Saturday, August 26, 2017

Revolta Contra o Mundo Moderno - O Mundo da Tradição


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Deixo em baixo, aos meus leitores, a versão áudio da primeira parte da obra "Revolta Contra o Mundo Moderno"de Julius Evola - O Mundo da Tradição.

Nesta primeira parte, Evola faz a caracterização geral do Mundo Tradicional, como elemento ideal, recorrendo a exemplos de várias civilizações antigas, nas suas diversas vertentes, à que contraste a atual sociedade moderna, como tipo ideal de sentido contrário.

Na segunda parte da mesma obra, intitulada "Génese e Fisionomia do Mundo Moderno", Evola passa a uma processo já histórico em que explica os processes naturais e supra-históricos de decadência desde a antiguidade mitológica que desaguaram no mundo atual totalmente degenerado e materializado.

Conto fazer o upload do mesmo durante as próximas semanas.



Tuesday, August 22, 2017

Os Aryia Ainda se Encontram no Pico do Abutre*

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Abaixo deixo a tradução do último capítulo do livro "The Doctrine of Awakening", de Julius Evola, traduzido para inglês por H. E. Musson.

Depois de na primeira parte do livro fazer uma resenha do caráter tradicional e ariano do Budismo e de na segunda parte expor as diferentes fases da prática e realização budística, Evola, reitera aqui o caráter guerreiro e heróico da verdadeira ascese indo-europeia, da qual o Budismo é ao mesmo tempo herdeiro e regenerador.

Destaco dois pontos que me parecem fundamentais para o homem ocidental: o budismo não se confunde com uma mero misticismo ou um quietismo perante a vida, mas sim uma aplicação de tudo o que é superior e Olímpico num sentido vertical de ascese superior; as realizações da verdadeira ascese não se esgotam no campo espiritual, já que segundo a Tradição o mundo material é reflexo do mundo espiritual, e vice-versa, pelo que realizações de caráter espiritual terão efeitos tangíveis na Terra, sendo tal cada vez mais importante dados os "tempos últimos" que se vivem.

Como diziam os antigos, dois caminhos cabem ao verdadeiro homem: o guerreiro ou o ascético.

Passa a palavra ao Mestre.


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Neste livro não nos aprontamos a fazer propaganda budística mas, antes, como dissemos, a indicar os elementos fundamentais de um sistema completo de ascese: estes elementos podem também ser encontrados noutras tradições, mas encontram-se com uma claridade especial no ensinamento Budista, que se presta admiravelmente para o nosso propósito pelas várias razões que discutimos no início.

Falta agora sugerir o significado que uma ascese deste tipo pode ter no dia presente.

É desnecessário frisar o facto de o mundo moderno, mais completamente que talvez qualquer outra civilização, se situa no polo oposto de uma visão de vida ascética. Não falamos aqui do problema religioso que, como vimos, não tem relação direta com a alta ascese. Falamos de orientações fundamentais do espírito.

Seria difícil negar que o “ativismo”, a exaltação e a prática da ação entendida como força, ímpeto, devir, luta, transformação, investigação perene, ou movimento ininterrupto, é a palavra-chave do mundo moderno. O mundo do “ser” aproxima-se do fim, e este declínio tem sido há muito celebrado com alegria. Não só hoje temos o triunfo do ativismo, mas também uma filosofia sui generis ao seu serviço; uma filosofia cujo criticismo sistemático e cujo aparato especulativo serve para justificá-lo de todas as maneiras, ao mesmo tempo que derrama desprezo e amontoa descrédito em todos os outros pontos de vista. Interesse no conhecimento puro tem-se tornado cada vez mais substituído pelo interesse em “viver” e em “fazer” ou, em qualquer caso, por interesse em áreas do conhecimento que possam ser empregues em termos de ação ou de realização prática e temporal. Hoje a natureza e as potencialidades do conhecimento puro, isto é, o conhecimento cujo peculiar objeto – como na ideia tradicional de todos os períodos - é a realidade supra-individual e supra-histórica, é praticamente desconhecido. Os nossos contemporâneos crescem cada vez mais acostumados a desprezar o aspeto do “ser” das coisas e a concentrarem-se, em vez, no aspeto do “devir”, “vida”, “movimento”, “desenvolvimento”, ou “história”.

“Historicismo” e o “culto do devir” marcam o ritmo do ativismo, até no plano cultural. Pragmatismo, voluntarismo, irracionalismo, variedades da religião da “vida” e “atualismo”, relativismo, evolucionismo, progressismo, Faustismo, são linhas de especulação que, apesar dos seus diferentes disfarces, germinam do mesmo motivo. E isto, então, é meramente a tradução em termos de autoconsciência e de justificação intelectual do motivo central da vida abruta destes tempos, com o seu tumulto, a sua agitação, o ser fervor pela velocidade, a sua mecanização devotada a encurtar todos os intervalos do espaço e do tempo, a sua congestão e ritmo esbaforido que é, particularmente no Novo Mundo, levado aos seus limites. Aí o tema ativista realmente atinge alturas paroxísticas e pandémicas e absorve completamente o todo da vida, cujos horizontes, de mais, estão portanto restringidos à escuridão e à melancolia que são naturais a realizações totalmente temporais e contingentes.

É também um facto ameaçador que forças de uma natureza coletivista e portanto sub-pessoal ganham mais e mais poder sobre seres que não possuem verdadeiro suporte tradicional real e que são exauridos por uma profunda inquietação. O mundo ativista é também um mundo essencialmente inexpressivo e plebeu, guiado pelo demónio do coletivismo; ele não é só o cenário do triunfo do que tem sido designado por “ideal animal”, mas é também um mundo que é essencialmente “telúrico”, movido por forças que estão ligadas com os elementos da “massa” e da “quantidade”, cuja ação, força, luta e mesmo heroísmo e sacrifício se tornam cada vez mais irracionais, desprovidos de luz, “elementares” e totalmente terrestres.

Aquilo que a antiga sabedoria Indo-Ariana tinha denotado pelo símbolo da existência samsárica, e cujas correspondentes tradições Ocidentais tinham denominado “Idade de Ferro”, pode hoje ser dito que está no auge da sua carreira; e não há falta, tanto no Budismo como em tradições similares, de textos em que tais características dos tempos por vir foram previstas com assombrosa precisão. Repetimos, no entanto, que a principal característica dos nossos tempos não é que a vida tende a exaurir-se ela própria quase exclusivamente no plano samsárico, mas que a nossa civilização estimula e exalta este tipo de vida, e considera-o, não tanto como um estado de facto, mas antes como algo de valor, como algo que deve ser, como algo que é correto. Deve ser único em toda a história que o samsara deva tornar-se um objeto de uma espécie de mística ou de religião. As novas filosofias da vida, do devir, do elan vital, que florescem nas margens do ativismo prático, têm apenas esta significação e até vêm a exaltar na existência humana tudo o que é espontaneidade inconsciente, vitalidade pura, substrato biológico pré-pessoal e que é portanto essencialmente pré-humano e sub-humano.

Pensar que podemos reagir efetivamente contra tal estado de coisas, tomado como um todo, seria frívolo e significaria (a não ser que estejamos simplesmente a tratar de reações intelectuais) ignorar as causas remotas que levaram gradualmente a tal, as quais não podem ser removidas num dia. Mas apesar do sucesso numa larga escala, tomando em conta a orientação geral do mundo moderno, ser no presente muito remota, pode no entanto ser alcançada localmente num círculo de uma elite, por determinado número de indivíduos qualificados. Os únicos pontos de referência, aqui, são valores ascéticos, na significação mais completa, pura e restrita do termo. A afirmação de uma visão ascética de vida é hoje particularmente necessária em vista da força inigualável do elemento “telúrico” e samsárico no mundo moderno.

Os preconceitos criados e encorajados por específicas, anormais e não-arianas formas de ascese já por nós foram removidos. Que ninguém declare, portanto, que a ascese significa renúncia, fuga do mundo, inação, quietismo ou mortificação. A afirmação de um plano de pura transcendência para balançar um mundo que é mais e mais cativo da imanência, é o primeiro ponto e a primeira tarefa. Mas outro ponto, não menos importante, relaciona-se de perto com a mesma ação que é tão querida aos nossos contemporâneos. De fato, um poderia manter que os que desprezam todo o ascetismo nada sabem o que a verdadeira ação realmente é, e o que eles exaltam é meramente uma inferior, castrada e passiva forma de ação. O tipo de ativismo que consiste em febre, impulsividade, identificação, vertigem sem centro, paixão ou agitação, longe de testemunhar poder, apenas demonstra impotência. O nosso próprio mundo clássico sabia isto bem: o tema central da oração ciceroniana Pro Marcello é apenas este: não existe poder mais elevado que o da mestria sobre o próprio. Apenas aqueles que possuam esta mestria podem saber o que é a verdadeira ação, o que os mostra ao mundo exterior, não como aqueles que são atuados, mas como aqueles que verdadeiramente agem. Relembramos o luminoso dito Búdico: aquele que vai, mantém-se de pé; o que se mantém de pé, vai. Por esta mesma razão, nas tradições emanadas da mesma raiz, todo o movimento, atividade, devir ou mudança eram referidos ao princípio passivo e feminino, enquanto ao princípio positivo, luminoso e masculino era atribuído as qualidades particulares da imobilidade, imutabilidade e estabilidade. Podemos, então, afirmar definitivamente a existência de uma ascese que de modo algum significa quietismo mas que é, antes, o pré-requisito de um mais elevado e aristocrático ideal de atividade e virilidade.

Este ideal – seja notado – não é de modo algum um monopólio do Oriente. A ideia básica que aqui estamos a tratar é tradicionalmente ariana, pelo qual podemos também encontrá-la entre nós. A mesma ideia foi expressa no plano metafísico por Plotino quando ele falou do devir que é só “a fuga de seres que são e que não são”, ou por Aristóteles quando ele discutiu o “Motor Imóvel”, ou, no plano ético, pelos estóicos romanos com a sua ênfase no elemento sideral e imutável da mente como base de todo o esforço e dignidade humanos. Aquele que é a causa e mestre efetivo do movimento, não se movimenta. Ele inspira movimento e direciona a ação, mas ele próprio não atua, no sentido em que ele não é transportado, ele não é envolto em ação, ele não é ação, mas é, pelo contrário, uma impassível, completamente calma e imperativa superioridade, da qual a ação provém e da qual depende. Como oposto a esta ideia da ação verdadeira e dominada, que só é pensável, no entanto, como base na purificação do elemento samsárico, aquele que age enquanto se identifica com a sua ação, impulsivamente, instado pela paixão, pelo desejo, pelo irracional, por necessidade inquieta ou por interesse vulgar, tal não age verdadeiramente, mas é atuado. Quanto paradoxal possa parecer, a sua ação é passiva – ele encontra-se sob o signo, não da virilidade, mas da feminidade. E sob o signo da feminidade, todo o “telúrico” e ativista mundo moderno também se encontra. É apenas uma mais baixa, antiaristocrática forma de ação que aqui predomina. De outro modo, na verdade ele trai aquele meio-desejo de ensurdecer e distrair, aquela agitação e clamor que revelam pavor ao silêncio, a isolação interna, o ser absoluto de natureza superior, ou torna-se uma arma empregue na revolução do homem contra o interno que de facto marca o limite da “ignorância” samsárica e a intoxicação dos seres caídos.

Tudo isto é geralmente verdadeiro no que toca ao ascetismo como um todo. Mais particularmente, é até possível demonstrar historicamente que as antigas formas de ascese Ariano-Oriental são também capazes desta aplicação. Não podemos esquecer que, se o Oriente, tanto indo-europeu como asiático, não deu até agora ao homem moderno a impressão, por certos aspetos, de ser uma civilização ativamente prática, isto não se deve a uma falta de força, mas ao fato de ter absorvido as suas energias principais na direção vertical que está para além do devir e da história; poucos dos bem-nascidos nestas civilizações tiveram, ou têm ainda agora, muito interesse noutras formas de realização. Mas onde estas realizações, através de circunstâncias externas ou através do desenvolvimento de vocações especiais, adquiriram um certo poder de atração sobre o espírito, o Oriente mostrou, no mesmo plano da ação, o que a energia e a vontade podem atingir quando são moldadas essencialmente pela visão ascético de vida. Qualquer que objete e apontar, por exemplo, o mais recente estado político da Índia, esquece que este país, aparte dos seus épicos originais, teve o seu próprio ciclo imperial sob Chandragupta e sob Asoka, um soberano que foi profundamente budista. Além disto, não conhecemos nenhum texto ocidental no qual o heroísmo e a ação guerreira tenham recebido uma justificação transcendental tão precisa e uma transfiguração tão elevada como no Bhagavad-Gita; enquanto num outro nível é bem conhecido que de todas as tropas a Inglaterra juntou no seu império, aqueles providas pela Índia eram as melhor qualificadas, compostas como eram, não por “soldados”, mas por guerreiros por raça e vocação. E foi da estirpe guerreira, como vimos, que procedeu o Príncipe Siddhartha.

Mas um melhor exemplo é-nos fornecido pelo Japão. Tem sido afirmado que a guerra Russo-Japonesa, para grande surpresa da maior parte do mundo europeu, mostrou-nos como a suposta “emasculada imobilidade oriental”, podia propositadamente e heroicamente lutar, em terra e no mar, a chamada viril mobilidade ocidental. O heroísmo dos japoneses, educados por um milénio e meio pela doutrina budista, mostrou-nos sem margem para dúvidas que o Budismo não é o opiato que todos previamente imaginavam. Aquele que leve os interesses do Ocidente no coração devia até esperar que o futuro não crie uma mudança de mente nos povos orientais onde eles são levados a aplicar contra o Ocidente o seu enorme potencial espiritual; que o poder que foi criado por uma visão ascética de vida milenar deva ser direcionado ao plano temporal no qual a maior parte da Europa, tendo-se desligado das suas melhores tradições, decidiu concentrar-se.

Não foi inteiramente sem intenção que, no final deste livro, tenhamos falado do Budismo Zen. Esta particular forma esotérica da doutrina Budista foi a mais congenial à nobreza japonesa guerreira e o Zen foi até designada da “religião do samurai”. De acordo com o ponto de vista japonês, se um homem é um homem, e não um animal, ele só pode ser um samurai: corajoso, ereto, confiável, viril, fiel e cheio de dignidade controlada e pronto para qualquer sacrifício ativo. Mas os preceitos de virilidade, lealdade, coragem, controlo da mente, instintos, ação e desdém por uma vida dócil e luxo vazio – todos estes são elementos do Bushido, as éticas da nobreza guerreira Samurai, encontrados na ascese Zen, que derivam da Doutrina Budista do Acordar a sua confirmação, integração e também a sua base transcendental. Era assim que o nobre japonês era capaz de uma muito especial e incondicionada forma de heroísmo: não “trágica” mas “Olímpica”, o heroísmo daquele que pode dar a sua vida completa sem lamentações, com uma visão clara do fim à vista e com um desprezo total pela sua própria pessoa, porque ele não é vida e não é pessoa, mas já participa do supra-individual e supra-temporal.

Estes são só exemplos; e não desejamos dar a ideia de que estamos a fazer uma defesa do Oriente e do Extremo-Oriente. Deixem-nos repetir: estamos aqui a lidar com visões gerais de vida, uma distinção entre Oeste e Este não entre em discussão já que a oposição é uma de natureza supra-nacional e supra-continental. A nossa própria Idade Média também conhecia um heroísmo sagrado, e a sua história também mostra, em golpes majestosos, como um ciclo heroico – onde a correspondente vocação esteja presente – pode desenvolver-se sob a influência de uma visão ascética de vida, mesmo que esta visão apresente desvios, falhas e limitações de importância consideráveis como acontece no caso do Cristianismo. Seja como indiferença para além da ação, ou como indiferença na ação e pela ação, existe aí uma tradição comum. Propositadamente fizemos uso considerável do termo “Olímpico” para fazer relembrar aqueles que podem esquecer. Do antigo mundo Olímpico-Mediterrânico, onde a oposição entre a região do ser e da região do devir, entre o ciclo da geração e o supra-mundo corresponde exatamente à oposição Indo-Ariana entre samsara e nirvana, nós derivamos a nossa mais elevada herança, aquela que o mundo moderno esqueceu mas que ainda persistia em alguma medida entre os elementos germânicos e romanos do melhor da Idade Média. A visão de vida Olímpica, à qual todo o verdadeiro valor ascético está intimamente ligado, é o mais elevado, mais original e o mais ariano do Ocidente. Carrega o símbolo de tudo o que, num sentido superior, pode ser chamado de clássico e de aristocrático.

Um retorno aos valores ascéticos pode, então, ser concebido em duas formas e em dois graus. Uma formação de vida recém-orientada em direção ao elemento extra-samsárico e sideral pode, no primeiro plano, ensinar o que ação e mestria verdadeiras são a todos os que conhecem apenas as suas formas mais obscuras e irracionais. No segundo lugar, a ascese como a afirmação de transcendência pura, como distanciamento, não só em ação, mas também para além da ação, em direção ao acordar, pode assegurar que o imóvel não é derrubado pelo mutável, que as forças de centralidade, forças do mundo do ser estão dispostas contra as forças do devir. Nem devíamos pensar deste segundo processo como o que tivéssemos que fazer com convidados de pedra num banquete dos agitados e fanáticos. Para inspirar e estabelecer, mesmo em seres fragmentados e desconhecidos, forças extra-samsáricas, pode uma ação cujos efeitos invisíveis, mesmo no plano da realidade visível e histórica, ser considerada mais importante do que muitos podem julgar. É um ensinamento budista que os Ariya são capazes de trabalhar de uma distância, para o bem de muitos, tanto na esfera humana como na “divina”, e que estas esferas seriam prejudicadas pelas diferenças entre os Ariya. É doutrina budista que quando os Ariya, na sua consciência desindividualizada, enchem o mundo com as suas contemplações irradiantes, podem libertar forças que se espalham nele e que atuam invisivelmente sobre terras e destinos distantes. Pensamos ser possível que caso o curso da história, apesar das aparências, não se deteriorar ainda mais, tal se deva, menos aos esforços e à ação direta de grupos de homens e líderes de homens, do que a influências provenientes, através dos caminhos do espírito, de realizações secretas de alguns anónimos e remotos ascetas, no Tibete ou no Monte Athos, entre os Zen, ou nalgum claustro Trapista ou Cartuxo na Europa. Para um olho acordado, para um olho capaz de ver com a visão de um que se situa Margem-Além, estas mesmas realizações apareceriam como as únicas luzes firmes na escuridão, como os únicos picos emergentes, calmos e soberanos, acima dos mares de nevoeiro abaixo nos vales. Toda a verdadeira realização ascética inevitavelmente transforma-se num suporte – invisível, mas para tudo isso não menos real e eficaz – para aqueles, que, no plano visível, resistem e lutam contra as forças de uma idade obscura.

Por último, diremos algumas palavras acerca de uma classe especial de leitor que se interessa por “espiritualismo”. Já advertimos, no nosso Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo, tais leitores contra os erros e as confusões que se criaram por muitas tendências modernas através de aspirações confusas ao sobrenatural e ao suprassensível. Caso alguém erroneamente nutra tais aspirações, ele deve tomar cuidadosamente em conta tais erros e confusões e, acima de tudo, não se enganar ao pensar que a verdadeira realização do que se encontra para lá da condição humana é possível sem uma rigorosa preparação e consolidação “ascética”. Dadas as condições na qual o ocidental agora se encontra e as quais temos frequentemente mencionado, tal preparação é, hoje mais que nunca, indispensável. Devemos assim estar sem ilusões sobre a verdadeira natureza do conhecimento ou da disciplina “oculta”, particularmente quando estamos a lidar com o que os nossos contemporâneos põem à liça. Uma doutrina, tal como a que temos discutido, dá uma ideia muito boa da possibilidade de um caminho ariano e aristocrático para além da existência samsárica. Este caminho não terá necessidade de ajudas “religiosas”, dogmas ou moralidades triviais, e correspondente genuinamente à vontade pelo incondicionado. Mas, ao mesmo tempo, esta doutrina mostra não menos claramente as condições preliminares para a ascese e o desapego que são absolutamente imperativos para qualquer empresa de natureza transcendente. Também mostra que o caminho para o acordar - idêntico no seu espirito com toda a verdadeira “iniciação” – é absolutamente irreconciliável com tudo o que está implicado pelo misticismo confuso, cultos mediúnicos, o subconsciente, visionarismo, mania pelos fenómeno e poderes ocultos e contaminações neo-psicoanalíticas. É bem sabido que círculos interessados – sejam confessionistas ou “iluminados” no sentido profano e “crítico” – dependem de tais desvios espirituais na tua tentativa de acrescentar descrédito sobre os ideais e tipos de sabedoria que, de uma forma ou de outra, foram sempre reconhecidos como o ponto culminante de toda civilização normal e tradicional. Para alcançar tal, como indicámos, existe conteúdo parecido no caminho anunciado por uma figura da dignidade e da grandeza do Príncipe Siddhattha – o Buda – e que este caminho, mesmo se só em reflexões distantes e variadas, é agora relacionado à fé de mais de quatrocentos milhões de seguidores, tal perceção deve ser suficiente para prevenir qualquer tentativa de causar erro e confusão de pensamento por tais indivíduos míopes e maliciosos.

No campo oposto, devemos dizer algo em particular em relação a duas correntes: uma, seguida por aqueles que, apesar de se chamarem orientais, se aplicam a “adotar” ideias das tradições antigas na sua própria maneira e a popularizá-las no Ocidente; e a outra, que ambiciona a introduzir o conceito de uma nova “iniciação moderna”.

O primeiro caso traz à lembrança a parábola hindu do homem que, quando rodeado por água numa chuvada imensa, fez uma grande esforço para se libertar de um poço lamacento. No que concerne às tradições orientais, ou antes, às formas variadas orientais da una tradição, a situação com que temos de lidar é diferente daquela que existe no Ocidente. Mesmo no caso de sabedoria transcendental existem textos, na maior parte traduzidos e disponíveis para todos, onde podemos encontrar, numa forma mais pura e completa, tudo o que tais pessoas vulgarizariam e reduziriam, no melhor, a um emasculado reflexo do original. Qualquer que possa deitar a mão aos textos Budistas ou ao Bhagavadgita, ou aos textos de yoga ou da Vedanta, pode calmamente fechar as portas a esses editores e comentadores e adaptadores modernos, deixando a si só a tarefa séria de estudo e realização. Mas, a verdadeira razão para o sucesso de tais exposições novas é encontrada onde elas são mais acomodatícias, menos rígidas, menos severas, mais vagas e prontas a encontrarem-se com os preconceitos e as fraquezas do mundo moderno. Que todos tenham a coragem de buscar no fundo de si o que realmente procuram.

A segunda corrente difere da primeira no que não faz tentativa de adaptar ou espalhar um tipo de sabedoria que é nem antiga nem oriental. Ao contrário ela mantém que tais formas de conhecimento são inadequadas para o homem de hoje que requer de modo geral uma forma de “iniciação” moderna. Isto é baseado no evolucionismo aplicado aos assuntos do espírito. Um desenvolvimento evolucionário do mundo e da humanidade é assumido, e é como se até o espírito se devesse conformar a esta lei e seguir o seu desenvolvimento. Não existe traço de tal ideia nos ensinamentos de qualquer escola de sabedoria. O mundo é o que é, samsara, diziam os indo-arianos; κύκλος της γενέσεως, um ciclo eterno de geração, diziam os antigos gregos. E no samsara não existe “evolução”, não existe início e não existe fim. Ao “ir” um não atinge o “fim do mundo”. A direção em que poderemos encontrar acordar e libertação, a direção da iniciação, é vertical e nada tem a ver com o curso da história.

Certamente, a condição do homem moderno é muito diferente daquela do homem antigo – e no curso deste estudo temos repetidamente enfatizado tal facto. Uma “queda” ou uma “descida” teve lugar, o que não é de forma alguma um acontecimento num esquema evolucionário, designado a produzir um “final feliz”, algo mais elevado do que tenha existido antes. Se esta queda contém algum significado, é aquele que demonstra o terrível poder da liberdade do espírito que pode planear e produzir a sua própria negação. Portanto a única coisa a fazer é admitir que os ensinamentos antigos não podem ser usados hoje sem a devida consideração e que o homem moderno deve-se aplicar a uma ingrata tarefa de reintegração: ele deve fazer-se regressar espiritualmente a um estado de mente que, sempre e em toda a parte, foi o ponto de partida de uma via que é essencialmente única. Não há espaço para “iniciação moderna” num sentido específico; por definição tudo o que é moderno está em contradição com qualquer coisa que tenha a ver com iniciação.

Se, quando falamos de “iniciação moderna” desejamos chamar a isso as características de uma “ciência espiritual”, de uma disciplina que é clara e exata em relação ao mundo suprassensível e aos instrumentos de desenvolvimento interno como a ciência moderna é em relação ao seu campo e instrumentos próprios, então devemos mostrar onde neste respeito ela faz mais do que simplesmente expor o problema.

É para doutrinas tradicionais como aquela que expusemos no presente livro que o leitor que é atraído para a verdadeira espiritualidade se deve voltar, para entender o que “ciência espiritual” significa verdadeiramente: estas doutrinas irão ensiná-lo a claridade do puro conhecimento, divorciado de todas as formas de “clarividência” visionária, acompanhado a uma soberania espiritual e à vontade de quebrar não só a amarra humana, mas a amarra formada por qualquer outro “mundo”. O homem moderno não tem só que lutar contra o materialismo, mas tem também de defender-se dos ardis e dos fascínios do falso supranaturalismo. A sua defesa será firme e efetiva só se for capaz de voltar às origens, de assimilar as tradições antigas, e então confiar na ascese para levar a cabo a tarefa de restabelecer a sua condição interna. Pelo que é através disto que estas tradições revelarão a ele o seu conteúdo real mais profundo e perene e mostrar-lhe, passo a passo, o caminho. Em conclusão, gostaríamos de repetir a antiga fórmula augural romana: quod bonum faustumque sit. Contaríamos como afortunada se esta nossa modesta contribuição para o entendimento da espiritualidade pré-moderna servisse a alguém mais que uma simples leitura. Só então repetimos a fórmula do Ariya: katam karaniyam – feito foi o que tinha de ser feito”.



* Uma das montanhas mais frequentadas por Buddha e o local onde muitos dos seus discursos ocorreram.


Tuesday, August 15, 2017

Futebol - Desporto Satânico

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O aparecimento do desporto de massas é um dos fenómenos típicos da modernidade, do qual o futebol é sem dúvida o seu exemplo mais proeminente.

Sendo uma atividade desportiva que consome tantos recursos e devoção pelas atuais massas humanas, é de notar – á semelhanças de outras importantes manias atuais – a pouca atenção dada às causas fundas da sua popularidade e da devoção que tributa tanto a praticantes como a seguidores. Para além das interpretações marxistas do futebol como ópio do povo – que o é a um nível superficial – e de outras explicações sociológicas, os comentadores atuais, muitos dos quais professam amor confesso a um qualquer clube, parecem admitir um certo irracionalismo nesta obsessão, mas fazem sempre referência ao amor clubístico como algo mais ou menos natural e até mesmo saudável.

Cumpre reconhecer a contradição que a muitos parece passar totalmente ao lado: a de, numa sociedade que se preza por ter ultrapassado os chamados “dogmas de fé” e que afirma o positivismo e o racionalismo como móbeis da ação humana, existirem e cresceram fenómenos de adoração de massa que arrebatam as energias e paixões de setores cada vez mais extensos da humanidade.

Propomo-nos neste artigo deixar algumas bases para entender o presente culto futebolístico e explicar que não é por acaso ser esta modalidade a mais seguida no Mundo, já que ela, de todos os outros desportos disponíveis, partilhará mais do corrente pathos modernista. Mais, entendemos que o futebol, do modo como é praticado e seguido, poderá ser considerado o desporto satânico por excelência – satânico aqui entendido menos no sentido escatológico das religiões abraâmicas, mas mais como conjunto de forças subterrâneas que, não sendo mais controladas pela alta espiritualidade de caráter solar que outrora prevalecia, guiam hoje sem freio as ações e atitudes humanas sobretudo no espaço territorial a que se chama de Ocidente.

1.      O Desporto das Massas:

Na tentativa de encontrar as origens deste desporto, podemos recuar, pelo menos, à Idade Média Europeia, onde por vezes a turba dos primeiros aglomerados urbanos (o início das cidades na aceção moderna do termo, habitadas por massas informes anónimas) exteriorizava a sua agressividade e os seus instintos mais ferozes ao pontapear um objeto de forma circular pelas ruas e campos adjacentes.

Não sendo este ainda o desporto a que hoje chamamos futebol, é de notar como o seu antecedente nasceu desta forma “espontânea” em elementos da classe popular de estrato mais baixo que, no frenesim da multidão, chutavam a bola sem destino e que no seu fulgor a seguiam para onde esta os levasse e onde a ação do indivíduo que momentaneamente pontapeava o objeto era rapidamente submergida pela força da massa ululante em que este então se perdia.

Esta expressão do irrequietismo das massas de então não podia diferir mais das atividades que envolviam esforço físico por parte da nobreza (cavalaria ou esgrima, por exemplo), que eram por natureza individuais, exigiam um controlo intenso da mente e do corpo, eram precedidas por anos de preparação e obedeciam a um sem número de códigos de honra e de conduta de natureza imemorial, sem os quais as suas práticas não fariam sentido.

Podemos afirmar que o futebol surgiu como uma atividade própria do demos, de significação totalmente contrária à atividade nobre; mais, o seu surgimento nesta altura significou, acima da expressão da natureza própria daqueles que, guiados por forças subterrâneas, se juntavam à sua prática, a derrota das forças espirituais que até então as tinham contido no plano material.

Não é curioso notar como, passados séculos, o futebol é hoje essencialmente praticado por homens que provém dos elementos das camadas mais destituías e menos cultivadas da nossa sociedade? Como o são sem dúvida os adeptos mais fervorosos das equipas que vemos a apoiar as respetivas equipas no estádio ou a celebrar na rua, raras vezes sem violência física e verbal.

O futebol é essencialmente um desporto de massas para as massas. É fascinante notar como pessoas que normalmente apresentam um módico de educação e decoro, quando num ambiente de estádio ou mesmo a jogar com os amigos, recorrem frequentemente ao palavrão e a atos de violência física, já que nesses ambientes o que predomina é o ambiente demónico que dantes guiava as massas quando estas se empurravam umas às outras para chutar uma bola.

Quanto ao modo como é praticado, como já acima fizemos referência, nada no futebol se pode comparar à dignidade superior de um cavaleiro, à disciplina militar de um escalador ou à paz de corpo e alma de um atirador de arco; ademais, a violência, a falta de graça e controlo das emoções dos protagonistas, o grassar das ações vis, simulações, agressões e insultos entre praticantes, não deixam dúvidas quanto à natureza desta atividade física.

O futebol, como símbolo e efeito, explica a consagração das forças demónicas do chamado 4º estado que venceram em quase toda em linha as viris forças espirituais que se lhes opunham, já que são aquelas que guiam as modernas massas humanas, sejam estas de qualquer estrato socioeconómico que se julguem pertencer.


 1.  O Futebol como Anti-Religião:

Ao contrário do que o endoutrinado homem moderno pensa, o mundo espiritual não conhece o vazio. E se dantes com razão poderíamos dizer que as forças da verdadeira Tradição operavam ou, pelo menos, procuravam conter as forças ditas satânicas, hoje podemos afirmar que as últimas têm livre-rédea para atuar sob uma massa disforme que, sem referências superiores, se encontra mais que nunca à sua mercê, sempre sem o saber.

Não é pois de admirar ver o mais vitriólico ateísta, o chefe sindical, o intelectual cosmopolita, o líder de indústria ou o moderno cacique político, depois de prezarem os tempos atuais de libertação contra as “longas noites negras” do passado, num qualquer Domingo à tarde, vestidos da mesma indumentária que o resto dos congregantes e num templo titânico de adoração, a ulular em paroxismos de êxtase e desespero os modernos deuses do desporto, em uníssono com o restante magma humano.

À semelhança do centro comercial, do computador e da televisão, o estádio de futebol funciona como o templo escolhido pelo homem moderno para expiar as suas frustrações e projetar os seus anseios e desejos, o qual frequenta religiosamente.

Mas se pelo menos na Igreja ainda havia a intermediação de um ser com qualidades superiores responsável por ministrar o rito e assim permitir algum contato, por pequeno que fosse, entre Deus e a congregação - que atendia à cerimónia de forma voluntária - não deixa de ser preocupante que os fenómenos de fervor religioso modernos como o futebol sejam executados de forma passiva, sob outra guisa.

E para comprovar o caráter subversivo do futebol, é interessante constatar que a intermediação com as forças espirituais não é feita por um ser dotado de preparação especial ou capacidades inatas, mas precisamente pela massa humana na sua capacidade mais vil e rebaixada – qualquer pessoa que já esteve num estádio reparará que há um conjunto de adeptos mais fervorosos (como já acima referimos, representantes por excelência do 4º estado) que iniciam a maior parte das reações coletivas dos adeptos, os quais a maioria de pronto segue e copia, tanto nos modos como nas palavras.

Haverá porventura maior exemplo de satanismo moderno que o de uma celebração coletiva ministrada (não de forma consciente, mas sim guiada por forças subterrâneas) pelos elementos mais grosseiros da sociedade, os quais são copiados na sua vileza e baixeza pela restante massa humana que assim perde toda a sua individualidade e personalidade, a pretexto de apoiar meros seres humanos embrutecidos num terreno de jogo?


 2. O Irracionalismo no Futebol:

O moderno fenómeno futebolístico aparece como algo que apela ao lado mais irracional do ser humano, e isto visto não no que poderia de ter de positivo caso fosse uma busca das possibilidades sobrenaturais do ser humano ou de algo que potenciasse realizações metafísicas, mas precisamente no que é mais obscuro e animalesco nele, no seu substrato inconsciente e subconsciente.

Cabe notar que o adepto médio deste desporto, muito mais que uma verdadeira paixão pelo jogo, desenvolve acima de tudo um fanatismo para com o seu clube ou jogadores favoritos, com cujo sucesso, contra o que seria de esperar numa perspetiva puramente racional, ele totalmente se identifica e cujo destino vai contribuir para o seu estado de espírito. 

 Existe uma adoração semelhante à antiga devoção totémica por tribos antigas que se identificavam sobretudo com a adoração da Terra e animais, com os quais a respetiva estirpe comungava origem e destino.

E basta notar que há algo de mais profundo e outras forças em jogo quando se constata que a escolha de uma equipa como objeto de devoção é somente baseada em puros fatores emocionais, familiares e mesmo de integração de grupo, que são base para manter um fanatismo e tribalismo que se identificam com o que acima foi dito.

Também se pode dizer que tudo o que podia servir como base de apoio para realizações superiores tanto para os desportistas bem como para os adeptos (atente-se ao caráter essencialmente religiosos tanto dos originais Jogos Olímpicos como do Circo Romano), descamba numa exaltação de estados instantâneos de alegria raivosa ou de fúria profunda, imitados pelos jogadores, numa atividade que, totalmente secularizada, só funciona como leve bálsamo para as massas urbanas que o usam momentaneamente para esconder o vazio da existência moderna e o niilismo em que operam.

Como de outra maneira entender o apego fanático que alguns membros “destacados” da nossa praça mostram para com a sua equipa de futebol, traindo uma violência e agressividade da sua parte que não se coaduna de modo algum com a imagem exterior que utilizam no cumprimento das suas funções?

Faremos uma referência breve ao jogo do futebol em si que confirma a irracionalidade que o próprio jogo pressupõe: a expetativa que existe noutros desportos coletivos na marcação de um regular número de pontos para cada equipa durante uma partida, não existe no futebol, já que neste é comum a existência de um reduzido número de golos, não sendo raro de todo a partida concluir-se sem qualquer golo. Um jogo de futebol é composto essencialmente por ações mais ou menos desconexas praticadas por um conjunto de jogadores de cada equipa, que passam uma hora e meia a lutar entre si e a chutar a bola para o outro campo, com raros momentos de verdadeira beleza, composto essencialmente por um atleticismo agressivo, de natureza essencialmente bruta; jogadores e adeptos esperam acima de tudo, quase como que suplicantes, por um momento de catarse que o golo lhes proporcionará e fará todo o tempo perdido até então ter valido a pena.

Alguns comentadores políticos americanos já notaram, mais perspicazmente do que se lhes dá crédito, que a crescente popularização deste tipo de futebol europeu niilista, o soccer, em relação ao seu futebol americano - com o seu cariz essencialmente militar de natureza mais masculina - constitui um sintoma da decadência americana no que entendem ser uma “europeização” dos Estados Unidos, no que aquela tem de pior.


 3. O Futebol como Desporto Global:

Como é demais sabido, o fenómeno “futebolístico” não para de crescer e, à semelhança de outros fenómenos modernos que acompanham a crescente globalização, ameaça submeter sociedades ainda relativamente tradicionais à sua adoração.

Já hoje o futebol funciona como o grande equalizador dentro de cada país e sociedade, onde antigas diferenças de educação e status são esquecidas aquando da celebração do culto futebolístico, mas também em termos transnacionais e transculturais – em qualquer local do mundo o futebol funciona como fator comum de contacto e algo que todos aproxima as pessoas independentemente da origem e educação, já que a maioria partilha da paixão pelo jogo.

E se dantes as equipas de futebol mantinham algo de nacional ou regional, hoje elas não são mais que interpostos comerciais para jogadores e homens de negócios fazerem fortuna numa indústria global, mais se assemelhando a multinacionais com consumidores nas 4 partes do globo do que a associações desportivas, exploradas pelos mesmos homens sem escrúpulos que tudo capitalizam e monetizam – os que são, de facto, os principais beneficiários materiais desta devoção de muitas “almas”.

Seja no estádio ou na televisão, biliões de seres estão constantemente hipnotizados na religião moderna, umas vezes vencendo, outas vezes perdendo, mas acima de tudo partilhando uma mesma experiência espiritual regressivo-passiva comum.

Como se vê o futebol acaba por ser um tentáculo da moderna universalização e estandardização do homem que está em curso e para a qual caminhamos: uma aldeia global de seres equalizados e nivelados, que, vestindo todos a mesma camisola, partilham dos mesmos gostos, as mesmas paixões e os mesmos conhecimentos superficiais, acima de qualquer particularismo regional, político ou religioso que possam ter - enquanto estes ainda subsistirem!   

E aqui não deixa de ser de notar que, tendo o futebol nascido no Ocidente, este se expande e conquista cada vez mais o Oriente, seguindo a mesma direção de outros mitos modernos de confeção “europeia” cuja exportação para terras orientais contribuiu para a implementação também aí das ideias subversivas da Contra-Iniciação global.


Numa época em que a subversão é a palavra-chave, em que se prefere o exterior ao interior, o terreno ao céu, o inferior ao superior, o plebeu ao real, só os mais ingénuos e crédulos não podem notar a ironia subversiva de ser esta atividade apodada de “desporto-rei”.

Wednesday, August 9, 2017

Audio: Revolta Contra o Mundo Moderno - Introdução e Capítulo I

Tendo já colocado a conclusão do livro, decidi aqui ir publicando o áudio da Revolta Contra o Mundo Moderno, esperando que tal exercício aproveite a quem busca a Verdade.

Em baixo encontrarão a Introdução e o primeiro capítulo, intitulado O Princípio.

Caso alguém tenha dúvidas quanto à estrutura da obra ou outras sugestões relativas ao áudio, por favor não hesite em deixar comentário. 



Audio: Revolta Contra o Mundo Moderno - Conclusão

Deixo em baixo o áudio da conclusão do livro Revolta Contra o Mundo Moderno, de Julius Evola.

Depois das 2 partes do livro onde apresenta as características do mundo da Tradição e apresenta as civilizações e períodos da histórias que desaguaram no mundo moderno, o mundo da anti-tradição,respetivamente, Evola expõe aqui realisticamente, diríamos melhor pessimisticamente, as possibilidades de retorno da humanidade à verdadeira Tradição, avisando das falsas ilusões e das vias que estão abertas àqueles que combatem os chamados "ventos da história".


Importante o aviso feito ao homem ocidental da ilusão que um mero retorno ao catolicismo suporá, já que este não se mostrou suficientemente forte para conter as forças subversivas, mesmo em condições infinitamente mais favoráveis às do mundo atual.



Tuesday, August 8, 2017

Ofícios Antigos e a Indústria Moderna




Em baixo deixo a tradução do capítulo VIII, do livro de René Guenon intitulado “O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos”, originalmente publicado em francês em 1945, e do qual aqui se traduz da edição inglesa de 2001 da Editora Sophia Perennis.

Constituindo este livro uma explanação mais desenvolvida do diagnóstico feito pelo autor no seu “Crise do Mundo Moderno”, principalmente no que toca à crescente quantificação do mundo, suas causas e, muito interessante, no que constituirá o seu apex.

O presente capítulo apresenta o contraste entre a natureza moderna do trabalho, de caráter demónico, com as antigas artes e ofícios que ligadas a sistemas verdadeiramente tradicionais permitiam uma via para o conhecimento iniciático, para além da sua função integradora no contexto social e económico. Realçar aqui que esta via esotérica estaria aberta independentemente da particular religião ou legislação exotérica prevalente na respetiva comunidade, contando que as vias de possibilidades de tal iniciação se encontrassem abertas, o que hoje já praticamente não acontece.



Ofícios Antigos e a Indústria Moderna

Existe um grande contraste entre o que os antigos ofícios costumavam ser e o que a indústria moderna é agora, e isto mostra no seu essencial outro caso particular e ao mesmo tempo uma aplicação prática do contraste entre um ponto de vista qualitativo e quantitativo, que predomina num e noutro, respetivamente. Em ordem para ver a razão de tal, é útil notar primeiro que tudo o que a distinção entre artes e os ofícios, ou entre o “artista” e o ”artesão”, é em si mesma algo especificamente moderno, como se tivesse nascido da desvio e da degeneração que tem levado à substituição em todos os campos da conceção tradicional pela conceção profana. Para os antigos o artifex era indiferentemente o homem que praticava uma arte ou um ofício; mas ele era, para dizer a verdade, algo que nem o artista nem o artesão são hoje, se essas palavras são usadas no sentido moderno (ademais a palavra “artesão” tende mais e mais a desaparecer da linguagem contemporânea); ele era algo mais que tanto um como o outro porque, ao menos originalmente, a sua atividade estava delimitada por princípios de uma ordem muito mais profunda. Se os ofícios costumavam englobar de uma forma ou outra as artes propriamente ditas, tal é porque a natureza dos ofícios era verdadeiramente qualitativa, já que ninguém pode recusar admitir que tal é a natureza da arte, mais ou menos por definição. No entanto, os modernos, por essa mesma razão, estreitamente restringiram a sua conceção de arte, relegando-a a uma espécie de domínio fechado sem conexão com o resto da atividade humana, isto é, com o que consideram que constitui a “realidade”, usando a palavra no mesmo sentido cru que esta tem para eles; e eles vão ao ponto de livremente atribuir à arte, roubada portanto de toda a sua significação prática, o carácter de um “luxo”, um termo totalmente característico da que pode sem qualquer exagero ser chamada da “parvoíce” do nosso período.

Em toda a civilização tradicional, como tem sido posto à evidência, toda a atividade humana de qualquer tipo é sempre considerada como derivada essencialmente de princípios. Isto é conspicuamente verdadeiro para as ciências, e não é menos verdade para as artes e para os ofícios, e existe adicionalmente uma ligação próxima entre elas todas, já que de acordo com uma fórmula postulada como um axioma fundamental pelos construtores da Idade Média, ars sine scientia nihil; a ciência em questão é com certeza ciência tradicional, e certamente não ciência moderna, a aplicação da qual pode dar nascimento a nada exceto à indústria moderna. Por esta ligação a princípios, a atividade humana podia dizer-se estar como que “transformada”, e em vez de estar limitada ao que é em si mesma, nomeadamente, a uma mera manifestação externa (e o ponto de vista profano consiste nisto e nada mais), ela é integrada com a tradição, e constitui para aqueles que a desempenham um meio efetivo de participação na tradição, e isto é como dizer que carregava consigo um caráter verdadeiramente “sagrado” e “ritual”. Isso é porque pode ser dito, em qualquer civilização, que “toda a ocupação é um sacerdócio”;1 mas em ordem para evitar conferir a esta última palavra uma maior ou menor extensão de sentido ilegítima, se não uma falsa, deve se claro que sacerdócio não é sacerdócio a não ser que possua algo que foi preservado apenas nas funções sacerdotais, desde o tempo em que a prévia não existente distinção entre sagrado e profano surgiu.

Para ver o que se significa pelo caráter “sagrado” de toda a atividade humana, mesmo que só de um ponto de vista exterior, ou, se preferido, exotérico, é só preciso considerar uma civilização como a Islâmica, ou a civilização Cristã da Idade Média; é fácil ver que nelas as mais comuns ações da vida têm algo de “religioso”. Em tais civilizações a religião não é algo restrito, estritamente limitado e que ocupe um lugar aparte, sem influência efetiva em nada mais, como o é para os modernos Ocidentais (pelo menos para os quais que ainda consentem em admitir a religião de todo); pelo contrário ela penetra toda a existência do ser humano, ou melhor, ela abraça dentro do seu domínio tudo o que constitui essa existência, e particularmente a vida social propriamente dita, tanto que não existe realmente nada que sobre que seja “profano”, exceto no caso daqueles que por uma razão ou por outra estejam fora da tradição, mas quaisquer desses casos representam então nada menos que uma mera anomalia. Noutros lugares, onde a palavra “religião” não pode ser propriamente aplicada à forma da civilização considerada, existe no entanto uma legislação tradicional e “sagrada” que representa um papel equivalente mesmo que tenha um caráter diferente, sendo considerações similares então aplicadas a todas as civilizações tradicionais sem exceção. Mas existe algo mais: olhando para o esoterismo em vez do exoterismo (sendo estas palavras utilizadas por conveniência apesar de não serem estritamente aplicáveis a todos os casos da mesma maneira) torna-se claro que existe, de uma forma geral, uma iniciação ligada aos ofícios e que os utilizam como a sua base ou o seu “suporte”;2 estes ofícios devem portanto ser capazes de uma significação superior e mais profunda se eles são supostos de providenciar um caminho de acesso ao domínio iniciático, e é por razão do seu caráter essencialmente qualitativo que evidentemente tal coisa é possível.

A noção que mais ajuda em direção a um entendimento deste ponto é aquela que a doutrina Hindu chama de svadharma. Em si esta noção é inteiramente qualitativa, já que implica a realização por qualquer ser humano de uma atividade conforme com a sua particular essência ou natureza, e daí ser conforme à “ordem” (rita) no sentido já explicado; e é esta mesma noção, ou antes a sua ausência, que indica tão claramente onde a conceção profana e moderna falha. De fato, de acordo com a conceção moderna um homem pode adotar qualquer profissão, e até mudá-la se tal favorece o seu capricho, como se a profissão fosse algo totalmente fora dele próprio, não tendo qualquer ligação com o que ele realmente é, isso por virtude do qual ele é ele próprio e não qualquer outro. De acordo com a conceção tradicional, de outro modo, cada pessoa tem normalmente de cumprir a função para a qual ele está destinado pela sua própria natureza, usando as particulares aptitudes essencialmente implícitas na sua natureza como tal;3 ele não pode cumprir uma função diferente exceto sob custo de uma desordem séria, a qual terá as suas repercussões em toda a organização social de que ele é uma parte; e muito mais que isto, se tal tipo de desordem se tornar geral, começará a ter um efeito no próprio ambiente cósmico, já que todas as coisas estão ligadas por rigorosas correspondências. Sem desenvolver mais este último ponto, apesar de uma aplicação às condições modernas poder bem ser feita, o que foi dito até agora pode ser então sumarizado: de acordo com a conceção tradicional, são as qualidades essenciais dos seres que determinam as suas atividades; de acordo com a conceção profana de outro modo, estas qualidades já não são tomadas em conta, e os indivíduos são considerados não mais que permutáveis e puramente “unidades” numéricas. A última conceção pode só logicamente levar ao exercício de uma atividade integralmente “mecânica”, na qual nada resta de verdadeiramente humano, e isso é exatamente o que podemos ver acontecendo hoje. É quase desnecessário dizer que as atividades “mecânicas” dos modernos, que constituem indústria propriamente dita e que são só um produto de um desvio profano, não podem oferecer qualquer possibilidade de uma iniciação de qualquer tipo, e mais, elas mais não podem ser que obstáculos ao desenvolvimento de toda a espiritualidade; de fato elas não podem propriamente ser consideradas como autênticos ofícios, se essa palavra quer reter a força do seu significado tradicional.

Se o ofício é como se fosse uma parte do próprio homem e uma manifestação ou expansão da sua própria natureza, é fácil ver como pode servir como base para uma iniciação, e porque é a melhor base possível numa maioria de casos. Iniciação tem de fato como o seu objetivo a superação das possibilidades do indivíduo humano como tal, mas não é menos verdade que pode apenas tomar tal indivíduo como ele é como ponto de partida, e então só por apoio no seu lado superior, isto é, por juntar-se ela própria áquilo que nele é verdadeiramente qualitativo; então a diversidade de caminhos iniciáticos, em outras palavras, dos meios usados como “suportes” em ordem para se adaptar às diferenças das naturezas individuais; estas diferenças tornam-se, no entanto, de menos importância à medida que o tempo passa, em proporção com ser avançar no seu caminho e que portanto se aproxima do fim que é igual para todos. Os meios empregues não podem ser efetivos a não ser que eles realmente sirvam a natureza própria do ser aos quais eles se aplicam; e já que é necessário trabalhar a partir do que é mais acessível em direção ao que o é menos, do exterior para o interior, é normal escolhê-los no seio da atividade pela qual a sua natureza se manifesta exteriormente. Mas é óbvio que esta atividade não pode ser usada de qualquer outra maneira que não seja por efetivamente expressar a natureza interior; portanto a questão realmente torna-se uma de “qualificação” no senso iniciático da palavra; e em condições normais, a mesma “qualificação” deve ser um requerimento para a prática do próprio ofício. Tudo isto está também ligado com a diferença fundamental que separa o ensinamento iniciático, e mais geralmente todo o ensinamento tradicional, do ensinamento profano. Tudo que é simplesmente “aprendido” de fora não tem qualquer valor no primeiro caso, independentemente das grandes quantidade de noções acumuladas (para aqui também “ensinamento” profano mostra claramente a marca da quantidade); o que conta é, ao contrário, um “acordar” das possibilidades latentes que o ser traz consigo (o que é, em última análise, o significado real da “reminiscência” Platónica).4

Estas últimas considerações fazem entendível que a iniciação, usando a o ofício como “suporte”, tem ao mesmo tempo, e como se fosse uma num sentido complementar, uma repercussão na prática do ofício. O artesão, tendo realizado totalmente as possibilidades das quais a sua atividade profissional é a sua expressão externa, e portanto possuindo o conhecimento efetivo daquilo que é o verdadeiro sentido da sua atividade, vai então conscientemente atingir aquilo que previamente era só uma consequência bastante “instintiva” da sua natureza; e portanto, já que o conhecimento iniciático nasce do ofício, o ofício por sua vez tornar-se-á o campo de aplicação do conhecimento, do qual não se poderá mais separar. Haverá então uma correspondência perfeita entre o interior e o exterior, e o trabalho produzido pode então tornar-se a expressão, não mais só até um certo grau e de uma maneira mais ou menos superficial, mas a expressão adequada, daquele que o concebeu e o executou, e constituir-se-á numa “obra de arte” no verdadeiro sentido da palavra.

Não há portanto dificuldade em ver o quanto afastado o verdadeiro ofício está da indústria moderna, tanto que os dois estão como que opostos, e quão é tristemente verdade que no “reino da quantidade” o ofício é, como os partidários do “progresso” tão rapidamente declaram, uma “coisa do passado”. O trabalhador em indústria não pode pôr no trabalho nada dele próprio, e muito esforço seria até posto para o prevenir se ele tivesse ainda que a mínima inclinação para o fazer; mas ele não pode nem tentar, porque a sua atividade consiste somente em fazer uma máquina andar, e porque de mais ele é considerado bastante incapaz de iniciativa pela “formação” – ou antes deformação - profissional que tenha recebido, que é praticamente a antítese da aprendizagem antiga, e cujo único objetivo é ensiná-lo a executar certos movimentos “mecanicamente” e sempre da mesma maneira, sem ter de todo que entender a razão deles ou de preocupar-se com o resultado, já que não é ele, mas a máquina, que verdadeiramente fabricará o objeto. Servente da máquina, o homem deve tornar-se a máquina ele próprio, e então o seu trabalho nada terá de verdadeiramente humano, já que não implica pôr ao serviço quaisquer das qualidades que realmente constituem a natureza humana.5 O fim de tudo isto é o que o jargão moderno chama de “produção em massa”, o objetivo da qual é só produzir a maior quantidade possível de objetos, e de objetos os mais exatamente iguais possível, com o objetivo de uso por homens que são supostos não serem menos iguais; esse é de facto o triunfo da quantidade, como foi apontado mais cedo, e é pela mesma bitola o triunfo da uniformidade. Estes homens que estão reduzidos a meras “unidades” numéricas são supostos viver no que dificilmente se podem chamar casas, já que tal seria abusar da palavra, mas em “colmeias” das quais os compartimentos serão todos planeados com base no mesmo modelo, e mobiladas com objetos feitos em “produção de massa”, de maneira a causar o desaparecimento no ambiente em que as pessoas vivem de qualquer diferença qualitativa; é suficiente examinar os projetos de alguns arquitetos contemporâneos (que descrevem os próprios as habitações como “máquinas vivas”) para ver que nada tem sido exagerado. O que então aconteceu à arte tradicional e à ciência dos antigos construtores, ou às regras rituais pelas quais o estabelecimento de cidades e edifícios eram regulados em civilizações normais? Seria inútil pressionar mais este assunto, porque um teria de ser cego para não ver o abismo que separa o normal da civilização moderna, e sem dúvida todos concordarão em reconhecer quão grande a diferença é; mas aquilo que a vasta maioria dos homens hoje vivos celebra como “progresso” é exatamente o que é apresentado agora ao leitor como uma decadência profunda, acelerando continuamente, a qual arrasta a humanidade para o esgoto onde a quantidade pura reina.


1.           A.M. Hocart, Les Castes (Paris: P. Geuthner, 1938), p27. [Caste: A Comparative Study (New York: Russell and Russell, 1968).]

2.           Deve ser notado que tudo o que ainda persiste no Ocidente de verdadeiras organizações iniciáticas, qualquer que seja o seu presente estado de decadência, não tem outra origem que não esta. Iniciações pertencentes a outras categorias desapareceram completamente há muito tempo.

3.           Deve ser notado que a palavra francesa metier é etimologicamente derivada do latim ministerium, e propriamente significa “função”

4.           Neste tema ver particularmente o Meno de Platão.

5.           Deve ser notado que a máquina é num sentido o oposto do instrumento, e não é de modo nenhum um “instrumento aperfeiçoado” como muitos imaginam, já que o instrumento é de certa maneira um “prolongamento” do próprio homem, enquanto que a máquina reduz o homem a nada mais que o seu servo; e, se fosse verdade dizer que “o instrumento cria o ofício”, não é menos verdade que a máquina mata-o; as reações instintivas dos artesões contra as primeiras máquinas falam por si próprias.


Sunday, August 6, 2017

Apologia da Barbárie





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Deuterónimo 21:18-21:
"Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-o eles, lhes não der ouvidos,
Então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; E dirão aos anciãos da cidade; Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; e um comilão e beberrão.
Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá".

Código de Manu, artigo 45:
"Uma mulher está sob a guarda do seu pai durante a infância, sob a guarda do seu marido durante a juventude, sob a guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais conduzir-se à sua vontade"

Lei das XII Tábuas – Tábua 4,2:
”O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los.”

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Da notícia em epígrafe, como esperado, resultaram as reações e os clamores frenéticos da imprensa em geral bem como dos respetivos leitores, como atestam os comentários à mesma e os escritos nas redes sociais, que são hoje um barómetro notável do lixo que atormenta a mente das massas humanas.

O nojo e repugnância causados ao cidadão normalizado já são viscerais, às quais se seguem campanhas indignadas, alertas furiosos e clamores frenéticos para abolir a prática de tais atos. Os que se querem mostrar mais indignados contra o “medievalismo” e – que melhor altura haverá para marcar pontos junto do totem modernista? – vêm prontamente pedir o retorno da pena de morte, acompanhado por sevícias e torturas aos perpetradores. Medidas judiciais preventivas e reintegrativas, o ónus da prova da acusação ou a presunção da inocência só a contragosto se aplicam a este tipo de prevaricadores da ordem social.

Não me interessando falar especificamente deste caso, o qual não conheço em detalhe, parece-me por demais interessante investigar a causa da tão grande celeuma que estes atos causam na nossa sociedade, que a meu ver estão graduados acima da violência sexual contra crianças ou atos de necrofilia, no que concerne à repulsa social causada.

Porque é que uma sociedade que convive com o homicídio de forma diária (assista-se a qualquer noticiário ou a programas e séries televisíveis), que não se indigna com uma violência urbana crescente, que assiste de forma passiva ou ativamente passiva a desastres humanitários que ceifam a vida a milhões de seres humanas e que, inclusive, participa mais ou menos ativamente em campanhas militares internacionais que causam a perda de vida de dezenas de milhares de pessoas anualmente - tem uma reação tão desproporcionada para com este tipo de crimes, que com certeza constituirão uma risível percentagem de assassinatos em qualquer território nacional europeu?

Parece-me que há um conjunto de razões, que podem ser agrupadas numa causa geral: o de estas ações constituírem o maior ato de rebeldia possível ao atual sistema de valores do chamado ocidente. Atente-se bem: 1 - os meliantes não se movem por qualquer interesse social, económico ou vantagem discernível para o cidadão comum, que são o móbil da esmagadora maioria dos crimes modernos; 2 - a ação visa muito menos uma vingança meramente retributiva, mas essencialmente o restabelecimento da honra de uma entidade supra-individual; 3 - a liberdade individual de escolha e de auto-determinação, vistas como entes sagrados nos dias de hoje, foram submetidas a códigos familiares e religiosos; 4 – revela uma conceção da sociedade em que a liberdade individual, e em especial a da mulher, está submetida ao poder patriarcal.

Numa sociedade que vê a total libertação do indivíduo como um desiderato ideal; que se rege por padrões de comportamento que promovem a busca do individualismo acima de quaisquer outros organismos sociais, para além do estado; que não concebe valores mais elevados que a promoção de um bem-estar acéfalo e materialista de indivíduos ou grupos; que secularizou de forma total a vida social; onde a religião se reduziu a uma moralidade mesquinha e que se adapta cada vez mais aos egoísmos privados e às últimas ideologias de “libertação”; onde o papel da família é reduzido cada dia a um acidente biológico que anacronicamente ainda vai subsistindo; onde o homem e a mulher são vistos como seres absolutamente iguais em direitos e deveres e que promove a todos os custos uma utopia distorcida que pretende ignorar que homem e mulher só se cumprem no preenchimento da sua natureza biológica, psíquica e espiritual; onde o papel dos pais é o de mero suporte financeiro aos filhos biológicos, que cada vez mais são endoutrinados para ver a família como uma teia da cuja cabe fugir quanto antes; cujos filhos são, levados por uma psiquiatria doentia a considerar como realidade as partes mais negras da psique, onde os recalcamentos familiares e a culpa dos pais são considerados a força motriz da sua saúde mental; numa sociedade onde as noções de honra não passam de mero atavismo e onde tudo se deve compreender e aceitar em nome do mito da tolerância e de um humanismo que mais não faz que desarmar o que de forte e nobre existe num ser orgulhoso e auto-suficiente – poderá haver crime mais sacrílego que o do Pai que mata a filha porque esta desonrou a família?

Repare-se que muitos dos homicidas de outra ordem encontram apologistas ou racionalizadores nos setores académicos, intelectuais e mesmos judiciais: o pobre que mata o rico fá-lo, muitos dizem, porque aquele se encontra oprimido por estruturas de repressão económica e social, quando não de sistemático racismo, que ajudarão a compreender se não mesmo a atenuar a culpa; o mesmo é extensível a todos os indivíduos e aos mais variados crimes: a mulher, que vive num sistema patriarcal; o pedófilo, que foi reprimido sexualmente na juventude; o negro, que viveu num clima de opressão xenófoba; o jovem, que é inimputável, etc…

 Os últimos séculos no Ocidente, em termos judiciais, foram caracterizados por uma gradual transferência da culpabilidade do delinquente para o Estado e para a sociedade, vistos pela vanguarda que tomou conta dos nossos destinos como os causadoras últimos das amarguras dos cidadãos oprimidos, o que explica em grande parte, se não na totalidade, os respetivos comportamentos criminais (atente-se ao crescimento desproporcional de medidas de coação preventivas e integrativas – aplicação de coimas, penas suspensas, reabilitação, multas,  etc. - em relação à aplicação de penas punitivas pelo Estado ou pelo lesado).

Esta atitude de desculpabilização e de santificação não se aplica ao nosso “delinquente” que toma nas suas mãos a restituição da honra da sua família e restauração da ordem - antítese do criminoso moderno – pelo que a reprovação pública e a severidade penal não terão contemplações.


Cabe-nos a nós, conscientes da total inversão de valores em que o mundo moderno vegeta, reconhecer a sua natureza heroica (não nos permita-mos pensar que os autores não conheciam as severas consequências que as suas ações acarretariam), eco de um conceito de vida que vai definhando e que se exprime por atos de afirmação radicais, de quem acredita que a vida humana está submetida a valores absolutos e de que, apesar de tudo, nos encontramos na Terra para servir o sagrado, a todo custo.

Wednesday, August 2, 2017

Da Nobreza

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Que na Europa e um pouco por todo o Mundo se vive um período de decadência e dissolução é por demais evidente para todos aqueles que têm olhos de ver.

A estas nuvens negras assombradoras sempre houve forças que se opuseram. Se ainda há alguns séculos, e em alguns casos décadas, o combate ainda se fazia no seio da sociedade, na academia, no setor económico, político e inclusive no campo militar, cabe hoje reconhecer, especialmente no mundo ocidental, a derrota das forças reacionárias, já que os tentáculos progressistas podem reclamar uma vitória quase total, pelo que a sua mundivisão reina incontestada, tendo tomado de assalto todas as instituições públicas.

O homem de bem, de forma consciente e inconsciente, sentindo-se instintivamente repelido pela nova ordem negra, faz por reagir: ora ainda tenta criar forças políticas (cada vez mais pequenas e de diminuta expressão), movimentos culturais, associações mais ou menos nostálgicas, debate de ideias dentro do seu círculo próprio e, aqui e ali, atos violentos de caráter desesperado.

Reconhecendo o mérito de todo o tipo de reações contra o tal “estado das coisas”, parece-me que, descontando as pírricas pequenas vitórias que ainda acontecem, todos estes atos têm-se revelado ineficazes face à crescente avalanche de ondas maléficas, pelo que podemos considerar tais atitudes no fundo infrutíferas no grande esquema da situação atual.

Não sendo o acima descrito surpreendente para todo aquele que olha a presente situação com distância e discernimento, cabe-me apontar uma crescente lacuna na chamada atividade de “contra-ataque”, e que parece esquecido ser a mais importante: a nobreza.

Na Europa - e em todas as antigas sociedades ditas tradicionais – sempre houve uma classe “social” que incorporava em si valores sob os quais todas as outras classes e estruturas comunitárias se submetiam. Não querendo entrar aqui em discussões profundas sobre a relação da nobreza com a igreja, cabe reconhecer que aquela, no geral, sempre ocupou, nem que fosse só pela primazia que possuía em termos de força militar, o lugar de topo na sociedade antiga, que exerceu sempre em nome próprio ou por submissão voluntária ao mandato religioso.

Se a nobreza, principalmente desde o período da chamada Baixa Idade Média, esteve essencialmente ligada ao acima referido poder militar e ao domínio de largas porções de terra, como função social externa, cabe reconhecer que ela era e sempre foi – mesmo não o sabendo – a depositária de um conjunto de valores e códigos que superavam em muito tais funções seculares.

Tendo origem imemorial e divina (o seu estabelecimento está consagrado em todos os textos sagrados indo-europeus), a nobreza, especialmente na era pré-cristã, era reconhecida como a depositária dos valores de origem supranatural representantes da elevada espiritualidade que atravessava todas as verdadeiras civilizações do mundo, reflexo terrestre da herança primordial hiperbórea.

E se nos tempos mais recentes, esta “classe” (melhor diríamos - ordem) se secularizou em todo o mundo, passando a estar somente ligada a funções militares e à possessão de terras, a sua importância, como depositária espiritual desse legado primordial, esteve no fundo ligada à sua função de ponte entre o elemento terrestre e o elemento sobrenatural, que é a razão primeira da sua existência em todas as sociedades tradicionais, da América ao Japão.

Esta função natural, fruto da dignidade própria de seres portadores deste legado supra-pessoal, era reconhecida pelos restantes elementos da sociedade, que livremente se submetiam a esta estirpe superior, que simbolizavam o elemento divino ao qual todas as estruturas sociais, atividades, atos e comportamentos se subordinavam e que tinha no seu vértice a figura do Rei, portador máximo desta dignidade, o mais nobre dos nobres.

Aos nossos contemporâneos é quase impossível entender (incapacitados que estão pela historiografia moderna de vertente historicista, secular e materialista) a verdadeira natureza deste organismo piramidal, comum a toda a antiga humanidade que se regia por princípios imemoriais de alta espiritualidade, que não era mantida nem pela força militar ou pela violência (e muito menos por superestruturas de opressão económica, como são de grosso modo as sociedades contemporâneas), mas pelo facto de aquelas se orientarem pelo elemento divino e portanto reconhecerem uma classe de seres que possuíam em si essa componente divina – a nobreza, os únicos homens livres.

Olhando agora para o mundo moderno, parece então fútil perder tempo e entrar em discussões estéreis sobre possíveis alternativas políticas, modelos económicos, análises sociológicas, interpretações “geopolíticas”, ações militares, etc., sem fazer referência ao que causou verdadeiramente a derrocada em que nos encontramos e todas as confusões atuais: o desaparecimento de uma estirpe humana que servia de farol ao resto das massas humanas, que pela sua condição funcionava como reflexo da luz divina e mantinham, mais por estas qualidades que por meras ações externas, presentes no campo terrestre elementos desta solaridade primordial que moldava o organismo social e as ações dos homens submetidos a elas, refreando o elemento demónico que sempre anseia por espalhar o caos por entre as brechas abertas.

Acima de tudo, o apelo que tem de ser feito é aquele que relembra a todos os homens que sentem dentro de si o chamamento para reconectar o seu ser com esse elemento solar, já que, não havendo hoje instituições iniciáticas que permitam a sua ativação, tal só se poderá fazer por um ato de vontade individual de atingir o absoluto.

Esta estirpe de seres nada tem a ver com as “nobrezas” modernas, que no seu esclerosismo mais não são que relíquias vegetativas de um passado que também não compreendem e cuja ligação é feita somente pelo brasão ou apelido, já que o espírito há muito o perderam, pelo que, sem ação interna, continuarão a ser meros espantalhos a caminho da extinção final.
  

O verdadeiro nobre do futuro será aquele que, como os nobres da antiguidade, não se revê no fluxo da matéria; aquele que se conhece como sujeito e não objeto; que desdenha as massas; que se mantém sempre digno, centro de si próprio; que não é “atuado” mas que atua; soberano da sua mente e demais sentidos; que não é influenciado e também não se incomoda; o que age em função do bem e justo, porque tal é a sua natureza; aquele que possui e que nunca é possuído; que não se rege por códigos externos nem porque teme o pecado; o que sabe que a manutenção da ordem e justiça depende da sua conduta externa e interna; que se mantém vertical e para qual a mentira é tão grave como o mais abjeto crime; aquele para quem a experiência religiosa será sempre uma afirmação da sua vontade e identificação desta com o ato, que se manifesta na sua constante atualização.

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