Sunday, January 28, 2018

Guénon e o Fim dos Tempos: A Grande Paródia ou a Espiritualidade Invertida



Continuando a nossa série ‘Guénon e o Fim dos Tempos’, deixamos a tradução do penúltimo capítulo da obra ‘O Reino da Quantidade’, intitulado ‘A Grande Paródia ou a Espiritualidade Invertida’.

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De tudo que até agora tem sido dito, é fácil deduzir que o estabelecimento da ‘contra-tradição’ e o seu aparente triunfo momentâneo será com efeito o reino do que tem sido chamado de ‘espiritualidade invertida’; esta última é, claro, apenas uma paródia da espiritualidade, imitando-a de um modo inverso, para que pareça ser o seu exato oposto; aparece como o seu oposto, mas tal não o é, pois quaisquer que sejam as suas pretensões nenhuma simetria ou equivalência entre uma e a outra são possíveis. Este ponto deve ser insistido, pois muitas pessoas permitem-se enganar pelas aparências e imaginam que existem no mundo dois princípios contrários competindo um contra o outro pela supremacia; esta é uma conceção errónea, idêntica àquela comummente atribuída, correta ou incorretamente, aos maniqueus, e que consiste, para usar de uma linguagem teológica, em colocar Satã ao mesmo nível de Deus. Existem certamente hoje muitas pessoas que são ‘maniqueus’ neste sentido sem o saberem, e isto é também o efeito de uma ‘sugestão’ tão perniciosa como qualquer outra. A conceção exposta corresponde à afirmação de uma dualidade de princípio fundamentalmente irredutível, ou em outras palavras, a uma negação da suprema Unidade que se encontra para lá de todas as oposições e antagonismos; que tal negação seja feita por aderentes da ‘contra-iniciação’ não deve causar surpresa, e deve até ser sincera da sua parte, já que o domínio metafísico para eles encontra-se totalmente fechado: é então evidentemente necessário para eles propagar a conceção e impô-la noutros, pois de nenhum outro modo eles conseguem obter sucesso em serem tomados pelo que não são e pelo que nunca podem ser, nomeadamente, representantes de algo que pode ser colocado no mesmo nível que a espiritualidade e que pode eventualmente prevalecer sobre ela.

Esta ‘espiritualidade invertida’ é portanto com toda a certeza apenas uma falsa espiritualidade, mas é falsa no mais extremo grau concebível; a falsa espiritualidade pode ser falada em todos os casos em que, por exemplo, o psíquico é tomado pelo espiritual, sem necessariamente chegar ao ponto da subversão total, e tal é porque a expressão ‘espiritualidade invertida’ se encontra mais bem equipada para designar a subversão total, provido que o modo em que deve ser entendida é precisamente especificado. É na verdade identificável com a ‘renovação espiritual’ o crescente aproximar que é persistentemente anunciado por pessoas que amiúde desconhecem a sua natureza real; ou de novo, é a ‘new age’, para a qual a presente humanidade está a ser guiada por todos os meios disponíveis,1 e o estado geral de ‘expectativa’ criado pela difusão das aludidas profecias tem de facto de contribuir efetivamente para apressar a sua chegada. A atração por ‘fenómenos’, já tomada em conta como um dos fatores determinantes na confusão entre o psíquico e o espiritual, pode também jogar um papel muito importante, já que a maioria dos homens serão apanhados e enganados por tal na altura da ‘contra-tradição’, já que é dito que os ‘falsos profetas’ que irão surgir nessa altura ‘demonstrarão grandes sinais e feitos, para assim confundir, se possível, até os escolhidos’.2

É particularmente nesta conexão que as manifestações de ‘metafísica’ e as várias formas de ‘neo-espiritualismo’ podem mesmo hoje ser tomadas como uma forma de ‘prefiguração’ do que deverá mais tarde acontecer’ apesar de elas apenas forneceram uma ideia muito pálida de tal. Em princípio, a ação desses mesmos poderes inferiores subtis estará envolvida, mas tais poderes serão postos a trabalhar com uma força incomparavelmente maior; e quando se vê quantas pessoas estão sempre dispostas a colocar confiança cega em todas as divagações de um mero ‘médium’, simplesmente porque são suportados por ‘fenómenos’, não é surpreendente que a sedução será então mais disseminada. Tal é porque, nunca é demais repetir, os ‘fenómenos’ por si mesmos não provam absolutamente nada onde a verdade de uma doutrina ou de qualquer espécie de ensinamento se aplique, e que os ‘fenómenos’ são o domínio especial da ‘grande ilusão’, pelo que tudo o que as pessoas tão rapidamente tomam como sinais de ‘espiritualidade’ podem sempre ser simulados e falsificados pelo jogo das forças inferiores em questão. Este é talvez o único campo no qual a imitação pode ser realmente perfeita, porque os próprios ‘fenómenos’ (a palavra sendo tomada no seu sentido próprio de aparências externas), irão de facto ser produzidos em ambos os casos, a diferença consistindo apenas na natureza das causas envolvidas em cada. A grande maioria dos homens são inevitavelmente incapazes de determinar a natureza dessas causas, pelo que não há dúvida que a melhor coisa a fazer é a de não dar a mais pequena importância a qualquer coisa ‘fenoménica’, ou talvez melhor ainda considerá-la a priori como um sinal desfavorável; mas como pode isto tornar-se compreensível para a mentalidade ‘experimental’ dos nossos contemporâneos, uma mentalidade primeiro moldada pelo ponto de vista ‘científico’ da ‘anti-tradição’, e finalmente tornando-se num dos mais potencialmente efetivos fatores contributivos no sucesso da ‘contra-tradição’?

O ‘neo-espiritualismo’ e a ‘pseudo-iniciação’ procedente dela são também de outro ponto de vista uma ‘prefiguração’ parcial da ‘contra-tradição’. A referência já foi feita à utilização de elementos autenticamente tradicionais na origem, pervertidos do seu significado verdadeiro, e então em certa medida traduzidos para o serviço do erro; esta perversão é apenas um movimento na direção da reversão completa que deve caracterizar a ‘contra-tradição’ (o caso da reversão intelectual de símbolos tratada anteriormente sendo um exemplo significativo); mas nessa altura não mais existirão apenas uns quantos elementos fragmentários e espalhados envolvidos, porque será necessário produzir a ilusão de algo comparável, na verdade de algo pretendido pelos seus autores a ser equivalente àquilo que constitui a integralidade da verdadeira tradição, incluindo as suas aplicações externas em todos os domínios. Pode ser observado nesta conexão que a ‘contra-iniciação’, apesar de ter inventado e propagado para os seus próprios propósitos todas as ideias modernas que juntas representam a ‘anti-tradição’ meramente negativa, está perfeitamente consciente da falsidade dessas ideias, e obviamente sabe muito bem que atitude adotar a respeito delas; mas tal em si mesmo indica que a intenção em propagá-las apenas pode ter sido a consecução de uma fase transitória e preliminar, pois tal empresa de falsificação consciente não poderia ser em si mesma o verdadeiro e único alvo em vista; foi só desejada para preparar a vinda final de algo diferente, algo que devia aparecer constituir um feito mais ‘positivo’, nomeadamente, a própria ‘contra-tradição’. Esta é a razão por que já se pode ver esboçada, em várias produções de origem ou inspiração indubitavelmente ‘contra-iniciáticas’, a ideia de uma organização que seria a contraparte, mas pelo mesmo diapasão também a contrafação, de uma conceção tradicional como a do ‘Sacro Império’, e tal organização deve tornar-se a expressão da ‘contra-tradição’ na ordem social; e por razões similares o Anticristo deve aparecer como algo que poderia ser chamado, usando a linguagem da tradição Hindu, de um Chakravarti invertido.3

O reino da ‘contra-tradição’ é na verdade precisamente o que é conhecido como o ‘reino do Anticristo’, e o Anticristo, independentemente de todas as preconceções possíveis, é no final de contas aquilo que irá concentrar e sintetizar nele próprio, para esta tarefa última, todos os poderes da ‘contra-iniciação’, seja ele concebido como um indivíduo ou como uma coletividade. Poderia até, num certo sentido, ser ambos ao mesmo tempo, pois tem de existir uma coletividade que seja como que a ‘exteriorização’ da própria organização ‘contra-iniciática’ quando finalmente aparecer à luz do dia, e também deve existir uma pessoa que estará à cabeça da coletividade, e como tal ser a expressão mais completa e inclusive a própria ‘encarnação’ do que irá representar, nem que apenas seja na capacidade de ‘suporte’ a todas as influências maléficas que ela irá primeiro conter nela própria e então projetar no mundo.4 Esta entidade será obviamente um ‘impostor’ (este é o significado da palavra dajjal pela qual ela é usualmente designada em arábico) já que o seu reino não será outra coisa que não a ‘Grande Paródia’ na sua forma mais completa, a imitação ‘satânica’ e a caricatura de tudo o que é verdadeiramente tradicional e espiritual; no entanto ele será criado de tal modo, assim dizendo, que será inteiramente impossível para ele não cumprir tal papel. O seu tempo não será certamente mais o do ‘reino da quantidade’, que era ele próprio o ponto final da ‘anti-tradição’: será pelo contrário marcado, sob o pretexto de uma falsa ‘restauração espiritual’, por uma espécie de reintrodução de qualidade em todas as coisas, mas de qualidade invertida com respeito à sua significação normal e legítima.5 Depois do ‘igualitarismo’ dos nossos tempos irá existir de novo uma hierarquia visível estabelecida, mas uma hierarquia invertida, na verdade uma verdadeira ‘contra-hierarquia’, o pico da qual será ocupado pelo ser que na realidade estará situado mais próximo que qualquer outro do próprio fundo da ‘cova do inferno’.

Este ser, mesmo se aparecer na forma de uma particular ser humano individual, irá na verdade ser menos um indivíduo do que um símbolo, e será como se fosse a síntese de todo o simbolismo que foi invertido para os propósitos da ‘contra-iniciação’, e ele irá manifestá-lo tão completamente em si mesmo porque não terá nem predecessor nem sucessor. Em ordem a expressar o falso levado ao seu extremo ele terá de ser, por assim dizer, ‘falsificado’ de todos os pontos de vista e ser como uma encarnação da própria falsidade.6 Em ordem para que isto seja possível, e por razão da sua extrema oposição à verdade em todos os seus aspetos, o Anticristo pode adotar os próprios símbolos do Messias, usando-os é claro num sentido invertido;7 e a predominância atribuída ao aspeto ‘maléfico’, ou, mais precisamente, a sua substituição pelo aspeto ‘benéfico’ pela subversão do duplo significado dos símbolos, é o que constitui a sua marca característica. Do mesmo modo pode existir e deve existir uma estranha parecença entre as designações do Messias (al-masih em arábico) e as do Anticristo (al-masikh);8 mas as últimas serão apenas deformações do primeiro, como o Anticristo é representado como deformado em todas as descrições mais ou menos simbólicas que lhe têm sido dadas, e isto de novo é muito significativo. Estas descrições na verdade enfatizam particularmente as assimetrias corporais, e isto essencialmente implica que elas são os sinais visíveis da natureza real do ser ao qual elas são atribuídas, pois tais coisas são na verdade sempre sinais de algum desequilíbrio interior; esta é a razão de certas deformidades constituírem ‘desqualificações’ do ponto de vista iniciático, mas ao mesmo tempo pode facilmente ser imaginado que elas são ‘qualificações’ no sentido oposto, do ponto de vista da ‘contra-iniciação’. O próprio nome do último termo implica que se move em oposição à iniciação, consequentemente na direção de um aumento no desequilíbrio dos seres, levando finalmente à ‘dissolução’ ou ‘desintegração’ previamente referida. O Anticristo tem evidentemente de estar o mais próximo possível da ‘desintegração’, para que se possa dizer que a sua individualidade, enquanto se desenvolve de um modo monstruoso, é no entanto ao mesmo tempo praticamente aniquilada, realizando então o inverso do emagrecimento do ‘ego’ ante o ‘Ser’, ou por outras palavras, realizando a confusão no ‘caos’ como contra a fusão na Unidade primária; e este estado, representado pela própria deformidade e desproporção da sua forma corporal, está na verdade no limite mais baixo das possibilidades do nosso estado individual, pelo que o pico da ‘contra-hierarquia’ é de facto o local que na realidade lhe convém num ‘mundo de pernas para o ar’, que será o seu. Ademais, mesmo de um ponto de vista puramente simbólico, e na medida em que ele representa a ‘contra-tradição’, o Anticristo não é necessariamente menos deformado; já foi explicado que a ‘contra-tradição’ apenas pode ser uma caricatura da tradição, e caricatura implica deformação; além disso, se fosse doutro modo, não haveria meios de distinguir a ‘contra-tradição’ da verdadeira tradição, pelo que a primeira tem de carregar consigo a ‘marca do diabo’, para que ao menos ‘o eleito’ não seja seduzido. Além disto, o falso é necessariamente também o ‘artificial’, e neste respeito a ‘contra-tradição’ não pode falhar, apesar das suas outras características, de reter o caráter ‘mecânico’ pertencente a todas as produções do mundo moderno, do qual será a última; ainda mais exatamente, existirá nele algo comparável ao automatismo dos ‘cadáveres psíquicos’ falados anteriormente, e como eles será constituído por ‘resíduos’ animados artificialmente e momentaneamente, e isto de novo explica por que não pode conter nada durável; uma pilha de ‘resíduos’, galvanizados, por assim dizer, por uma vontade ‘infernal’: seguramente nada poderia dar uma ideia mais clara do que significa ter chegado ao próprio limite da dissolução.

Esta não parece ser a ocasião para nos demorarmos mais nestes assuntos; seria de pouco uso no final procurar prever em detalhe como é que a ‘contra-iniciação’ será constituída, e as indicações gerais já dadas devem ser praticamente suficientes para quem quiser elaborar para si próprio a sua aplicação em pontos particulares e qualquer tentativa desse tipo está de qualquer modo fora do âmbito da presente investigação. Essa investigação foi agora estendida à última etapa da ação anti-tradicional que deve guiar o mundo em direção ao seu fim; entre o reino efémero da ‘contra-tradição’ e o momento final do presente ciclo apenas se pode encontrar a ‘retificação’, a qual subitamente reporá as coisas no seu local normal no próprio momento em que a subversão parecer completa, preparando então de uma vez a ‘idade de ouro’ do ciclo futuro.


1  A extensão em que a expressão ‘new age’ se tem espalhado nestes dias e é repetida por todos os cantos é quase inacreditável, com a significação que pode amiúde aparecer diferente em diversos casos, mas que sempre tende positivamente para o estabelecimento da mesma persuasão na mentalidade do público.

2  Mat. 24:24.

3  No assunto do Chakravarti ou ‘monarca universal, ver  O Esoterismo de Dante e o Rei do Mundo. O Chakravarti é literalmente ‘aquele que faz a roda girar’ e implica que esteja situado no centro de todas as coisas, enquanto o Anticristo é pelo contrário o ser que mais afastado se encontrará desse centro; ele no entanto irá alegar ‘fazer a roda girar’, mas na direção oposta àquela do normal movimento cíclico (incidentalmente, isto é ‘prefigurado’ inconscientemente na moderna ideia de ‘progresso’), enquanto na verdade nenhuma alteração na rotação é possível antes da ‘reversão dos polos’, isto é, antes da ‘retificação’ que apenas pode ser trazida pela intervenção do décimo Avatara; além disso, o Anticristo irá parodiar à sua maneira a própria função do último Avatara, que é representado como a ‘segunda vinda de Cristo’, na tradição Cristã.

4  Ele pode portanto ser considerado como um chefe do awliya al-shaytan, e como ele será o último a cumprir essa função, e ao mesmo tempo a sua função terá então a sua importância mais manifesta no mundo, pode ser dito que ele será como o seu ‘selo’ (khatim), de acordo com a terminologia do esoterismo islâmico; não é difícil ver nisto a que ponto a paródia da tradição será levada em todos os seus aspetos.

5  O próprio dinheiro, ou o que quer que tome o seu lugar, irá de novo possuir um caráter qualitativo deste tipo, pois foi dito que ‘ninguém pode comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome’ (Rev. 13:17), e isto sugere o uso efetivo, em ligação ao dinheiro, dos símbolos invertidos da  ‘contra-iniciação’.

6  Então ele será a antítese do dito de Cristo ‘Eu sou a Verdade’ ou da de um wali como al-Hallaj na mesma veia ‘ana'l-Haqq’.

7  ‘A analogia existente entre a verdadeira doutrina e a falsa talvez não tenha recebido atenção suficiente: St. Hipólito, na sua pequena obra sobre o Anticristo dá um exemplo memorável o qual não será surpresa para quem tenha estudado simbolismo: tanto o Messias como o Anticristo têm como seu emblema um leão.’ (P. Vulliaud, La Kabbale Juive, vol. II, p373). A razão profunda do ponto de vista cabalístico encontra-se na consideração das duas faces, luminosa e obscura, do Metraton; é também a razão do número Apocalíptico 666, o ‘número da Besta’, ser um número solar (cf. O Rei do Mundo).


8  Aqui existe uma duplo sentido intraduzível: Masikh pode ser tomado como uma deformação de Masiha, pela mera adição de um ponto à letra final; mas ao mesmo tempo a primeira palavra significa ‘deformado’, que corretamente expressa o caráter do Anticristo.

Sunday, January 21, 2018

Guénon e o Fim dos Tempos: Da Anti-Tradição à Contra-Tradição



Damos aqui início à tradução de uma série de reflexões de René Guénon sobre o Fim dos Tempos, intitulada ‘Guénon e o Fim dos Tempos’.

Deixaremos ao leitor primeiramente alguns capítulos de uma das obras maiores do Mestre intitulada ‘O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos’. Reservamo-nos, se assim entendermos necessário, acrescentar capítulos de outros livros ou outros artigos do mesmo autor que se coadunem com o assunto em causa.

Para já, deixamos a tradução do antepenúltimo capítulo do Reino da Quantidade, ‘Da Anti-Tradição à Contra-Tradição’.

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O capítulo prévio tratou de assuntos que são, como tudo o que essencialmente pertence ao mundo moderno, radicalmente anti-tradicionais; mas num sentido eles vão ainda mais longe do que a ‘anti-tradição’, entendida como sendo pura negação e nada mais, pois levam ao estabelecimento de algo que pode mais apropriadamente ser designado por ‘contra-iniciação’. A distinção entre as duas é similar àquela antes feita entre desvio e subversão, e corresponde às mesmas duas fases da ação anti-tradicional tomada como um todo. A ‘anti-tradição’ encontrou a sua mais completa expressão no tipo de materialismo que podia ser chamado de ‘integral’, como o que prevalecia no final do século passado; quanto à ‘contra-iniciação’, apenas podemos ver dela os seus sinais preliminares, na forma de todas as coisas que ambicionam tornar-se, de algum modo, contrafações da própria ideia tradicional. E é conveniente apontar de uma vez que, como a tendência para a ‘solidificação’, expressando-se como ‘anti-tradição’, não consegui atingir o seu limite extremo – já que tal limite se encontraria fora e para além de toda a existência possível – pode ser expectável que a mesma se aplica à tendência de dissolução, que se expressa por sua vez na ‘contra-iniciação’. As próprias condições da manifestação, desde que o ciclo não esteja completado por inteiro, exigem obviamente que isto aconteça; e no que respeita ao próprio final do ciclo, pressupõe a ‘retificação’ por onde as tendências ‘maléficas’ se ‘transmutam’ para produzir um resultado ‘benéfico’, como já acima foi explicado. Além do mais, todas as profecias (aqui a palavra é obviamente usada no seu sentido legítimo) indicam que o aparente triunfo da ‘contra-tradição’ seja um triunfo temporário, e que no próprio momento em que parece mais completo será destruído pela ação de influências espirituais que intervirão neste ponto para preparar a ‘retificação’ final.1 Nada menos que uma intervenção direta deste tipo chegaria para trazer a um fim, no tempo escolhido, a mais formidável e a mais verdadeiramente ‘satânica’ de todas as possibilidades incluídas na manifestação cíclica; mas tal é suficiente por via de antecipação, e agora é necessário continuar com um exame mais cuidado da real natureza da ‘contra-tradição’.

Para tal propósito, o papel a ser cumprido pela ‘contra-iniciação’ deve de novo ser referido: após ter trabalhado sempre nas sombras para inspirar e comandar invisivelmente todos os movimentos modernos, no final irá forjar a sua ‘exteriorização’, se tal é a palavra correta, algo que será como se fosse a contraparte de uma verdadeira tradição, pelo menos tão completamente e exatamente como tal seja possível dentro das limitações necessariamente inerentes em todas as possíveis contrafações como tal. Como a iniciação é, como explicado, a coisa que efetivamente representa o espírito de uma tradição, assim irá a ‘contra-iniciação’ desempenhar um papel comparável com respeito à ‘contra-tradição’; mas seria obviamente muito errado e impróprio falar do espírito no segundo caso, já que se ocupa daquilo do que o espírito se encontra mais completamente ausente, aquilo que até seria o seu oposto se o espírito não se encontrasse essencialmente para lá de toda a oposição; de qualquer modo a oposição é inegavelmente ambicionada, e é acompanhada por imitação no modo da sombra invertida previamente referia em mais de uma ocasião. É por tal razão que a ‘contra-tradição’, não importa quão longe leve a imitação, nunca poderá suceder a ser algo mais do que uma paródia, mas será a mais extrema e a mais gigantesca das paródias, e temos até agora visto, apesar de toda a falsificação do mundo moderno, algumas ‘tentativas’ muito parciais e algumas muito pálidas ‘prefigurações’ da mesma; algo muito mais formidável está em preparação para um futuro considerado por alguns como estando próximo, sendo a crescente rapidez da sucessão de eventos de hoje uma indicação da sua proximidade. Desnecessário será dizer que nenhuma tentativa será aqui encetada para apontar datas mais ou menos precisas, à semelhança dos seguidores das autointituladas ‘profecias’; e se mesmo tal fosse possível fazer através de um conhecimento da exata duração dos períodos cíclicos (a principal dificuldade em tais casos cai sempre no correto estabelecimento do ponto de partida a tomar como base do cálculo), seria no entanto apropriado manter a reserva mais restrita sobre os resultados, e tal por razões exatamente contrárias àquelas que influenciam os propagadores conscientes e inconscientes de profecias desnaturadas, isto é dizer, em ordem para não correr o risco de contribuir para um maior crescimento da ansiedade e da desordem hoje reinantes no nosso mundo.

De qualquer modo, o que torna possível que as coisas tenham chegado a tal ponto é que a ‘contra-iniciação’ (e isto é algo que tem de ser dito) não pode ser considerada como uma invenção puramente humana, de tal modo que não seria de qualquer modo distinguível pela sua natureza da ‘pseudo-iniciação’ básica; de facto é muito mais que isso, e, em ordem para que tal realmente seja, deve em algum sentido proceder, no que respeita à sua verdadeira origem, da única fonte à qual toda a iniciação se encontra ligada, a mesma fonte da qual, falando mais geralmente, procede tudo no nosso mundo que manifesta um elemento ‘não-humano’; mas a ‘contra-iniciação’ procede daquela fonte por uma degeneração levada ao seu limite extremo, e esse limite é representado pela ‘inversão’ que constitui o ‘satanismo’ propriamente dito. Uma degeneração deste tipo é obviamente muito mais profunda do que a de uma tradição meramente desviada em certo grau, ou mesmo truncada e deixada apenas com a sua parte menos elevada; algo mais se encontra envolvido até que em casos de tradições mortas tão completamente abandonadas pelo espírito que a própria ‘contra-iniciação’ pode fazer uso dos seus ‘resíduos’ para os seus propósitos egoístas, como antes explicado. Isto leva logicamente ao pensamento de que esta degeneração extrema tem origem num passado muitíssimo distante; e, obscura seja a questão das suas origens, existe alguma plausibilidade na ideia de que pode estar ligada à perversão de uma das antigas civilizações pertencentes a um dos continentes que desapareceram nos cataclismos ocorridos no curso do atual Manvantara.2 De qualquer modo é desnecessário afirmar que mal o espírito desapareceu não mais é possível falar de iniciação; os representantes da ‘contra-iniciação’ estão na verdade tão completamente ignorantes como as normais pessoas profanas, e mais irremediavelmente ignorantes do essencial, noutras palavras, de toda a verdade de uma ordem espiritual e metafísica, pois esta verdade tornou-se para eles completamente estranha, até nos seus princípios mais elementares, desde que para eles o ‘céu se fechou’.3 Já que nem pode guiar seres em direção a estados ‘supra-humanos’ como o pode a iniciação, nem confinar-se exclusivamente ao domínio humano, a ‘contra-iniciação’ leva-os inevitavelmente em direção ao ‘infra-humano’, e o poder para o fazer é precisamente o único poder efetivo que lhe resta; é muito fácil ver que isto é algo de muito diferente da comédia da ‘pseudo-iniciação’. No esoterismo islâmico é dito que quem se apresentar em determinado ‘portão’, sem o ter atingido de modo normal e legítimo, vê-o fechar-se na sua cara e é obrigado a voltar, mas não como uma mera pessoa profana, pois tal nunca pode ele voltar a ser, mas como um sãher (um feiticeiro ou um mágico trabalhando no domínio das possibilidades subtis de uma ordem inferior).4 Seria impossível colocar a posição mais claramente; é uma questão da via ‘infernal’ tentar opor a via ‘celestial’, e na realidade atingir as aparências externas de oposição, apesar de tais aparências apenas poderem ser ilusórias; e, como foi anteriormente apontado quando se falou da falsa espiritualidade na qual alguns seres, que estão comprometidos numa espécie de ‘realização invertida’, se perderem, esta via só pode terminar por fim na total ‘desintegração’ do ser consciente e na sua dissolução final.5

Naturalmente, em ordem para que a imitação por reflexão invertida possa ser tão completa quanto possível, centros são plausíveis de serem estabelecidos aos quais as organizações pertencentes à ‘contra-iniciação’ estarão ligadas. Estes centros, claro está, serão puramente ‘psíquicos’, como as influências que eles usam e transmitem, e de modo algum espirituais, como os centros de iniciação e os da verdadeira tradição, mas serão capazes, pelas razões dadas, de assumirem até um ponto as características exteriores de centros espirituais, produzindo então a característica ilusão de ‘espiritualidade invertida’. Mas não será causa para surpresa se estes mesmos centros, e não meramente algumas das organizações que a eles estão mais ou menos diretamente subordinadas, se encontrem envolvidos em lutas uns com os outros, pois o domínio no qual estão colocados é o domínio mais próximo da dissolução ‘caótica’, e portanto a todas as oposições são dadas rédea livre nele, e não são harmonizadas e reconciliadas pela ação direta de um princípio superior, que necessariamente falta em tal caso. O resultado amiúde é uma impressão de confusão e de incoerência em tudo ligado com as manifestações destes centros e das suas ramificações, e tal impressão não é certamente ilusória; é até uma ‘marca’ característica de tais coisas; eles apenas podem concordar como que negativamente, na luta comum contra os verdadeiros centros espirituais, desde que os últimos estejam situados num nível no qual tal luta possa ter lugar, isto é desde que estes estejam interessados num domínio que não se estenda para lá dos limites do nosso estado individual.6 É aqui que o que propriamente pode ser chamado como a ‘estupidez do diabo’ se torna aparente: os representantes da ‘contra-iniciação’ que atuam deste modo são iludidos a pensar que eles estão a opor o próprio espírito, apesar de nada se lhe poder opor na realidade; mas ao mesmo tempo, apesar deles próprios e desconhecido para eles mesmos, eles lhe estarem na verdade subordinados e nunca poderem deixar de o estar, pois tudo o que existe está submetido, ainda que inconsciente e involuntariamente, à Vontade divina, da qual nada pode escapar. Então eles estão na verdade a ser usados, apesar de contra a sua vontade, e apesar de eles poderem manter uma crença contrária, para a realização do ‘plano divino no domínio humano’;7 como todos os outros seres eles tomam a parte desse plano que melhor corresponde à sua natureza, mas em vez de estarem efetivamente conscientes desse papel, como o estão os verdadeiros iniciados, eles apenas se encontram conscientes do seu aspeto negativo e invertido. Portanto eles próprios são joguetes, e de uma maneira tal é muito pior para eles do que é a mera ignorância do profano, já que, em vez de se manterem como estavam no mesmo ponto, tem o efeito de os levar para ainda mais longe do centro principal, até finalmente caírem nas ‘trevas extremas’. Mas se o assunto é observado, não em relação a estes seres, mas em relação ao mundo como um todo, tem de ser admitido que eles são necessários no lugar que ocupam como elementos desse todo, como todos os outros seres, e como instrumentos ‘providenciais’ (para usar linguagem teológica) na passagem do mundo através do seu ciclo de manifestação, pois todas as desordens parciais, mesmo quando elas parecem ser num certo sentido a desordem suprema, devem, no entanto, de algum modo necessariamente contribuir para a ordem total.

Estas poucas considerações devem tornar mais fácil entender o porquê da constituição da ‘contra-iniciação’ ser possível, mas também porque é que ela nunca pode ser de outro modo que não seja eminentemente instável e quase efémero, mas isto não prevenir ela ser em si mesma, como foi anteriormente dito, a mais formidável de todas as possibilidades. Será também percebido que este é o objetivo a que a ‘contra-iniciação’ realmente aponta e sempre apontou através de todo o curso da sua atividade, e que e ‘anti-tradição’ meramente negativa apenas representa uma preparação necessária. Agora só falta investigar mais detalhadamente o que pode ser previsto, com a ajuda de várias indicações concordantes, das modalidades nas quais a ‘contra-tradição’ é expetável ser realizada no futuro.


1  A esta verdade está relacionada a fórmula ‘quando tudo parecer perdido, então é quando tudo será salvo’, repetida num certo modo mecânico por um considerável número de ‘videntes’, cada um dos quais é claro aplicou-o a algo que ele pode entender, normalmente a eventos de menor importância comparativa, até a alguns bastante secundários e meramente ‘locais’, por virtude da tendência ‘minimizante’ já mencionada em conexão com as histórias do ‘Grande Monarca’, levando a vê-lo como nada mais que o futuro rei de França; é desnecessário dizer que as verdadeiras profecias preocupam-se com assuntos de dimensões bem diferentes.

2  O sexto capítulo do Génesis talvez possa fornecer, de um modo simbólico, algumas indicações relativas à origem distante da ‘contra-iniciação’.

3  O simbolismo da ‘queda dos anjos’ pode ser aplicado analogicamente ao assunto em questão, que corresponde exatamente à ordem humana; e tal é a razão da palavra ‘satânico’ ser usada no mais preciso sentido nesta conexão.

4  O último grau da hierarquia ‘contra-iniciática’ é ocupado pelo que são chamados de ‘santos de Satã’ (awliyii' al-shaytiin) que são num sentido o inverso dos verdadeiros santos (awliya' al-Ra~man), assim manifestando a mais completa expressão possível de ‘espiritualidade invertida’ (cf. The Symbolism of the Cross).

5  Uma finalidade tão conclusiva representa apenas um caso excecional, que é o de awliya' al-slzaytan; o destino daqueles que foram menos longe nessa mesma direção é apenas o de serem abandonados na estrada que leva a nenhures, à qual eles podem ser confinados para a indefinidade de um ‘àeon’ ou ciclo.

6  Do ponto de vista iniciático este domínio é o do que é conhecido como os ‘mistérios menores’; por outro lado, tudo ligado aos ‘mistérios maiores’ é essencialmente de uma ordem ‘supra-humana’, e está portanto fora do âmbito de qualquer oposição desse tipo, já que pertence ao domínio que pela sua própria natureza se encontra absolutamente fechado e inacessível à ‘contra-iniciação’ e aos seus representantes de todos os níveis.

AI-Tadab r al-ilahiyyah fi'l-mamlakat al-insaniyyah, títudo do tratado de Mubyi' d-Din ibn al-'Arabi.

Wednesday, January 17, 2018

Mensagem ao Povo Iraniano

 


Não é fácil habitar no Irão. Desde há décadas este país é o local de variados episódios que testaram as fibras da nação e a capacidade de resistência do seu povo. Dos anos trinta até aos anos 70, o País foi joguete nas mãos tanto dos colonizadores britânicos como dos americanos, que viam no território do antigo Império Persa mero local de exploração económica e mais um peão no xadrez geopolítico contra as forças soviéticas, provocando crises, depondo governantes e explorando a belo prazer os recursos naturais, produtivos e culturais do mesmo.

Os anos 70 assistiram a permanentes convulsões políticas e sociais causadas pela corrupção do regime do Xá, cuja má-fé e flagrante servilismo aos grandes poderes mundiais ameaçaram corroer por dentro as fundações e a identidade do País.

Após a Revolução Islâmica e a inequívoca refundação do novo regime na sua vocação religiosa, que no Islão encontrava as bases da manutenção do contacto com o divino, contra todo o tipo de neocolonialismos, sejam soviéticos ou ocidentais, o Irão foi presa das ambições territoriais de potências limítrofes, apoiadas pelos tenebrosos Poderes que ainda hoje estão mandatados a redesenhar o mapa do Médio Oriente a favor do Grande Israel. Uma guerra de agressão infame e de vergonhosa agressão seguiu-se, com a nação desta vez a ter de testemunhar, isolada de qualquer apoio internacional de monta, uma luta armada nas próprias fronteiras e bombardeamentos aéreos às suas principais cidades. Como se não bastassem as dezenas de milhares de vítimas inocentes e indefesas de tais agressões cobardes, o povo teve de recorrer ao sangue martirizado da fina flor da sua juventude e da elite combatente e civil, que por dever patriótico e divino rumou de livre vontade até às zonas de massacre com sorriso nos lábios e cara levantada, pois a sua missão era infinitamente mais elevada do que poderiam conceber as estreitas mentalidades inimigas, que ainda hoje apenas visionam a ação terrestre se direcionada para poder, riqueza e alargamento de território.

Com o desagregar do Império Soviético, os tempos mais recentes significaram para a Nação Iraniana o aumento da pressão Ocidental sobre o único regime com poder e força capazes de contrabalançar as ambições políticas e religiosas dos E.U.A. e do Sionismo. As sanções políticas e económicas que tentam sufocar a médio prazo as instituições e a resiliência das gentes iranianas são mantidas com o intuito de não permitirem uma vida condigna a uma nação cujo único crime foi o de querer perseguir o seu destino, na Terra e no Céu. O isolamento internacional a que o País foi votado, o apoio a elementos sediciosos dentro e fora do seu território, a incitação à fragmentação regional, racial e religiosa do mesmo, a militarização e a ocupação dos seus vizinhos por governos antagonistas, as infames campanhas de ostracismo internacional dedicadas à diabolização do regime e do seu povo, são tudo fatores que testam diariamente os iranianos de todas as estações e condições de vida no intuito de continuarem a perseguir o seu destino de cabeça erguida, em oposição a todos aqueles que lhes pretendem lançar as sementes da dúvida e da sedição.

E é este mesmo povo que, quando não descrito pelos traços embotados da caricatura ocidental, aparece ao observador imparcial como sábio e digno, de postura vertical, orgulhoso da sua história ancestral e recente e que diariamente recorda os mártires que lhes abriram as vias que hoje cimentam o país. Religiosos mas não pios, todos homens e mulheres de família e de valores, inequivocamente orgulhosos e crentes, que recebem de braços abertos os visitantes e que com indisfarçável orgulho mostram os monumentos da sua história, os seus locais de culto e o que o Irão tem de melhor, seja em termos de arquitetura, cultura, ciência, gastronomia, etc. E é este mesmo povo, quando fora do país, que demonstra uma habilidade inata para ocupar cargos cimeiros nas áreas da medicina, cultura e ciência nos países hóspedes e onde sempre constitui esteios de hombridade e de convivência que servem de modelo aos nativos e a outras comunidades estrangeiras. E mesmo depois das tribulações diárias, dos problemas que os afligem a si e aos seus, abrem o seu melhor sorriso e convidam o próximo a sua casa e partilham o que têm, mostrando-se genuinamente preocupados pelo destino do mundo e especialmente com o dos homens, de qualquer credo ou condição, pois um povo com uma visão do mundo profundamente religiosa, como o é o iraniano, não poderia atuar de outro modo.

Com a profunda amizade e dívida de gratidão que nutro para com as gentes iranianas, parece-me meu dever alertá-las para certas angústias que determinadas seções populacionais do país parecem nutrir e que alguns julgam poderem ser satisfeitas se o Irão redirecionar o seu foco numa ‘ocidentalização’ da sua sociedade, pois insistem que cabe ‘abrir’ o país progressivamente às mesma vias seguidas deste lado do globo.

Primeiro que tudo, cabe mencionar que compreendemos e simpatizamos com todos os iranianos que desejam melhorar as respetivas condições económicas e as das suas famílias, que desejam o fim da corrupção governamental existente ou o fim ao esbanjamento dos bens do erário público. Tais demandas são mais que legítimas e mostram que o governo iraniano terá que lhes dar resposta, seja por uma maior transparência na gestão das contas públicas ou seja, seguindo o exemplo de Ayatollah Khomeini, dando luta sem quartel aos que, alcandorados a posições de poder, abusam da confiança neles depositada esquecendo que possuem uma obrigação sagrada de honestidade para com todos os iranianos. Mesmo descontando a paranoia dos que, levados pela propaganda ocidental, afirmam que a sociedade iraniana não têm voz – e a prova contrária foi dada pelas manifestações de rua verificadas e pelos debates acesos levados a cabo pelos deputados da oposição no próprio parlamento nacional – o governo iraniano terá de fazer do combate à má-gestão dos fundos públicos e à corrupção governativa uma das prioridades mais sérias da sua ação política para restaurar a confiança abalada.

Tendo nós como tubo de ensaio o caso do continente europeu nos últimos duzentos anos, parece-nos que sendo alguns destes sentimentos legítimos, quando não corretamente direcionados e integrados num contexto superior de qual é a estrutura de sociedade que se deseja, conduzirão o Irão no mesmo caminho que o Ocidente trilha, e onde definha, nos dias que correm.

Se o desejo de melhorias económicas passa por instituir o comércio e o lucro como os valores mais elevados pelos quais os homens estabelecem relações entre si, sem a integração apropriada da religião e de uma conceção espiritual do ser humano e da sociedade, não será exagerado prever, especialmente no advento da globalização, que o Irão se tornará em poucas décadas - no máximo - outro local do mundo em que o protótipo do homem-negociante tomará as rédeas da sociedade, seja ascendendo às posições de liderança da política, economia, educação e cultura, seja comprando os nominativos líderes ou o seu próprio acesso ao poder. Não será de estranhar ver estabelecido dentro das suas fronteiras um sistema de exploração económica em que os destinos das massas humanas passarão a estar dependentes dos caprichos de uns poucos seres que apenas têm na ambição e na ganância os seus guias de conduta de vida. Os próprios políticos serão homens do mesmo cariz, e apesar de publicamente afirmarem estarem ao serviço do povo e de Deus, com poderosas palavras e discursos, em privado servirão os seus verdadeiros guias – o metal e a ambição. Não será de estranhar se os detentores do capital passarem a não ter pejo algum em expandir os lucros a qualquer custo, mesmo que tal implique a deslocalização do trabalho para outras regiões ou países, com pretextos prontamente justificados pela nova classe educadora e cultural, que afirmará que os mais recentes abstracionismos teóricos economicistas conduzirão por certo a sociedade a êxtases coletivos ainda por vir e que os avisos de antanho - como os dos profetas que alertaram que qualquer teoria ou doutrina sem Deus tão-só esconde as ambições mais negras dos homens caídos - já não mais se aplicam e devem ser evitadas. Não será de estranhar que os salários e as poupanças destinados a alimentar as vossas crianças passem a estar prisioneiros das especulações financeiras de grandes grupos internacionais, que no Irão verão não um povo único, dotado de personalidade divina, mas um mero pedaço de terra onde se agrupam corpos humanos que para eles não possuem mais dignidade que um mero centro de despesas e de lucros, uma estatística ou um erro de cálculo, ínfima roda dentada na superestrutura financeira mundial cujo centro é Nova Iorque e que esconde a sua real face tenebrosa por detrás de sociedades anónimas e offshore. E se estes afirmam quererem ver os iranianos vestidos, alimentados e entretidos, tal não se funda na preocupação pelo verdadeiro bem-estar material, moral e espiritual da comunidade, mas apenas para poderem continuar a explorar os seus recursos e as suas gentes. Não será de estranhar que a ambição, a inveja e a cobiça entre irmãos e vizinhos, hoje ainda envergonhadas, comecem a assomar cada vez mais descaradamente, até um dia se afirmarem em toda a sua prepotência entre os vossos filhos e a enfeitar despudoradamente as ações e as feições da maioria de vós, que não mais saberão que por elas estão dominados e são controlados. Não será de estranhar se as vossas cidades, hoje ainda adornadas por vestígios tradicionais e por lembranças do eterno, forem tomadas de assalto por montanhas de aço e ferro, onde massas humanas se amontoarão tanto a trabalhar como a habitar, onde o convívio entre vizinhos já não é ditado pelo afeto e pela cortesia mas pela frieza e desconfiança, onde nos picos do horizonte já não se distinguem torres de mesquitas ou minaretes, pois estas foram submersas pelas antenas e pelos novos monumentos de betão e aço que representam a adoração ao novo senhor do mundo.

Muitos me objetarão que o que se encontra por detrás das atuais reivindicações é um desejo superior ao económico, pois o que os iranianos pretendem é mais liberdade e meios de expressar a sua individualidade sem as restrições e imposições religiosas. Pois permitam que, com a experiência de viver num país e num continente que erigiu tais desideratos a estandartes máximos de governação e de mundividência, avisar que tais intenções, enquanto na primeira geração ainda tomam um caráter tímido, não encontrarão nas seguintes os mesmos freios que a atual dá por adquiridos, porque já não os viverão ou, pior, nem conhecerão. Não se pode esquecer que a liberdade que é usada num contexto sóbrio e tradicional, por seres que reconhecem um Criador e que têm consciência da sua dívida de gratidão para com os antepassados e os que hão-de vir, não será do mesmo tipo que a praticada por seres que deixam de ver nela um meio mas um fim, que desconhecem que ela deve ser uma consequência e nunca um dado de facto. Os que virão já não mais saberão que o homem verdadeiramente livre é o que se cumpre interiormente e que se rege pelos mais estritos códigos, sejam estes externos e internos. Eles só conhecerão a liberdade exterior e mais superficial, a liberdade mesquinha, que é a liberdade que por todos pode ser usada da mesma forma, a liberdade das massas informes, que serve para justificar as ações e as ambições individuais e coletivas do momento. Esta não é a liberdade como realização, mas a liberdade que se torna valor em si e aprisiona o homem em correntes invisíveis e, portanto, ainda mais difíceis de romper que as de um tirano. É a liberdade de dizer e de fazer o que se julga apetecer no momento sem referência a algo superior, é a liberdade da ação vazia e perdida, dos que tomam todas as suas ações, pensamentos e reações como legítimos e dignos de serem escutados e respeitados pela mesma bitola que as do homem sábio ou do religioso. É esta liberdade que dá o megafone há muito ambicionado pela rebeldia interior do homem e que o justifica no que este tem de mais medíocre e vil.

Por experiência própria sabemos que a longo prazo a liberdade, quando não coartada e limitada por valores de ordem superior, degenera no caos individual e social, num anarquismo mais próximo de uma colónia de bichos do que de um agrupamento de seres soberanos e conscientes da sua missão na Terra. Será esta a liberdade dos que docilmente aceitam como chefe qualquer tirano que proporcione livre curso ao prazer dos instintos, mas que violentamente se rebelam contra um soberano divino. A liberdade será a desculpa para dar vasão aos humores e desejos mais inconfessáveis e rasteiros dos homens e das mulheres, seja na sua relação consigo seja na sua relação com o próximo. E quando tais instintos já não encontram no Estado um inimigo declarado que relembra aos seus cidadãos a missão de a eles dar combate, tal combate encontrar-se-á limitado ao seio familiar ou de restritos grupos humanos, apenas serão seguidos por alguns seres, que a médio prazo se tornarão numa exceção e serão olhados de lado por uma sociedade que os despreza. O cúmulo da perversidade é que esta liberdade vai-se apresentar sob vestes de imparcialidade - laica, independente – afirmando não querer impor aos seus novos súbditos qualquer ‘moralidade’ e sob esse pretexto combaterá sem quartel os que cumprem o seu dever de afirmar valores absolutos.

Tal resultará na imposição de uma nova ordem onde impera apenas uma ‘moralidade’: a própria de seres amorfos e vazios, desconhecedores da respetiva natureza divina, pois é por esta classe de homens caídos que mais facilmente é imposta a nova ética global diabólica que rapidamente se expande pelos quatro cantos do mundo, e da qual o Irão ainda se encontra imune, em muitos aspetos. Esta verdadeira colonização será realizada sob roupagens de slogans apelativos para as massas, onde palavras encantadas, quais cantos de sereia, hipnotizarão os indivíduos. Mas não nos enganemos! Este é um novo regime de ocupação, e com objetivos muitos mais pérfidos que qualquer exército inimigo, pois não pretende apenas a espoliação material dos iranianos, mas algo muito mais nefasto e irreversível - a espoliação espiritual. Este ‘exército’ é o mesmo que nesta altura já subjugou vastos territórios humanos e que se insinua não pela via militar, mas pela subjugação mental do homem por via de conceitos abstratos que o colocam em guerra contra si mesmo; é um poder sempre estrangeiro onde quer que se estabeleça, pois despreza tudo o que é viril, elevado e se direciona para cima, pois só assim pode estabelecer as bases de dominação do seu espírito congénito.

Cremos que o Irão se encontra numa altura crítica para a sua história. Acreditamos que as tensões que se estabeleceram dentro do país – principalmente nos seus habitantes, mais do que as causadas pelos inimigos exteriores declarados – darão azo a breve trecho a consequências que não podem ser senão as mais distintas. Se a tensão se resolver pela quebra da vontade coletiva de continuar a contrariar e a dar combate aos elementos egoístas e subversivos individuais e coletivos da nação, de deixar de lutar e de passar sacrifícios em defesa do atual Regime Teocrático Iraniano – objetiva e realisticamente, a única alternativa séria no território à contenção da subversão – de deixar de fazer do contacto com o divino a razão de ser do Governo e a base da estruturação da sociedade e das condutas individuais, por mais ou menos ténues que tais sejam hoje em dia, mais brevemente do que muitos esperam virá o dia em que as forças diabólicas que ainda não tomaram totalmente de assalto este país não mais encontrarão um muro de defesa para aí exercerem total controlo sobre as mentes e as vontades dos seus cidadãos.

Por experiência própria falamos das desgraças que facilmente – e no fundo, muito provavelmente – se abaterão sobre este país. Pelas nossas próprias fraquezas e pelas dos nossos antepassados, a maioria mascaradas de boas-intenções – mas que no fundo nunca deixaram de ser fraquezas! - convidámos a sentar à nossa mesa inimigos mais ou menos dissimulados, pensando sempre que os dominaríamos, que os conseguiríamos conter, que não se demorariam e que não nos afetariam irremediavelmente; que saberíamos utilizar para nosso proveito e para a melhoria das nossas condições de via. A prova é que o inimigo mais pernicioso não é o que abertamente declara guerra e faz cara de mau, mas precisamente o do tipo mais calculista, que se faz de bem-vindo e promete não abusar – é o inimigo que sorri!

Que o povo iraniano saiba que tem sobre ele os olhares de uns poucos no mundo ocidental que o admiram verdadeiramente, que por ele nutrem um grande respeito e veneração e, admitimos sem pudor, mesmo inveja. Dada o presente clima de crise que paira sobre o Irão, não podemos como não nos reconhecer nos iranianos e aliarmo-nos ao seu atual modo de governo, vendo nele algo nobre e uma das poucas luzes de esperança que brilham num mundo cada vez mais mergulhado no abismo, e que se hoje é considerado radical e negativo, tal só o é por defeito do mundo e do tipo de homem hoje predominante, e nunca do Irão. Que os iranianos não se deixem enganar pela grande maioria dos que hoje, afirmando-se seus aliados, no fundo apenas nutrem desprezo e nojo pela vossa vocação coletiva. Nos tempos que correm, há que escolher os lados. Hoje e sempre, orgulhosamente nos afirmamos do lado do Povo Iraniano e do Ayatollah Khamenei.

Monday, January 15, 2018

A Mente Simbolista

 

Muito prazer nos deu ter a oportunidade de voltar a traduzir do inglês um texto do Mestre da Tradição Frithjof Schuon, intitulado ’A Mente Simbolista’, o qual foi originalmente publicado em francês na edição de Junho da revista ‘Études Traditionnelles’, em 1957.

Sendo um pequeno artigo – recomendamos aos leitores demorarem-se também nas chamadas de página, que contém precisões iluminadoras – toca em alguns aspetos da mundivisão espiritual antiga, da qual apenas possuímos vestígios no Mundo Ocidental, já que a sua vivência – e respetiva compreensão – há muito que desapareceu, pelo menos nas vias exotéricas.

Parece-nos iluminador que o autor, no último parágrafo, sugira que a atual separação do Cosmos entre o Sagrado e o Profano, o Céu e a Terra, a Carne e o Espírito, que impera na mente do Homem atual – e que é sem surpresa refletida no entendimento mais formalista, racionalista e legalista das religiosidades surgidas durante o Kali-Yuga – poder ser ultrapassado por via de um vivência e compreensão mais subtil da Natureza, e inclusive por uma interpretação mais hábil dos textos sagrados bíblicos e corânicos acerca da relação do Homem com a mesma. Mesmo que tal não seja um guia viável para a sociedade como um todo, poderá constituir um raio de luz para aquele que se julga diferenciado.


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‘Quando o homem inferior ouve falar do Tao, dele ri-se; não seria o Tao se dele não se risse.’
(Lao Tzu)


De acordo com um erro muito prevalente – um que, inclusive, se torna mais ou menos ‘oficial’ na senda do evolucionismo – todos os símbolos tradicionais eram originalmente entendidos num sentido estritamente literal, e o simbolismo propriamente dito apenas se desenvolveu como resultado de um ‘despertar intelectual’ posterior ou de um ‘refinamento progressivo’ da mente. Esta é uma opinião que inverte completamente as normais relações das coisas, como o fazem todas as hipóteses análogas emergentes de um contexto evolucionista. Na verdade, o que mais tarde surge como um significado supra-adicionado já se encontrava presente implicitamente, pelo que a ‘intelectualização’ dos símbolos é o resultado, não de um progresso intelectual, mas pelo contrário de uma perda, pela maioria, da inteligência primordial; é então à conta de um entendimento crescentemente defeituoso dos símbolos e em ordem a repelir o perigo da ‘idolatria’, e não de modo algum para escapar de uma idolatria supostamente preexistente, mas de facto inexistente, que a tradição se viu obrigada – em determinado ‘momento cíclico’ e, para o bem da forma, derivando inspiração, se necessário, de doutrinas estrangeiras – a explicar verbalmente símbolos que na origem – na ‘Idade Divina’ – se encontravam em si mesmos perfeitamente aptos a transmitir verdades metafísicas.

Este erro de acreditar que na origem tudo era ‘material’ ou ‘grosseiro’ – incorretamente cunhado de ‘concreto’ – levou inclusivamente alguns a negar a todo o custo que povos ‘primitivos’, particularmente os índios norte americanos, tenham a ideia de um Deus Supremo, e frequentemente têm procurado fazê-lo com recurso a argumentos que provam exatamente o contrário; o que incompreensões deste género revelam mais que nada – apesar de tal ser evidente em si mesmo – é que a ‘especialização’ científica isolada – o conhecimento de formas cranianas, línguas, ritos de puberdade, métodos culinários e por aí adiante – não resulta na qualificação intelectual que possibilita poder penetrar ideias e símbolos. Um exemplo entre muitos outros: porque as ideias dos índios norte-americanos não são compreendidas – na ausência das chaves indispensáveis, que são uma parte da ciência, no mínimo – estas ideias são consideradas ‘vagas’; ou é dito que o ‘Mistério’ do índio não é um ‘Espírito’ – ‘o qual o homem primitivo é incapaz de conceber, exceto graças ao conceito e à pesquisa do homem branco’1 – sem nos dizerem nem o que é significado por ‘Espírito’, ou porque o ‘Mistério’ em questão não o é. Que possível importância pode o ‘conceito do homem branco’ ter para o índio, e como podem os etnólogos saber o que o índio pensa para além da ‘investigação do homem branco’? As ideias índias são criticadas pelo seu caráter ‘proteano’, que é considerado incompatível com a ‘mais diferenciada linguagem da civilização.’2 Como se a terminologia – ou o jargão especializado – do homem branco fosse um critério de verdade ou de valor intelectual, e como se, para o índio, o que estivesse em causa fossem meras palavras, e não verdades ou experiências!3

A ideia de que, graças a um ‘despertar intelectual’ devido à ‘evolução’, os homens finalmente compreenderam a ‘vulgaridade’ da sua tradição e que em ordem a tal remediar, eles ingenuamente inventaram explicações que tendem, arbitrariamente, a emprestar às imagens uma significação superior – tal ideia corre não apenas contra a verdade intrínseca do simbolismo em causa, mas também ao que é psicologicamente possível: pois se a elite intelectual, ou a sensibilidade coletiva, finalmente se apercebeu da ‘vulgaridade’ – e portanto da falsidade4 – dos mitos, a reação normal teria sido a de substitui-los por algo melhor ou mais ‘refinado’, mas tal explicação nunca teve lugar em parte alguma. A manutenção da tradição apenas pode ser explicada pelo seu próprio valor imutável, isto é dizer, pelo elemento de ‘incondicionalismo’ que por definição a abrange e que a torna inalterável na sua forma essencial; acreditar que os homens estivessem dispostos a manter a sua tradição por outras razões é um dos erros mais absurdos e até mais impertinentes, porque é de facto subestimar a espécie humana. Nem aceitamos a hipótese do pensamento ‘pré-lógico’5 porque aqui de novo é uma questão de pensamento simbolista, o qual, sem nunca ser ilógico, é antes supra-lógico pois transcende os limites da razão, e portanto os das construções mentais, das dúvidas, das conclusões, das hipóteses.6

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Seria tremendamente erróneo acreditar que a mente simbolista consiste em selecionar do mundo exterior imagens para nas quais sobrepor significados mais ou menos forçados; isto seria um passatempo incompatível com a sabedoria; pelo contrário, a visão simbolista do cosmos é uma perspetiva espontânea a priori que se baseia na natureza essencial – ou na transparência metafísica – dos fenómenos, em vez de desligá-los dos seus protótipos. O homem de formação racionalista, cuja mente como tal se encontra ancorada no material, parte da experiência e vê as coisas no seu isolamento existencial: a água é para ele – quando a considera isolada da poesia – uma substância composta por oxigénio e hidrogénio, à qual uma significação alegórica pode ser atribuída se assim o desejar, mas sem existir uma conexão ontológica necessária entre a coisa material e a ideia com ela associada; a mente simbolista, pelo contrário, é intuitiva num sentido superior, tendo o raciocínio e a experiência para ela apenas a função de uma causa ocasional e não a de uma fundação. A mente simbolista vê as aparências na sua ligação com as essências: no seu modo de visão, a água é primariamente a aparência sensível de uma realidade-princípio, uma kami (japonês) ou uma manitu (algonquino) ou uma wakan (sioux);7 isto significa que vê as coisas, não apenas ‘superficialmente’, mas acima de tudo ‘em profundidade’, ou que as apercebe na sua dimensão ‘participativa’ ou ‘unitiva’, bem como na sua dimensão ‘separativa’. Quando um qualquer etnologista declara que ‘não existe manitu fora do mundo das aparências’, tal apenas significa que ele desconhece que para a mente simbolista as aparências não existem inteiramente por si mesmas; ele portanto desconhece o essencial e perde o seu tempo a preocupar-se com símbolos. Ademais, este falso ‘concretismo’ – ou esta tendência de reduzir o simbolismo, não importa o quão improvável, a um tipo de sensualismo bruto e ininteligível, na verdade uma espécie de existencialismo avant la lettre – longe de se tornar próximo da Natureza ou das origens, é de facto uma reação típica do homem ‘civilizado’ – no sentido banal e absurdo do termo; é a reação de um cérebro supersaturado de construções artificiais e de sofismos.8

E tal é importante: por um lado, não afirmamos que o simbolista pensa ‘princípio’ ou ‘ideia’ quando ele vê água, fogo ou algum outro fenómeno da Natureza; é simplesmente um nosso modo de fazer o leitor entender o que o simbolista ‘vê’, na medida em que ‘ver’ e ‘pensar’ são para ele sinónimos;9 por outro lado, não mantemos que todo o indivíduo pertencente a uma coletividade de mentalidade simbolista ou contemplativa se encontra totalmente consciente de tudo o que os símbolos significam, de outro modo o simbolismo espontâneo não constituiria a prerrogativa de períodos que podem ser qualificados de ‘primordiais’, e comentários posteriores não teriam razão de ser; a existência destes comentários prova precisamente um certo enfraquecimento por comparação com a ‘Idade de Ouro’, razão da necessidade de uma doutrina mais explícita capaz de eliminar todo o tipo de erros latentes. Pois a mentalidade simbolista, como tudo o que possui caráter coletivo, não se encontra imune a decadência: na consciência de uma dado indivíduo ou grupo pode degenerar numa espécie de ‘idolatria10”; mas então cessa de ser simbolista e torna-se outra coisa. A censura feita aos índios norte-americanos e aos xintoístas de possuírem uma atitude idólatra e zoolátrica significa no essencial em atribuir-lhes uma mentalidade anti-simbolista, o que é contrário à realidade dos factos; para o índio, o bisonte é uma ‘divindade’ – ou uma ‘função divina’ – mas o próprio facto de caçar prova que claramente distingue entre a entidade ‘real e a forma ‘acidental’ ou ‘ilusória’.11 Mesmo supondo que no caso de um específico simbolista existe um elemento de ‘panteísmo’, o seu erro não seria maior que o do ‘monoteísta’ para o qual as coisas não são mais que elas próprias, e para o qual o simbolismo é meramente uma alegoria posteriormente acrescentada; a verdadeira questão é a de saber qual dos dois erros é o mais oportuno ou o menos nocivo para uma dada mentalidade; consequentemente podemos até ir ao ponto de afirmar que uma atitude idólatra da parte de um hindu ou de um extremo-oriental não terá o mesmo significado psicológico como se viesse da parte de uma semita ou de um europeu.

O homem primordial vê o ‘maior’ no ‘menor’: o mundo da Natureza, na verdade, reflete o Céu, e transmite, numa linguagem existencial, uma mensagem divina que é ao mesmo tempo múltipla e única. O resultado moral desta perspetiva do cosmos ‘translúcido’ é uma atitude respeitadora e até devocional para com a Natureza virgem, este santuário – a chave do qual foi perdida pelo Ocidente desde o desaparecimento das mitologias - que fortifica e inspira aquelas suas crianças que retiveram o sentido dos seus mistérios, como a Terra o fez com Antheia. O Cristianismo, tendo tido que reagir contra um espírito verdadeiramente ‘pagão’, no sentido Bíblico de ‘idólatra’, provocou que ao mesmo tempo desaparecessem – como sempre acontece em tais casos – valores que não mereciam a censura de ‘paganismo’; tendo que opor um ‘naturalismo’ filosófico e ‘nivelado’ entre os mediterrânicos, erradicou ao mesmo tempo, acima de tudo nos nórdicos, um ‘naturismo’ de caráter espiritual.12 A tecnologia moderna é o resultado – bastante indireto, sem dúvida – de uma perspetiva que, tendo banido da Natureza os deuses e os génios, e tendo-a tornado, também por este próprio facto, profana,13 acabou por permitir que ela fosse ‘profanada’ no sentido mais brutal da palavra. O ocidental prometaico – mas não todo o ocidental – encontra-se afetado por uma espécie de desdém inato pela Natureza: para ele a Natureza é uma propriedade para ser gozada e explorada,14 ou até um inimigo a ser conquistado; não é uma ‘propriedade dos Deuses’ como no Bali, mas uma ‘matéria-prima’ destinada a exploração industrial ou sentimental, de acordo com os gostos e as circunstâncias.15 Este destronamento da Natureza, ou esta cisão entre o homem e a terra – uma reflexão da cisão entre o homem e o Céu – deu tão amargos frutos que não deveria ser difícil admitir que, nestes dias, a mensagem intemporal da Natureza constitui uma viático espiritual de primeira ordem. Alguns podem objetar que o Ocidente sempre teve – especialmente nos séculos 18 e 19 - o seu retorno à Natureza virgem, mas tal não é o que queremos significar, já que não temos uso para um ‘naturismo’ romântico ou ‘deísta’, ou mesmo ateístico.16 Não é uma questão de projetar um individualismo supersaturado e desiludido na direção da Natureza profanada – isto seria um mundanismo como outro qualquer – mas, pelo contrário, de redescobrir na Natureza, com a base da perspetiva tradicional, a substância divina que lhe é inerente; por outras palavras, ‘ver Deus em toda a parte’, e nada ver exceto a Sua presença misteriosa.


1  W. J. McGee, em The Siouan Indians, Washington D.C., Smithsonian Institute Bureau of Ethnology, 15th Annual Report, 1897.

2  Ibid.

3  Um autor não aporta qualquer importância a declarações índias, feitas no início do século 19, confirmando a existência imemorial da ideia de um Espírito Supremo, e para provar que esta ideia é apenas uma abstração importada pelo homem branco, ele cita o seguinte facto, que data de uma altura (1701) em que os mesmos índios ainda não tinham sofrido influência branca: ‘No decurso da conversa (William) Penn pediu a um dos intérpretes Lenape (Delaware) que lhe explicasse a noção que os nativos possuíam de Deus. O índio estava embaraçado e em vão procurou por palavras. Finalmente desenhou uma série de círculos concêntricos no chão, e, indicando o seu centro, disse que este era o local onde o Grande Homem se encontrava simbolicamente situado.’ (Werner Muller, Die Religionen der Waldindianer Nordamerikas, Berlin, D. Reimer, 1956, o capítulo intitulado: “Der Grosse Geist und die Kardinalpunkte.”) Não se poderia fornecer prova mais clara de incompreensão que o argumento baseado neste incidente, nomeadamente que para os delawares Deus era um desenho, portanto algo ‘concreto’ e não uma ‘abstração’! Na mesma veia: ‘O espírito é algo sem espaço e sem lugar; para traduzir manitu por este termo é ainda mais impróprio pelo facto das mais recentes fontes conhecem o lugar de manitu como sendo o zénite ou o céu. Que o cree deva buscar manitu ‘algures em cima’, ou que os menomini localizem o seu mach hawatuk na quarta atmosfera, ou que os fox localizem o seu kechi manetoa na Via Láctea – tudo isto apenas significa uma coisa, designadamente, que o supremo manitu possui o mesmo caráter sensível que os manitus de menor importância’ (ibid.). O ponto mais essencial é inteiramente esquecido, nomeadamente, porque é que o supremo manitu se encontra situado no céu e não num tacho de cozinha! Onde existe um grau de ignorância a tal grau, tanto em relação ao simbolismo como à mente simbolista, seria obviamente melhor não se preocupar de todo com o simbolismo.

4  Pois se eles não fossem falsos, porquê censurá-los pela sua ‘grosseria’?

5  Do mesmo modo termos como ‘prepolidemonismo’, ‘polidemonismo’, ‘antropolatria’, ‘teatropismo’, etc. etc., indicam classificações que são tão superficiais como são conjeturais. Levy-Bruhl, que considera que ‘a mentalidade primitiva, como é bem sabido, é acima de tudo concreta e de modo algum conceptual’ e que ‘nada lhe é mais estranho que a ideia de um Deus único e universal’, atribui a esta visão ‘pré-lógica’ a ideia de que ‘cada planta… tem o seu criador próprio’. Agora o Islão, que certamente não é ‘pré-lógico’, ensina que cada gota de chuva é depositada por um anjo; a ideia do ‘anjo da guarda’, incidentalmente, não está desligada da perspetiva – inteiramente ‘lógica’ – que aqui se encontra em questão. Não sabemos se para a escola de Levy-Bruhl os pigmeus são ‘primitivos’, mas em todos os eventos a existência, pela sua parte, da ideia do Deus Supremo não é posta em dúvida (cf. R. P. Trilles, L’Ame du Pygmee d’Afrique, Paris, Editions du Cerf, 1945).

6  É valioso apontar o abuso da palavra ‘magia’. Autores que a qualquer oportunidade falam da ‘imagem mágica do mundo’ (magisches Weltbild) são obviamente de todo ignorantes do que ela trata, ou antes apenas possuem uma vaga noção das analogias cósmicas que a magia desencadeia.

7  No que concerne estas expressões índias, tão desnecessariamente objetos de controvérsia, não vemos razão para não as traduzir como ‘espírito’, ‘mistério’ ou ‘sagrado’, dependendo do caso. É obviamente irrazoável supor que estas expressões não possuem significado, que os índios falam em ordem a nada dizerem, ou que eles adotam modos de expressão sem saberem porquê. Que não existe equivalência completa entre uma língua e outra – ou entre um pensamento e outro – é uma questão inteiramente diferente.

8  Esta é a razão – seja dito de passagem – de desconfiarmos de considerações condescendentes de uma ‘puridade primitiva’ ou de uma ‘concretude’ que desdenha ‘especulações’, daí todas estas reversões anti escolásticas à ‘simplicidade dos Pais’; pois em tais casos é frequentemente uma questão de mera incapacidade, a qual, em vez de admitir o que é, se prefere esconder por detrás da ilusão de uma atitude superior.

9  O oposto apenas é verdade num sentido superior, que não mais possui qualquer ligação com  a ordem sensível. Para o metafísico, pensar é ‘ver’ princípios ou ‘ideias’.

10  Do mesmo modo, uma doutrina metafísica pode perder as suas características ao degenerar-se, através de sucessivos graus de incompreensão até ao nível de um sistema puramente lógico – e portanto fragmentário e estéril. A idolatria no sentido estrito do termo é talvez um fenómeno primariamente semítico; com os antigos árabes não tinha inclusive a desculpa de derivar de um simbolismo, pois os seus ídolos possuíam frequentemente origens puramente humanas e empíricas.

11  Similarmente, de acordo com o testemunho de um sioux no final do século 19: ‘O Homem Vermelho dividiu a mente em duas partes: a mente espiritual e a mente física. A primeira é espírito puro, apenas preocupada com a essência das coisas, e foi isto que ele procurava fortalecer através da oração espiritual, durante a qual o corpo é submetido pelos jejuns e provações. Neste tipo de oração não existiam súplicas de favor ou de ajuda. Todos os assuntos de natureza pessoal ou egoísta, como o sucesso na caça e na guerra, alívio de doença, ou a poupança de um ente amado, eram definitivamente relegados para o plano da mente mais baixa ou material, e todas as cerimónias, encantamentos e feitiços desenhados para assegurar um benefício ou evitar um perigo, eram reconhecidos como emanando do ser físico’. Ver Charles A. Eastman (Ohiyesa), The Soul of the Indian, Lincoln, University of Nebraska Press, 1980. [A Alma do Índio, Planeta Vivo, 2005].

12  Um eco disto encontra-se no Poverello de Assisi.

13  Deve ser dito que os gregos do período clássico, com o seu empirismo científico, foram os primeiros a destituir a Natureza da sua majestade, sem, contudo, a destronarem na consciência popular. Existiam Dodona e outros santuários a céu aberto, mas não deve ser esquecido que o templo antigo é oposto à Natureza virgem como a ordem se opõem ao caos, ou a razão ao sonho. Obviamente que isto é igualmente verdade, em determinada medida e pela natureza das coisas, de toda a arte humana, mas a mente greco-romana é peculiar em ser muito mais atraída para a ideia de ‘perfeição’ que à de ‘infinito’; ‘perfeição’ ou ‘ordem’ tornam-se no próprio conteúdo da sua arte, ao pondo de excluírem toda a recordação das Essências. – Sem dúvida esta verdade parcial deveria ser complementada por outra, nesta altura positiva em caráter: um amigo uma vez afirmou, corretamente, que o Deus dos gregos, que é um ‘geómetra’, não ‘criou’, mas ‘media’ o mundo, como a luz ‘mede’ o espaço. Portanto o templo grego, com a sua claridade, as suas linhas retas, os seus ritmos precisos, incarna ou antes ‘cristaliza’ a luz, e a este respeito opõe-se, não à Natureza como tal, mas à terra, daí também à matéria, peso e opacidade; por outras palavras, não apenas constitui uma sistematização abstrata e limitativa, mas também uma revelação do Intelecto e uma totalidade. A mesma afirmação também poderia ser feita acerca do Taj Mahal e outros edifícios islâmicos do tipo, mas com esta diferença, de que nos últimos casos a luminosidade é concebida de um modo menos ‘matemático’, e de um modo que é muito mais próximo da ideia do infinito.

14  Para a teologia cristã, o único propósito da Natureza parece ser o de servir o homem terrestre – poder-se-ia perguntar de que lhe serve um qualquer paquiderme dos trópicos ou um monstro marinho – tanto que o Jerusalém Celestial, onde o homem não mais encontra necessidades físicas, não contém animais nem plantas; contrariamente ao simbolismo muçulmano, é um paraíso de cristal. Os jannāt do Islão, é verdade, são ‘feitos de pérola, rubi e esmeralda’, mas eles no entanto são jardins que contêm árvores, frutos, flores e pássaros. Não é nossa intenção aqui criticar qualquer simbolismo – tal é claro – mas apenas certas especulações que de tal são derivadas; então, tem sido mantido que a alma do animal apenas existe através da matéria, da qual não é mais que a reflexão interior; mas isto deixa sem explicação, primeiramente, as diferenças de forma – qualitativas e psicológicas – entre os animais, e mesmo os traços afetivos, e mesmo contemplativos, que eles manifestam. Quando a Bíblia afirma que o homem deve reinar sobre os animas, parece-nos que isto não implica que eles apenas ali estão para o servir.

15  Prontamente se fala em ‘conquistar’ o Matterhorn, o Evereste, o Anapurna, os hindus, a lua, o espaço, e aí por adiante. Na prática a Natureza é simplesmente o oponente a ser abatido: o mundo encontra-se dividido em dois campos, seres humanos e Natureza. Sem dúvida, existe um certo módico de verdade nisto, mas tudo depende no significado dado a esta oposição.


16  É essencial não confundir simbolismo e ‘naturismo’, como os entendemos, com os movimentos filosóficos e literários que abusivamente se apropriaram destes termos. Nada se encontra mais afastado do simbolismo védico, xintoísta ou norte-americano que o naturalismo artístico dos greco-romanos e as suas interpretações anedóticas dos mitos.

Wakinyan-Tanka - O Simbolismo da Águia Entre os Peles Vermelhas

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