua conceção da
involutiva regressão das castas. Aqui, a conceção da guerra, a sua significação
íntima e respetivas possibilidades irão acompanhar esse retrocesso
quadripartido que, partindo de uma civilização cujo centro é domínio por uma
elite espiritual e divina, degenera ultimamente numa civilização em que o elemento
preponderante é dominado pelos interesses da casta dos escravos.
Última nota
relativa à referência ao Fascismo feita por Evola. Se por esta altura ele ainda
tinha esperanças em moldar o regime italiano com vista à restauração de um novo
Império Romano, tal em breve deu lugar à desilusão, que, diga-se, não o impediu
de se mostrar presente em alturas críticas, nomeadamente durante a República de
Saló, mais por dever de lealdade guerreia deste espírito khsatriya do que por
questões de afinidade ideológica ou política.
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O princípio fundamental subjacente a todas as justificações
da guerra, do ponto de vista da personalidade humana, é o ‘heroísmo’. A guerra,
é dito, oferece ao homem a oportunidade de acordar o herói que dorme dentro dele.
A guerra quebra a rotina da vida confortável; por meio das provações árduas, ela
oferece um conhecimento transfigurador da vida, vida de acordo com a morte. O
momento em que o indivíduo consegue viver como um herói, mesmo que nos momentos
finais da sua vida terrena, pesa infinitamente mais na escala dos valores que
uma existência prolongada, usada no monótono consumo das trivialidades citadinas.
Duma perspetiva espiritual, estas possibilidades compensam as tendências
negativas e destrutivas da guerra, que são tendenciosamente acentuadas pelo
materialismo pacifista. A guerra obriga a que o indivíduo se aperceba da
relatividade da vida humana e também da lei de ‘mais que a vida’ e portanto a
guerra tem sempre um valor anti-materialista, um valor espiritual.
Tais considerações têm mérito indisputável e cortam
com as tagarelices do humanitarismo, com o sentimentalismo grisalho, com os
protestos dos campeões dos ‘princípios imortais’, e com a ‘Internacional’ dos
heróis da caneta. No entanto, deve ser considerado que, em ordem para
totalmente definir as condições sob as quais o aspeto espiritual da guerra se
torna visível, é necessário examinar o assunto mais profundamente e definir uma
espécie de ‘fenomenologia da experiência guerreira’, distinguindo várias formas
e ordenando-as hierarquicamente para salientar o aspeto que deve ser
considerado a epítome da experiência heroica.
Para chegar a este resultado, torna-se necessário
recordar a doutrina com a qual os leitores habituais da ‘Diorama’ já estarão
familiares, a qual – tenha-se em mente – não é produto de qualquer construção
particularista, pessoal ou filosófica, mas antes uma ideia real, de natureza
positiva e objetiva. É a doutrina da hierárquica quadripartição, que interpreta
a história mais recente como a de uma queda involuntária de cada um dos quatro
degraus hierárquicos para o próximo. Este quadripartição – deve ser recordado –
é a que, nas civilizações tradicionais, deu origem a quatro castas distintas:
os escravos, a classe-média burguesa, a aristocracia guerreira, e os portadores
de uma autoridade pura, espiritual. Aqui, ’casta’ não significa – como a maior
parte assume – algo artificial e arbitrário, antes o ‘lugar’ onde indivíduos,
partilhando da mesma natureza, o mesmo tipo de interesse e vocação, a mesma
qualificação primordial, se juntam. Uma ‘verdade’ específica, uma função
específica, define as castas, no seu estado normal, e não vice-versa: esta não
é portanto um assunto relativo a privilégios e modos de vida que são
monopolizados com base numa constituição social mais ou menos mantida de modo
artificial e inatural. O princípio subjacente por detrás de todas as
instituições formativas em tais sociedades, pelo menos nas suas formas
históricas mais autênticas, é a de que não existe um simples e universal modo
de viver a vida individual, mas vários caminhos espirituais distintos,
respetivamente apropriados ao guerreiro, à burguesia e ao escravo, e que,
quando as funções sociais e repartições
correspondem de facto a esta articulação, existe – de acordo com uma expressão
clássica – uma ordem secundum equum et
bonum.
A ordem é ‘hierárquica’ no que implica uma
dependência natural dos modos inferiores de vida aos modos superiores – e, de
acordo com a dependência, cooperação; a tarefa do superior é a de obter
expressão e personalidade numa base puramente espiritual. Apenas tais casos,
nos quais esta direta e normal relação de subordinação e de cooperação existem,
são saudáveis, como é tornado claro pela analogia do organismo humano, que se
torna enfermo se, por qualquer hipótese, o elemento físico (escravos) ou o
elemento vegetativo da vida (burguesia) ou aquela da vontade animal
incontrolada (guerreiros) tomar a primazia e o lugar guia da vida de um homem,
e é saudável apenas quando o espírito se constitui no ponto de referência
central e último das restantes faculdades, às quais, no entanto, não é negada
uma autonomia parcial, com vidas e direitos subordinados próprios dentro da
unidade do todo.
Aqui não falamos de uma qualquer antiga hierarquia,
mas acerca da ‘verdadeira’ hierarquia, o que significa que o que se situa acima
e governa é realmente o que é superior, é necessário referirmo-nos a sistemas
de civilizações que, no centro, contém uma elite espiritual, e onde os modos de
vida dos escravos, da burguesia e dos guerreiros derivam o seu significado
último e suprema justificação pela referência ao princípio que é a herança
específica desta elite espiritual, e manifestam este princípio na sua atividade
material. No entanto, chega-se a um estado anormal se o centro se move, pelo
que o ponto de referência fundamental, em vez de ser o princípio espiritual, é
o da casta servil, a burguesia ou os guerreiros. Cada uma destas castas manifesta
a sua própria hierarquia e um certo código de cooperação, mas cada uma é mais
perversa, mais distorcida, e mais subversiva que a última, até o processo
chegar ao seu limite – isto é, um sistema no qual a visão de vida
característica dos escravos tudo orienta e se imbui em todos os elementos
sobreviventes do conjunto social.
Politicamente, este processo involuntário é
bastante visível na história Ocidental, e pode ser rastreado até aos tempos
mais recentes. Estados do tipo aristocrático e do tipo sagrado foram sucedidos
por Estados monárquico-guerreiros, em larga medida já secularizados, que por
sua vez foram substituídos por estados governados por oligarquias capitalistas
(casta burguesa ou mercantil) e, finalmente, temos assistido a tendências em
direção a estados socialistas, coletivistas e proletários, que culminaram no Bolchevismo
russo (a casta dos escravos).
Este processo é igualável às transições de um tipo
de civilização para outro, de um significado fundamental de vida para outro. Em
cada fase, todo o conceito, todo o princípio, toda a instituição assume uma
significação diferente, refletindo a mundivisão da casta predominante.
Isto também se aplica à ‘guerra’, e portanto
podemos lançar-nos à tarefa a que originalmente nos comprometemos, de
especificar as variedades de significado que a batalha e a morte heroica podem
adquirir. A guerra tem uma face diferente, em concordância com a sua colocação
sob o signo de uma ou doutra casta. Enquanto no ciclo da primeira casta, a
guerra foi justificada por motivos espirituais, e claramente mostrava o seu
valor como uma via para a realização espiritual e para a obtenção da
imortalidade pelo herói (este sendo o motivo da ‘guerra sagrada’), no ciclo das
aristocracias guerreiras eles lutavam pela honra e poder de um príncipe
específico, ao qual mostravam uma lealdade que era voluntariamente associada ao
prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mãos da
burguesia, houve uma profunda transformação; nesta altura, o conceito de nação
materializou-se e democratizou-se e uma conceção antiaristocrática e
naturalista de pátria é formada, pelo que o guerreiro é substituído pelo
soldado-cidadão que luta simplesmente pela defesa e conquista da terra; as
guerras, no entanto, geralmente mantém-se maliciosamente guiadas por motivos
supremacistas ou por tendências fundadas dentro da ordem económica e
industrial. Finalmente, a última etapa, na qual a liderança para as mãos dos
escravos, já foi possível realizar – no Bolchevismo – outro significado de
guerra, que encontra expressão nas, características palavras de Lenine: ‘A
guerra entre as nações é um jogo infantil, preocupado que está pela
sobrevivência da classe média que não nos interessa. A verdadeira guerra, a
nossa guerra, é a da revolução mundial com vista à destruição da burguesia e ao
triunfo do proletariado’.
Dado tudo isto, é óbvio que o termo ‘herói’ é um
denominador comum que embarca tipos e significados muito díspares. A prontidão
para morrer, para sacrificar a própria vida, poderá ser o único pré-requisito,
do ponto de vista técnico e coletivista, mas também do ponto de vista do que
hoje, bastante brutalmente, se tornou referido como ‘carne para canhão’. No
entanto, é também óbvio que não é deste ponto de vista que a guerra pode
reclamar qualquer valor espiritual verdadeiro em relação ao indivíduo, quando o
último não aparece como ‘carne’ mas antes como personalidade – como o é na
perspetiva romana. Este último ponto de vista é apenas possível desde que
exista uma relação dupla dos meios em relação aos fins – isto é dizer, quando,
por um lado, o indivíduo aparece como um meio com respeito a uma guerra e aos
seus fins materiais, mas, simultaneamente, quando uma guerra, por sua vez, é um
meio para o indivíduo, como uma oportunidade de um caminho para o fim da sua
realização espiritual, favorecida pela experiência heroica. Existe então uma
síntese, uma energia e, com ela, uma eficiência mais elevada.
Se prolongamos esta cadeia de pensamento, torna-se
bastante claro, do que foi dito, que nem todas as guerras contêm as mesmas
possibilidades. Isto por via de analogias, as quais não são meras abstrações,
mas que atuam positivamente ao longo de vias invisíveis para a maior parte das
pessoas, entre o caráter predominante nos vários ciclos de civilização e o
elemento que corresponde a este caráter no todo da entidade humana. Se, nas
eras dos mercadores e dos escravos, triunfam forças que correspondem às energias
que definem a parte pré-pessoal, física, instintiva, ‘telúrica’ e
vital-orgânica, então, nas eras dos guerreiros e dos líderes espirituais,
forças encontram expressão que correspondem, respetivamente, ao que no homem é
caráter e personalidade volitiva, e o que nele é personalidade espiritualizada,
personalidade realizada de acordo com o seu destino sobrenatural. Por causa de
todos os fatores transcendentes que nelas se levantam, é óbvio que, numa
guerra, a maioria não pode coletivamente submeter-se a um despertar,
correspondente mais ou menos à influência predominante dentro da ordem das causas
que foram as mais decisivas para a eclosão daquela guerra. Individualmente, a
experiência heroica leva então a diferentes pontos de chegada: mais
precisamente, a três pontos primários.
Estes pontos correspondem, basicamente, aos três
tipos possíveis de relação nos quais a casta guerreira e o seu princípio podem
encontrar-se com respeito às outras manifestações já consideradas. No estado
normal, eles estão subordinados ao princípio espiritual, e então desperta-se um
heroísmo que guia à supra-vida, à supra-personalidade. O princípio guerreiro
pode, no entanto, construir a sua própria forma, recusando reconhecer qualquer
coisa superior a si própria, e então a experiência guerreira toma uma qualidade
que é ‘trágica’: insolente, temperamento de aço, mas sem luz. A personalidade
mantem-se, e reforça-se, mas, ao mesmo tempo, também o limite constituído pela
sua natureza naturalística e simplesmente humana. No entanto, este tipo de
‘herói’ mostra uma certa grandeza, e, naturalmente, para os tipos
hierarquicamente inferiores ao guerreiro, i.e., os tipos burguês e escravo,
esta guerra e este heroísmo já se tornam em superação, elevação, realização. O
terceiro caso envolve um princípio guerreiro degradado, que passou ao serviço dos
elementos hierarquicamente inferiores (as castas abaixo de si). Em tais casos,
a experiência heroica encontra-se unida, quase fatalmente, a uma evocação, e a
uma erupção, de forças instintivas, sub-pessoais, coletivas, irracionais, pelo
que ocorre, basicamente, uma lesão e uma regressão da personalidade do indivíduo,
que só pode viver a vida de modo passivo, guiado tanto pela necessidade ou pelo
poder sugestivo de mitos ou de impulsos impetuosos. Por exemplo, as notórias
histórias de Remarque refletem apenas possibilidades deste último tipo; elas
recontam as histórias de tipos humanos que, levados para a guerra por falsos
idealismos, pelo menos apercebem-se que a realidade é algo de muito diferente –
eles não se tornam vulgares, nem desertores, mas tudo que os impele em frente
através dos testes mais terríveis são forças elementares, impulsos, instintos e
reações, nas quais não resta muito de humano e que não conhecem qualquer
momento de luz.
Numa preparação para a guerra que não deve ser
apenas material, mas também espiritual, é necessário reconhecer tudo isto com
uma visão clara e inabalável em ordem a ser permitido orientar as almas e as
energias em direção a uma solução mais elevada, a única que corresponde aos
ideias dos quais o Fascismo recolhe a sua inspiração.
O Fascismo aparece-nos como uma revolução
construtiva, no que afirma um conceito aristocrático e espiritual de nação,
contra ambos o coletivismo socialista e internacionalista, e a noção
democrática e demagógica de nação. Em adição, o seu desprezo pelo mito
económico e a elevação da nação na prática ao grau de ‘nação guerreira’, marca
positivamente o primeiro grau desta reconstrução, que é a de subordinar os
valores das antigas castas dos ‘mercadores’ e dos ‘escravos’ aos valores da
casta imediatamente mais elevada. O próximo passo será o da espiritualização do
próprio princípio guerreiro. O ponto de partida encontrar-se-á então presente
para desenvolver uma experiência heroica no sentido mais elevado das três
possibilidades acima mencionadas. Para entender como tal possibilidade mais
elevada e espiritual, que foi efetivamente experimentada nas maiores
civilizações que nos precederam, e que, para falar verdade, é o que nos mostra
o seu caráter constante e universal, é mais do que erudição estudiosa. Tal é o
que com iremos lidar nos nossos próximos escritos, nos quais nos focaremos
essencialmente nas tradições peculiares à Romanidade antiga e Medieval.
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