Monday, October 30, 2017

Características Judaicas - O Problema



Werner Sombart (1863-1941) será no seio académico económico da Alemanha, um espelho da instabilidade política, social e financeira que este país viveu durante os finais do século XIX e a primeira metade do século XX.

Filho de uma abastada família burguesa da Saxónia, este jurista e economista de profissão, tornou-se ainda jovem um radical de esquerda de renome que, inclusive, foi considerado por Engels como o único professor universitário que corretamente interpretava o ‘Das Kapital’.

No decorrer da sua carreira na Universidade dedicou-se à sociologia política, na esteira do seu colega e amigo Max Weber, tendo como este focado a sua obra na história do capitalismo moderno e no entendimento do seu espírito e dos processos que levaram à primazia desta nova mundividência económica e financeira na Europa coeva.

Em 1901, na altura em que publica a sua obra de referência, ‘O Capitalismo Moderno’, já se tinha afastado dos círculos marxistas que frequentava, tendo esta deriva ideológica acentuado-se durante o período da República de Weimar, que o aproximou dos meios mais nacionalistas de então. A sua posterior ligação ao regime nazi foi distante e ambivalente.

Aqui propomos traduzir do inglês um capítulo do livro que será o mais conhecido nos meios académicos internacionais, ‘Os Judeus e o Capitalismo Moderno’, de 1911, onde Sombart retrata a influência dos judeus na criação e desenvolvimento das instituições capitalistas e, mais importante, perceber as razões porque o chamado espírito capitalista se conforma tão perfeitamente com as características do povo judaico.

Um trabalho académico sério e honesto, em que se tenta não cair na insanidade daqueles que pretendem não reconhecer o génio judaico, ou admitir sequer uma particularidade interior a este povo; ou no outro extremo de paranoia daqueles que denunciam complôs judaicos a cada esquina e que só concebem o sucesso judaico – que, diga-se, não se restringe apenas ao meio económico – por vias nefárias e esquemas pérfidos.

Dado o capítulo em questão – ‘As Características Judaicas’ – ser bastante longo, propomo-nos dividi-lo em três partes, tendo neste post traduzido apenas a primeira seção, ‘o Problema’, que esclarece as bases da exposição mais detalhada que virá adiante.

Vivamente recomendamos a leitura de toda a obra, que é facilmente acessível na internet em inglês, tanto pelo estilo do autor – sóbrio e direto, como não seria esperar de um académico alemão – mas sobretudo pelos diversos temas tratados, desde a evolução das instituições mercantis, ao surgimento do estado capitalista e o seu contraponto ao estado tradicional que jazia sobre as ruínas da Idade Média, até à análise detalhadas da diáspora judaica, a uma investigação aprofundada das características deste povo em diversas modalidades e da sua aptidão para ocuparem um lugar de primazia no atual estado em que se encontra a Europa e o mundo ocidental em geral.


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A decisão de lidar num trabalho de caráter científico com o problema sugerido pelo título do presente capítulo não chegou sem um grande esforço. Pois ultimamente tem-se tornado uma moda pegar em qualquer coisa que soe mesmo que remotamente a psicologia de nações como joguete das disposições dos dilettanti, enquanto descrições do génio judaico têm sido incensadas como a nova forma de desporto político pelos espíritos mais grosseiros, cujos rudes instintos não podem senão ofender todos aqueles que, na nossa época vulgar, têm conseguido preservar um módico de bom-gosto e de imparcialidade. Fazer malabarismos injustificáveis com categorias de psicologia de raça já levou à conclusão de que é impossível chegar a quaisquer resultados científicos neste campo de estudo. Leiam-se os livros de P. Hertz, Jean Finot e outros e depois de os acabar fica-se com a sensação de que é uma tentativa fútil a de tenter encontrar características psicológicas comuns entre qualquer conglomeração de humanos; esse esprit francês é um mito – de facto não existem franceses, assim como não existem judeus. Mas atravesse-se a rua e eis que é se confrontado com um tipo específico; leia-se um livro ou observe-se uma fotografia e quase inconscientemente dir-se-á: quão alemão, quão tão francês!

Será isto apenas uma extravagância da nossa imaginação?

Julgamos que não. Se pensamos por um momento na história humana temos de construir para a nossa análise a hipótese de uma espécie de “alma coletiva”. Quando, por exemplo, falamos da religião judaica estamos destinados a ligá-la com o povo judeu cujo génio lhe deu nascimento. Ou quando dizemos que os judeus tiveram uma influência no moderno desenvolvimento económico, segue-se seguramente que deve existir algo essencialmente judaico que o trouxe à tona. De outro modo bem podemos afirmar que não teria feito qualquer diferença para a história económica da Europa Ocidental se os esquimós tivessem ocupado o lugar dos judeus, ou talvez que até gorilas tivessem tido resultados igualmente bons!

Este reducito ad absurdum mostra claramente que devem existir algumas características especificamente judaicas. Mas deixe-se considerar o assunto de um ponto de vista ligeiramente diferente. Vamos observar as características objetivas na aptitude judaica para o capitalismo moderno. Existiu primeiro, como já vimos, a dispersão dos judeus por uma grande área geográfica. Agora, sem recurso às forças subjetivas da Diáspora, pouco pode ser explicado como efeito da Diáspora. E uma coisa é evidente. A dispersão de um povo não provoca por si mesma resultados económicos ou culturais; não, muito frequentemente a dispersão leva à fusão e ultimamente ao desaparecimento.

Já foi reclamado – e com razão – que foi a dispersão dos judeus que os capacitou para se tornarem intermediários. Concedido, mas também permitiu fazer deles negociantes e conselheiros privados de príncipes, vocações que têm desde tempos imemoriais sido os trampolins para postos mais altos? Foram inerentes aos próprios judeus as capacidades essenciais para estas novas posições?

Admitimos que a dispersão dos judeus foi responsável por não pouco do seu sucesso no comércio internacional e na banca. Mas não é o postulado para este sucesso o facto de que os judeus em toda a parte se mantivessem juntos? O que teria acontecido se, como tantas outras raças dispersas, eles não tivessem mantido essas ligações de união?

Por fim, não nos esqueçamos que os judeus apareceram apenas entre os povos que aconteceram encontrarem-se maduros o suficiente para receber o capitalismo. Mas mesmo assim, se a influência judaica era forte (e ainda o é) na Holanda, em Inglaterra, na Alemanha, na Áustria-Hungria – muito maior que a sua influência junto dos espanhóis, italianos, gregos ou árabes – foi em larga medida devido aos contrastes entre eles e os seus hóspedes. Já que assim pareceria que quanto mais lento de raciocínio, mais cabeça-dura, mais iletrado em negócios seja um povo, mais efetiva será a influência judaica na sua vida económica. E pode isto ser satisfatoriamente justificado exceto através de especiais peculiaridades judaicas?

Independentemente da origem da sua inata dissemelhança com os seus hóspedes, o ponto saliente é que esta dissemelhança lhes tivesse obtido uma influência duradoura na vida económica. Uma vez mais é impossível imaginar isto sem a assunção de características inerentemente judaicas. Que um povo ou uma tribo seja detestada ou perseguida não nos fornece razão suficiente para os motivar para redobrar os esforços nas suas atividades. Pelo contrário, na maior parte dos casos este desprezo e mau tratamento servem para destruir a moral e iniciativa. Apenas onde o homem possui qualidades excecionais estas se tornam, sob a pressão das circunstâncias, a fonte de energia regenerada.

De novo, olhe-se à sua semi-cidadania. Não se aplica aqui também argumento idêntico? É tão óbvio ao ponto de quase se tornar num truísmo. Em nenhuma outra parte o judeu gozou das mesmas vantagens que o seu concidadão, e mesmo assim em todo o lugar eles conquistaram economicamente muito mais que o resto da população. Apenas pode existir uma explicação para isto – as características especificamente judaicas.

Por outro lado, a posição legal dos judeus variava em diferentes países e em alturas diferentes. Em alguns Estados eles eram permitidos em participar em certos ofícios; noutros estes mesmos ofícios eram-lhes proibidos; em outros de novo, como em Inglaterra, eles estavam em perfeito pé de igualdade com o resto da população a este respeito. E mesmo assim eles devotaram-se quase em toda a parte a vocações específicas. Em Inglaterra e na América eles iniciaram a sua missão comercial ao tornarem-se comerciantes de moeda e lojistas. E pode isto ser tomado de outro modo que não seja o apontar para as suas características peculiares?

Quanto à riqueza dos judeus, tal, apenas e tão só, é suficiente para explicar os seus grandes feitos na esfera das atividades económicas. Um homem que possui vastas quantidades deve possuir um número de qualidades intelectuais, se o seu dinheiro é empregue vantajosamente no sentido capitalista. Isso seguramente não requer prova.

As características judaicas devem portanto existir. Resta só descobrir quais são elas.

O nosso primeiro pensamento dos judeus como uma unidade irá naturalmente ser associado com a sua religião. Mas antes que procedamos um degrau mais, gostaria de dizer que, por um lado, delimitarei o grupo agrupado sob a religião judaica, e, por outro lado, vou alargá-lo. Vou limitá-lo ao apenas considerar os judeus desde a sua expulsão de Espanha e Portugal, isto é, desde o final da Idade Média. Devo alargá-lo ao incluir no círculo das minhas observações os descendentes de judeus, mesmo que tenham deixado a fé.

Além disso, gostaria de tocar nos argumentos que se insurgem contra a existência de peculiaridades judaicas.

(1) Foi escrito que os judeus da Europa Ocidental e da América têm-se, em larga medida, assimilado com os povos entre os quais se movimentam. Isto não necessita ser negado, mesmo que características especificamente judaicas fossem claras como a luz do dia. Não é possível que grupos sociais se misturarem? Um homem pode ser alemão, ter todas as características de um alemão, e mesmo assim ser um indivíduo pertencente ao grupo dito “proletariado internacional”! Ou tome-se outro exemplo. Não são os suíços-alemães ao mesmo tempo suíços e alemães?

(2) Os judeus na Diáspora, é mantido, não são uma “nação” ou um “povo” no comumente aceite significado do termo, já que eles não são uma comunidade política, cultural ou linguística. A resposta a esta objeção é a de que existem muitas outras qualificações para além daquelas mencionadas (por exemplo, uma origem comum) que devem ser consideradas. Mas generalizando, o melhor será não pressionar uma definição neste momento.

(3) Demasiado tem sido dito sobre as diferenças entre os próprios judeus. Tem sido dito que não existe homogeneidade entre os judeus, que uma secção se encontra asperamente oposta à outra. Os judeus ocidentais são diferentes dos judeus orientais, os sefarditas dos asquenazes, os ortodoxos dos liberais, o judeu comum do judeu do Sabat (para usar uma expressão de Marx). Isto também não necessita de ser negado. Mas não impede de modo algum a possibilidade de características judaicas comuns. É assim tão difícil conceber círculos dentro de círculos? Não pode um grupo largo conter grupos menores dentro de si? Pense-se nos muitos grupos ao qual um inglês pode pertencer. Ele será um católico ou um protestante, um agricultor ou um professor, um nortenho ou um sulista ou Deus saberá de que outro lugares. Mas ele mantem-se inglês de qualquer modo. Assim com o judeu. Ele poderá pertencer a um círculo dentro do todo, poderá possuir certas características que marcam todos os indivíduos nesse círculo, mas ele reterá de qualquer modo as características especificamente judaicas.

Finalmente, devo fazer claro que não tenho intenção de descrever todas as características judaicas. Proponho lidar com apenas aquelas que tem conexão à vida económica. Não me contentarei com antigas expressões, tais como o “comercialismo” judeu, o “espírito de negociação” e outras do mesmo género. Nada direi quanto à prática de alguns de incluir o desejo pelo lucro como uma característica de um grupo social. O desejo de lucro é humano – demasiado humano. Na verdade, devo rejeitar todas as prévias análises da alma judaica (no que respeita à parte económica), e pelas seguintes razões. Primeiro, para o que os judeus se encontrava tão bem predisposto, tal nunca foi claramente definido. “Para a troca” é um termo demasiado vago para ser de qualquer uso. Eu demonstrei portanto, num capítulo especial, o círculo de atividades económicas para o qual o judeu se encontra particularmente capacitado. Segundo, a mera descrição não é explicação. Se eu quero provar que um homem tem todas as capacidades necessárias para o tornar num especulador admirável no mercado de ações, não será suficiente se eu disser que ele fará um bom ladrão. É como dizer que a indigência advém da pobreza. No entanto isso é o modo como os talentos económicos judaicos têm sido tratados. O nosso método será diferente. Tentaremos descobrir certas propriedades da alma que são congeniais ao exercício das funções económicas num capitalismo orgânico.

E agora, tendo aclarado o caminho, devo proceder a demonstrar quais são as verdadeiras peculiaridades judaicas.

A Cidade Antiga - O Fogo Sagrado



Em baixo deixamos a tradução do terceiro capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘O Fogo Sagrado’.

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Na casa de cada grego e romano encontrava-se instalado um altar; neste alter existia sempre uma pequena quantidade de cinzas e uns poucos carvões. Era uma obrigação sagrada para o mestre de todas as casas a de manter o foco aceso noite e dia. Desgraça caía na casa em que o fogo se extinguisse. Todas as noites eles cobriam os carvões com as cinzas para prevenir que estes fossem inteiramente consumidos. De manhã, o primeiro cuidado era o de reavivar o fogo com alguns ramos. O fogo só deixava de brilhar no altar quando a família inteira tivesse desaparecido; uma terra extinguida, uma família extinguida, eram expressões sinónimas entre os antigos.

É evidente que este uso de manter o fogo constantemente no altar estava relacionado com uma crença antiga. As regras e os ritos que eles observavam em relação a isto mostram que não era um costume insignificante. Não era permitido alimentar o fogo com qualquer tipo de madeira; a religião distinguia entre as árvores que podiam ser empregues para este uso daquelas com as quais era impiedade fazer uso delas.

Era também um preceito religioso que o fogo se mantivesse sempre puro, o que significava, literalmente, que nenhum objeto sujo fosse colocado sobre ele e, metaforicamente, que nenhum ato condenável fosse praticado na sua presença. Existia um dia no ano – entre os romanos era o primeiro de Março – quando era o dever de cada família o de apagar o fogo sagrado e imediatamente acender outro. Mas para reacender este novo fogo, certos ritos tinham de ser escrupulosamente observados. Especialmente deviam evitar usar pedra e ferro para este propósito. Os únicos processos permitidos eram os de concentrar os raios solares num foco ou de esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinado tipo. Estas diferentes regras provam suficientemente que, na opinião dos antigos, não era uma questão de procurar um elemento útil ou agradável; estes homens viam algo diferente no fogo que era queimado nos seus altares.

Este fogo era algo divino; eles adoravam-no, e ofereciam-lhe um culto real. Faziam-lhe oferendas de quaisquer coisas que julgavam ser agradáveis a um deus – flores, frutas, incenso, vinho e vítimas. Acreditavam que tinham poder e pediam-lhe a sua proteção. Dirigiam preces ferventes a ele, para obter aqueles objetos eternos do desejo humano – saúde, riqueza e felicidade. Uma destas preces, que foi preservada na coleção dos Hinos Órficos, seguia assim: “Torna-nos para sempre prósperos, sempre felizes, Ò Fogo; Vós que sois eterno, belo, sempre jovem; Vós que alimentais, Vós que sois rico, recebais favoravelmente estas nossas oferendas e de volta dai-nos felicidade e doce saúde.”

Então eles viam no fogo um deus beneficente, que mantinha a vida do homem, um deus rico, que o nutria com prendas; um deus poderoso, que protegia a sua casa e família. Na presença de perigo eles deviam procurar refúgio perto deste fogo. Quando o palácio de Priam é destruído, Hécuba traz o velho homem para junto da terra. “As vossas armas não podem proteger”, diz ela; “mas este altar a todos protegerá.”

Veja-se Alceste, que está prestes a morrer, dando a sua vida para salvar o seu marido. Ela aproxima-se do fogo e invoca-o nestes termos: “Ò divindade, ama desta casa, pela última vez me prostro diante de Vós, e dirijo as minhas preces, pois vou descender para o seio dos mortos. Cuidai dos meus filhos, que não terão mãe; dai ao meu filho uma mulher afetuosa, e à minha rapariga, um nobre marido. Não os deixais, como a mim, morrer antes do tempo; mas deixai-os aproveitar uma longa vida no seio da felicidade. ”

Na desfortuna o homem recorreu ao fogo sagrado e a ele lançou censuras; na boa fortuna devolveu-lhe graças. O soldado que retornava da guerra agradecia-lhe por lhe ter permitido escapar aos perigos. Ésquilo descreve Agamemmon a regressar de Troia, feliz, coberto de glória. O seu primeiro ato não é de agradecer a Júpiter; ele não se desloca ao templo para descarregar a sua alegria e gratidão, mas faz um sacrifício de boas-graças ao fogo na sua própria casa. Um homem nunca saía da sua habitação sem endereçar uma prece ao fogo; no seu retorno, antes de ver a sua mulher e abraçar os seus filhos, ele deve prostra-se diante do fogo, e invoca-o.

O fogo sagrado era a Providência da família. O culto era muito simples. A primeira regra era que deviam sempre existir uns poucos carvões vivos no altar; pois se o fogo se extingue um deus deixa de existir. Em certos momentos do dia eles colocavam sobre o fogo ervas secas e madeira; então o deus manifestava-se numa chama brilhante. Eles ofereciam-lhe sacrifícios; e a essência de todo o sacrifício era o de suster e reanimar o fogo sagrado; alimentar e desenvolver o corpo do deus. Esta era a razão por que lhe davam madeira antes de qualquer outra coisa; pela mesma razão depois deitavam vinho sobre o altar – o inflamável vinho da Grécia – óleo, incenso e a gordura das vítimas. O deus recebia estas oferendas e devorava-as; radiante com satisfação, ele levantava-se acima do altar e iluminava o adorador com a sua luminosidade. Então era o momento de invocá-lo; e o hino da oração saía do coração do homem.

Especificamente eram as refeições familiares atos religiosos. O deus aí presidia. Ele tinha cozinhado o pão e preparado a comida; a oração, portanto, era devida no início e no final do repasto. Antes de comer, eles colocavam sobre o altar os primeiros frutos da comida; antes de beber, eles deitavam uma libação de vinho. Esta era a porção do deus. Ninguém duvidava que ele se encontrava presente, que ele comia e bebia; pois não viam eles que a chama aumentava como se tivesse sido alimentada pelas provisões oferecidas? Portanto a refeição estava dividida entre o homem e o deus. Era uma cerimónia sagrada, pela qual eles estabeleciam comunhão um com o outro. Esta é uma crença antiga, a qual no decurso do tempo, desapareceu das mentes dos homens, mas que deixou atrás, durante muitas eras, ritos, usos e formas de linguagem das quais até os incrédulos não se conseguiam libertar. Horácio, Ovídio e Petrónio ainda ceavam diante dos seus fogos, providenciavam libações e dirigiam-lhes preces.

Este culto do fogo sagrado não pertenceu exclusivamente às populações da Grécia e Itália. Encontramo-lo no Oriente. As Leis de Manu, como chegaram até nós, mostram-nos a religião de Brahma completamente estabelecida, e inclusive no início do seu declínio; mas eles preservaram vestígios e relíquias de uma religião ainda mais ancestral – a do fogo sagrado – a qual a adoração de Brahma tinha reduzia a um patamar secundário, mas que não a conseguiu destruir. O brahmin tem de manter o seu fogo dia e noite; todas as manhãs e todas as noites ele alimenta-o com madeira; mas, como com os gregos, esta deve ser madeira proveniente de certas árvores. Como os gregos e os italianos lhe oferecem vinho, o hindu despeja sobre ele um licor fermentado, ao qual chama de soma. As refeições, também, são atos religiosos, e os ritos estão escrupulosamente descritos nas Leis de Manu. Eles dirigem preces ao fogo, como na Grécia; oferecem-lhe os primeiros frutos do arroz, manteiga e mel. Lemos que “o brahmin não devia comer arroz da nova colheita sem ter oferecido os seus primeiros frutos ao fogo sagrado; pois o fogo sagrado é sedento de sementes, e quando não é honrado, devorará a existência do brahmin negligente.” Os hindus, como os gregos e os romanos, concebiam os deuses como insaciáveis não só de honras e respeito, mas de comida e bebida. O homem acreditava-se compelido a satisfazer a sua fome e sede, se desejava evitar a sua fúria.

Entre os hindus a divindade do fogo é chamado Agni. O Rigveda contém um grande número de hinos dirigidos a este deus. Num é dito, “Ò Agni, vós sois vida, vós sois protetor do homem… Como recompensa dos nossos louvores, concede ao pai de família que implora pela vossa glória e riquezas… Agni, vós sois um prudente defensor e um pai; a vós devemos a vida; nós somos a vossa família. ” Portanto o fogo desta terra é, como na Grécia, um poder tutelar. O homem pede pela sua abundância: “Fazei a terra mais pródiga para nós.” Ele pediu-lhe saúde: “Garanti que eu desfrute de uma longa vida, e que eu possa chegar a uma idade avançada, como o sol poente.” Ele inclusive roga-lhe sabedoria: “Ò Agni, vós que colocais sobre o bom trilho o homem que vagueou pelo caminho ímpio… Se tivermos cometido uma falta, se fomos para longe de Ti, perdoai-nos.” Este fogo da terra era, como na Grécia, essencialmente puro: o brahmin estava proibido de atirar-lhe algo sujo, ou inclusive de aquecer os seus pés nele. Como na Grécia, o homem culpado não podia aproximar-se da sua terra antes de se ter purificado.

É uma forte prova da antiguidade desta crença, e daquelas práticas, encontrá-las ao mesmo período dos homens das margens do Mediterrâneo a e daqueles da Península da Índia. Seguramente os gregos não tomaram esta religião emprestada dos hindus, nem os hindus dos gregos. Mas os gregos, os italianos e os hindus pertenciam à mesma raça; os seus antepassados, num passado muito distante, viveram juntos na Ásia Central. Ali desde cedo originaram e estes ritos foram estabelecidos. A religião do fogo sagrado data, portanto, da distante e obscura época onde ainda não existiam gregos, italianos ou hindus; onde só existiam arianos. Quando as tribos se separaram, eles levaram este culto com elas, algumas para as margens do Ganges, outras para as costas do Mediterrâneo. Mais tarde, quando estas tribos não tinham interação umas com as outras, algumas adoravam Brahma, outras Zeus, outras ainda Jano; cada grupo escolheu os seus próprios deuses; mas todas preservaram, como um legado antiquíssimo, a primeira religião que tinham conhecido e praticado no berço comum da sua raça.

Se da existência deste culto entre todas as nações indo-europeias não foi suficientemente demonstrada a sua elevada antiguidade, podemos encontrar outras provas da mesma nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos. Em todos os sacrifícios, até naqueles oferecidos a Zeus ou a Atena, a primeira invocação era sempre dirigida ao fogo. Toda a oração para qualquer deus devia iniciar e finalizar com uma prece ao fogo. Em Olímpia, o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia foi para a terra-fogo, o segundo era para Zeus. Então, também, em Roma, a primeira adoração era sempre dirigida a Vesta, que era não outra que a divindade do fogo. Ovídio diz desta deusa que ela ocupava o primeiro lugar nas práticas religiosas dos homens. Também lemos nos hinos do Rigveda, “Agni tem de ser invocado antes de todos os outros deuses. Devemos pronunciar o seu venerável nome antes de todos os outros imortais. Ò Agni, qualquer outro deus que honremos com o nosso sacrifício, o holocausto é sempre a Vós oferecido.” É certo, portanto, que em Roma no tempo de Ovídio, e na Índia no tempo dos brahmins, o fogo sagrado tomava precedência sobre todos os outros deuses; não que Júpiter e Brahma não tivessem adquirido uma maior importância na religião dos homens, mas era relembrado que o fogo sagrado era muito mais antigo que esses deuses. Por muitos séculos ele tinha mantido o primeiro lugar no culto religioso e os novos e maiores deuses não o puderam destronar.

Os símbolos desta religião modificaram-se ao longo dos tempos. Quando os povos da Grécia e de Itália começaram a representar os seus deuses por pessoas, e a dar a cada um nome próprio e uma forma humana, o antigo culto do fogo sagrado submeteu-se à lei comum que a inteligência humana, nesse período, impôs a todas as religiões. O altar do fogo sagrado tornou-se personificado. Chamavam-no de estía, Vesta; o nome era o mesmo em latim e em grego, e era o mesmo que na linguagem comum e primitiva designava um altar. Por processo muito frequente, um nome comum tornou-se um nome próprio. Aos poucos surgiu uma lenda. Representou-se esta divindade sob uma forma feminina, porque a palavra usada para altar era do género feminino. Eles foram ao ponto de representar esta deusa em estátuas. Não conseguiram no entanto obscurecer a crença primitiva, de acordo com a qual esta divindade era simplesmente o fogo sobre o altar; e o próprio Ovídio foi forçado a admitir que Vesta não mais era que uma “chama viva.”

Se compararmos este culto do fogo sagrado com o culto dos mortos, do qual já falámos, percebemos uma relação próxima entre eles.

Note-se, em primeiro lugar, que este fogo, que se mantinha a arder na lareira, não era, nos pensamentos dos homens, o fogo da natureza material. O que eles viam não era o elemento puramente físico que aquece e queima, que transforma os corpos, derrete metais e torna-se o poderoso instrumento da indústria humana. O fogo do coração é de uma natureza muito diferente. É um fogo puro, que só pode ser produzido com a ajuda de certos ritos, e que só pode ser mantido com certos tipos de madeira. É um fogo casto, do qual a união dos sexos deve ser removida para muito longe da sua presença. Eles rezam a ele não apenas para riquezas e saúde, mas também com vista à pureza de coração, temperança e sabedoria. “Tornai-nos ricos e prósperos,” diz um hino Órfico; “tornai-nos também sábios e castos”. Então o fogo sagrado é uma espécie de ser moral; ele brilha, e aquece, e prepara a comida sagrada; mas ao mesmo tempo ele pensa, e tem uma consciência; ele conhece os deveres humanos, e vê se eles foram cumpridos. Um poderá chamá-lo de humano, porque tem a dupla natureza de homem; fisicamente, brilha, move-se, vive, busca abundância, prepara o repasto, alimenta o corpo; moralmente, tem sentimentos e afetos, dá pureza ao homem, ordena o belo e o bom, alimenta a alma. Pode-se dizer que suporta a vida humana na dupla série das suas manifestações. É ao mesmo tempo fonte de riqueza, de saúde, de virtude. É verdadeiramente o deus da natureza humana. Mais tarde, quando este culto tinha sido relegado para segundo lugar por Brahma e por Zeus, ainda se manteve no fogo sagrado o que de divino era mais acessível ao homem. Tornou-se o seu mediador com os deuses de natureza física, encarregou-se de levar ao céu a oração e a oferenda do homem, e de trazer de volta os favores divinos. Ainda mais tarde, quando fizeram o grande Vesta deste mito do fogo sagrado, Vesta tornou-se a deusa virgem. Ela não representava no mundo a fecundidade ou o poder; ela era ordem, mas não a ordem rigorosa, abstrata, ordem matemática, a lei imperiosa e imutável, que logo se descobre na natureza física. Ela era ordem moral. Eles imaginavam-na como uma espécie de alma universal, que regulava os diversos movimentos dos mundos, como a alma humana mantém ordem no sistema humano.

Então somos permitidos a olhar para o modo de pensar das gerações primitivas. O princípio deste culto situa-se fora da natureza física, e encontra-se neste pequeno mundo misterioso, o microcosmo – o homem.

Isto traz-nos de volta ao culto dos mortos. Ambos são da mesma antiguidade. Eles encontravam-se tão estreitamente próximos que a crença dos antigos fez disso uma religião. Fogos, demónios, heróis, Lares, todos se confundiam num. Observamos de duas passagens de Plauto e de Columela que, na linguagem comum, eles dizem, indiferentemente, fogo ou lar doméstico; e também sabemos que, no tempo de Cícero, não distinguiam entre o fogo e penates, e vice-versa. Em Sérvio lê-mos, “Pelo fogo os antigos entendiam o Lares”, e Virgílio escrevia, indiferentemente, fogo e Penates. Numa famosa passagem da Eneia, Heitor diz a Eneias que lhe vai confiar os penates de Troia, e é o fogo sagrado que é confiado ao seu cuidado. Noutra passagem, Eneias invoca estes mesmos deuses, chamando-os ao mesmo tempo Penates, Lares e Vesta.

Já vimos que aqueles cujos antigos chamavam Lares, ou heróis, eram não outros que as almas dos mortos, aos quais os homens atribuíam um poder super-humano e divino. A reminiscência de um destes mortos sagrados estava sempre ligada ao fogo sagrado. Ao adorar um, os adoradores não podiam esquecer o outro. Eles estavam associados no respeito pelos homens, e nas suas preces. Os descendentes quando falavam do fogo sagrado, falavam constantemente do nome do antepassado: “Deixa este lugar,” diz Orestes à sua irmã, “e avança em direção ao fogo antigo de Pélops, para escutar as minhas palavras.” Do mesmo modo, Eneias, falando do fogo sagrado que o transporta através das águas, designa-o pelo nome do Lar de Assáraco, como se visse neste fogo a alma do seu antepassado.

O gramático Sérvio, que era muito lembrado em antiguidades gregas e romanas - as quais eram muito mais estudadas nessa altura do que no tempo de Cícero - diz que era um uso muito antigo enterrar os mortos nas casas, e acrescenta: “Como resultado deste uso, eles honram os Lares e os Penates em suas casas.” Esta frase claramente estabelece uma antiga relação entre a adoração dos mortos e o fogo sagrado. Podemos supor que o fogo doméstico era de início apenas um símbolo do culto dos mortos; que sob a pedra da lareira repousava um antepassado; que o fogo era acendido aí para o honrar, e que o fogo parecia preservar a vida nele, ou que representava a sua alma como sempre vigilante.

Esta é meramente uma conjetura e não possuímos prova dela. No entanto, é certo que as mais antigas gerações das quais os gregos e os romanos brotaram não figuravam os seus deuses com forma física, mas no próprio homem, e tal tinha como objeto a adoração do ser invisível que se encontra em nós, o poder moral e pensante que emana e governa os nossos corpos.


Esta religião, depois de certo tempo, começou a poder o seu poder sobre a alma; tornou-se enfraquecida gradualmente, mas sem desaparecer. Contemporaneamente às primeiras idades da raça ariana, tornou-se tão profundamente enraizada nas mentes desta raça que o brilhante religião do Olimpo grego não a pode extirpar, só o conseguindo o Cristianismo.

Friday, October 27, 2017

A Cidade Antiga - A Veneração dos Mortos

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Em baixo deixamos a tradução do segundo capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘A Veneração dos Mortos’.

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Esta crença muito cedo deu nascimento a certas regras de conduta. Já que os mortos tinham necessidade de comida e bebida, aparecia como dever dos vivos o de satisfazer esta necessidade. O cuidado de prover os mortos com sustento não era deixado ao capricho ou às variações dos sentimentos dos homens; era obrigatória. Daí a completa religião dos mortos foi estabelecida, cujos dogmas puderam em breve ser obscurecidos, mas cujos ritos duraram até ao triunfo do Cristianismo. Os mortos eram levados em conta como seres sagrados. Para eles os antigos aplicavam os mais respeitosos epítetos que podiam pensar; chamavam-nos de bons, sagrados, felizes. Para eles tinham toda a veneração que o homem pode ter pelo divino que ama ou teme. Nos seus pensamentos os mortos eram deuses.

Este tipo de apoteose não era o privilégio dos grandes homens; nenhuma distinção era feita entre os mortos. Cícero diz: “Os nossos antepassados desejavam que os homens que tinham deixado a vida deviam ser contados no número dos deuses.” Não era necessário ter sido inclusive um homem virtuoso: o homem perverso, assim como o homem bondoso, tornava-se um deus; mas ele mantinha na segunda vida todas as más inclinações que o tinham atormentado na primeira.

Os gregos davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Ésquilo, o filho assim invocava o pai falecido: “Ò Vós que sois um deus debaixo da terra.” Eurípedes diz, falando de Alcésio: “Perto da sua tumba um passante para e diz, ‘Esta é agora três vezes uma divindade feliz.’”

Os romanos davam aos mortos o nome de Manes. “Prestem aos names o que lhes é devido.”, diz Cícero; “eles são homens que deixaram a vida; considerem-nos como seres divinos.” Os túmulos eram os templos destas divindades, e elas continham as inscrições sacramentais, Dis Manibus, e em grego, theõis ethoníois. Aí o deus vivia debaixo do solo, manesque sepulti, diz Virgílio. Antes do túmulo existia um altar para os sacrifícios, como antes os templos dos deuses.

Encontramos esta adoração dos mortos entre os helenos, entre os latinos, entre os sabinos, entre os etruscos e ainda a encontramos entre os arianos da Índia. Tal menção é feita nos hinos do Rigveda. É do mesmo falado nas Leis de Manu como a mais antiga adoração existente entre os homens. Vemos neste livro que a ideia de metempsicose [transmutação das almas] já se tinha sobreposto sobre esta crença ancestral, mesmo antes da religião de Brahma ter sido estabelecida; e mesmo sob a adoração de Brahma, sob a doutrina de metempsicose, a religião das almas dos antepassados ainda subsiste, viva e indestrutível, e compele o autor das Leis de Manu a tomá-la em conta e a admitir as suas regras no livro sagrado. A não menos singular coisa sobre este livro estranho é a de ter preservado as regras relativas a esta crença antiga, enquanto foi evidentemente preparado numa era quando uma crença inteiramente diferente tinha já ganho ascendência. Isto prova que muito tempo é necessário para transformar uma crença humana, e ainda mais para modificar as suas formas externas, e as leis nela baseadas. No dia presente, inclusive, depois de tantos ciclos de revolução, os hindus continuam a fazer oferendas aos seus antepassados. Esta crença e estes ritos são os mais antigos e os mais persistentes de qualquer coisa relacionada com a raça indo-europeia. Esta adoração era a mesma na Índia, na Grécia e em Itália. O hindu tinha de fornecer os nomes com o repasto, que era chamado de sraddha. “Que o chefe da casa faça a sraddha com arroz, leite, raízes e frutos, em ordem para procurar para si a boa-vontade dos manes.”

A crença hindu acreditava que o momento em que este repasto funerário era oferecido, os manes dos seus antepassados se sentavam ao seu lado e tomavam o alimento que lhes era oferecido. Ela também acreditava que este repasto providenciava ao morto uma grande satisfação. “Quando o sraddha é feito de acordo com os ritos, os antepassados daquele que o oferece experimenta uma satisfação sem limites.”

Assim os arianos do Leste tinham, de início, a mesma noção daqueles do Ocidente, relativa ao destino do homem depois da morte. Antes de acreditarem na metempsicose, que pressupõe uma absoluta distinção entre a alma e o corpo, eles acreditavam na vaga e na indefinida existência do homem, invisível, mas imaterial, e requeriam dos mortais alimento e oferendas.

O hindu, como o grego, considerava os mortos como seres divinos, que disfrutavam de uma existência feliz; mas a sua felicidade dependia da condição de que as oferendas feitas pelos vivos fosse levada a cabo regularmente. Se o sraddha para uma pessoa falecida não fosse executado regularmente, a sua alma deixava a habitação pacífica e tornava-se um espírito errante, que atormentava os vivos; portanto, se os mortos eram de facto deuses, isto era apenas enquanto os vivos os honravam com a sua adoração.

Os gregos e os romanos tinham exatamente a mesma crença. Se o repasto funerário deixasse de ser oferecido aos mortos, eles imediatamente abandonavam os seus túmulos e tornavam-se sombras errantes, que eram escutadas no silêncio da noite. Elas admoestavam os vivos com a sua negligência; ou procuravam castiga-los infligindo-os com doenças, ou amaldiçoando os seus solos com esterilidade. O sacrifício, a oferenda de alimento e a libação restaurava-os ao túmulo, e devolvia-lhes o seu descanso e os seus atributos divinos. O homem estava então em paz com eles.

Se um morto, tendo sido negligenciado, tornava-se um espírito maligno; um que era homenageado, por outro lado, tornava-se uma divindade protetora. Ele amava aqueles que o alimentavam. Para os proteger ele continuava a tomar parte dos assuntos humanos e frequentemente tinha aí um papel importante. Apesar de morto, ele sabia ser forte e ativo. Os vivos a ele oravam e pediam o seu apoio e os seus favores. Quando alguém vinha perto do seu túmulo, parava e dizia: “Deus subterrâneo, que me sejas propício!”

Podemos julgar o poder que os antigos atribuíam a esta divindade pela sua prece, que Electra endereça aos manes de seu pai: “Tome piedade de mim, e do meu irmão Orestes; façam-no voltar a este país; ouça a minha prece, Ò meu Pai; granjeie os meus desejos, recebendo as minhas libações.” Estes poderosos deuses não davam apenas ajuda material, pois Electra acrescenta, “Dê-me um coração mais casto que o da minha mãe e mãos mais puras.” Assim o hindu pede do manes “que nesta família o número dos homens deuses aumente e que ele tenha muito para dar.”

Estas almas humanas deificadas pela morte eram o que os gregos chamavam demónios ou heróis. Os latinos davam-lhes os nomes de Lares, Manes ou Genii. “Os nossos antepassados acreditavam,” diz Apúlio, “que os Manes, quando eram malignos, eram chamados de larvae; chamavam-nos de Lares quando eram benevolentes e propícios. ” Noutro lado lemos, “Genius e Lares são a mesma coisa, assim acreditavam os nossos antepassados.” E em Cícero, “Aqueles que os gregos chamavam de demónios, nós chamamos Lares.”


Esta religião dos mortos parece ser a mais antiga que existiu entre esta raça de homens. Antes do homem ter qualquer noção de Indra ou de Zeus, eles adoravam os mortos; eles temiam-nos e dirigiam-lhes as suas preces. Parece que o sentimento religioso se iniciou deste modo. Foi talvez enquanto olhava em direção aos mortos que o homem primeiro concebeu a ideia do sobrenatural e começou a ter esperanças para além do que via. A morte foi o primeiro mistério, e colocou o homem no caminho de outros mistérios. Levantou os seus pensamentos do visível ao invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino.

Thursday, October 26, 2017

A Cidade Antiga - Noções Sobre a Alma e a Morte




Em baixo deixamos a tradução do primeiro capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘Noções sobre a Alma e a Morte’.


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Até aos últimos tempos na história da Grécia e de Roma encontramos o povo a agarrar-se a pensamentos e usos que certamente datam de um passado muito distante e que nos permitem descobrir noções que o homem tinha de início acerca da sua própria natureza, da sua alma e do mistério da morte.

Viajando tanto atrás quanto possamos na história da raça indo-europeia, da qual os gregos e os italianos são ramos, não encontramos que esta raça alguma vez tenha pensado que depois desta curta vida tudo se encontrasse terminado para o homem. As gerações mais antigas, muito antes de aparecerem filósofos, acreditavam numa segunda existência depois da presente. Eles olhavam a morte não como uma dissolução do nosso ser, mas simplesmente como uma mudança de vida.

Mas em que local, e de que modo, existia esta segunda existência? Acreditavam eles que o espírito imortal, uma vez escapado de um corpo, iria animar outro? Não; a doutrina da metempsicose [transmigração das almas] nunca foi capaz de criar raízes nas mentes dos greco-italianos; nem era a crença mais antiga dos Arianos do Leste; já os hinos dos Vedas ensinam outra doutrina. Acreditavam eles que o espírito ascendia em direção ao céu, na direção das luzes? Não, de todo; os pensamentos de que as almas libertas entram numa casa celestial é relativamente recente no Ocidente; encontramo-la expressa pela primeira vez pelo poeta Focílides. A morada celestial nunca foi considerada como algo mais que a recompensa de uns poucos grandes homens e dos benfeitores da humanidade. De acordo com as mais antigas crenças dos italianos e dos gregos, a alma não ia para um mundo estranho para passar à sua segunda existência; mantinha-se perto dos homens e continuava a viver no subsolo.

Eles até acreditavam por muito tempo que, nesta segunda existência, a alma mantinha-se associada ao corpo; nascidos juntos, eles não eram separados pela morte e juntos eram enterrados na sepultura.

Antiga que seja esta crença, vestígios autênticos delas mantém-se entre nós. Estes vestígios são os ritos da sepultura, que em muito sobreviveram esta crença primitiva, mas que certamente começou com ela e que nos permite entendê-la.

Os ritos de sepultura mostram claramente que quando um corpo era enterrado, esses povos antigos acreditavam que enterravam algo que estava vivo. Virgílio, que sempre descreve cerimónias religiosas com tanto cuidado e precisão, conclui a descrição do funeral de Polidoro com estas palavras: “Fechamos a alma no sepulcro.” A mesma expressão é encontrada em Ovídio e em Plínio, o Jovem; tal não correspondia às ideias que estes escritores tinham da alma, mas que tinha sido perpetuada desde tempos imemoriais na linguagem, atestando uma antiguidade e uma crença comum.

Era costume, no final da cerimónia funerária, chamar a alma do falecido três vezes pelo mesmo nome que tinha mantido. Desejavam que ele pudesse viver ditosamente debaixo do solo. Três vezes diziam-lhe “Que passes bem”. Acrescentavam, “Que a terra te seja leve.” Portanto eles acreditavam firmemente que a pessoa continuaria a viver debaixo do solo e que preservaria um senso de contentamentos e de sofrimento. Escreviam no túmulo que o homem aí repousava – uma expressão que sobreviveu esta crença e que atravessou tantos séculos até ao nosso tempo. Ainda a empregamos, apesar de certamente hoje ninguém pensar que um ser imortal jaz na tumba. Mas naqueles dias antigos eles acreditavam em tal tão firmemente que um homem ali habitava que eles nunca deixavam de enterrar junto dele os objetos que eles acreditavam que ele precisava – roupas, utensílios e armas. Eles derramavam vinho sobre a tumba para saciar a sua sede e colocavam comida para satisfazer a sua fome. Sacrificavam cavalos e escravos com a ideia de que estes seres, enterrados com o morto, servi-lo-iam no túmulo, como o tinham feito durante a sua vida. Depois da tomada de Troia, os gregos retornam ao seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles, que está morto, também exige uma escrava, e entregam-lhe Polixena.

Um verso de Píndaro guardou-nos um curioso vestígio dos pensamentos daquelas antigas gerações. Frixos tinha sido compelido a deixar a Grécia e tinha fugido até Cólquida. Ele tinha falecido nesse país; mas, morto como estava, desejava voltar à Grécia. Ele então apareceu a Pélias e comandou-o a ir à Cólquida e trazer de volta a sua alma. Sem dúvida, esta alma sentia nostalgia do solo do seu país nativo e do túmulo da sua família; mas estando ligado aos seus restos corporais, não poderia deixar a Cólquida sem eles.

Desta crença primitiva veio a necessidade do enterro. Em ordem para que a alma possa estar confinada ao seu refúgio subterrâneo, o apropriado para a sua segunda vida, era necessário que o corpo ao qual se mantivesse ligada fosse coberto com terra. A alma que não tivesse túmulo não tinha morada. Era um espírito errante. Em vão aspirava ao repouso que naturalmente desejava depois da agitação e do trabalho desta vida; deve deambular para todo o sempre sob a forma larval, a de um fantasma, sem nunca parar, sem nunca receber as oferendas e a comida que necessitava. Infelizmente, em breve tornar-se-ia um espírito malévolo; atormentava os vivos; trazia doenças sobre eles, arrasava as suas colheitas e assustava-os nas suas sombrias aparições, para avisá-los para dar sepultura ao seu corpo e a si própria. Daqui vieram as crenças em fantasmas. Toda a antiguidade foi convencida de que sem enterro a alma se tornava miserável, e de que pelo enterro se tornaria eternamente feliz. Não era para demonstrar a sua angústia que eles praticavam a cerimónia funerária, era para o descanso e felicidade do morto.

Devemos salientar, no entanto, que o colocar o corpo sob o solo não era suficiente. Certos ritos tradicionais tinham igualmente de ser seguidos e certas fórmulas estabelecidas serem pronunciadas. Encontramos em Plauto uma descrição de um fantasma; era uma alma que era compelida a divagar porque o seu corpo tinha sido enterrado sem prestar atenção aos ritos próprios. Suetónio relata que quando o corpo de Calígula foi colocado sob a terra sem a própria observação das cerimónias funerárias, a sua alma não estava em paz e continuou a aparecer aos vivos até que foi decidido desenterrar o corpo e dar-lhe um enterro de acordo com as regras. Estes dois exemplos mostram claramente quais os efeitos atribuídos aos ritos e às fórmulas da cerimónia funerária. Já que sem eles as almas continuam a vaguear e a aparecer aos vivos, deve ser por causa deles que as almas se fixam e se fecham nas suas tombas; e como existiam fórmulas que tinham esta virtude, outras existiam que tinham a virtude contrária – aquela de evocar almas e fazê-las sair por algum tempo do sepulcro.

Podemos observar em escritores antigos como o homem estava atormentado pelo medo de que depois da sua morte os ritos não lhe fossem observados. Era uma fonte de inquietude constante. Os homens temiam a morte menos que a privação de um enterro, já que o descanso e a felicidade eternas estavam em jogo. Não nos devemos surpreender em demasia ao ver que os atenienses sentenciavam à morte os generais que, depois de uma vitória naval, negligenciavam enterrar os mortos. Estes generais, discípulos de filósofos, distinguiam claramente entre a alma e o corpo, e como não acreditavam que o destino de um estava ligado ao destino do outro, parecia-lhes de pouca consequência se um corpo se decompunha na terra ou na água. Portanto eles não enfrentavam a tempestade pela formalidade vã de recolher e de enterrar os seus mortos. Mas a multidão que, mesmo em Atenas, ainda se agarrava às antigas doutrinas, acusava estes generais de impiedade e condenava-os à morte. Pela sua vitória tinham salvado Atenas; mas pela sua impiedade tinham condenado milhares de almas. Os familiares dos mortos, pensando no grande sofrimento que estas almas tinham de aguentar, apareciam no tribunal vestidos de luto e pediam por vingança. Nas cidades antigas a lei condenava aqueles culpados de grandes crimes com uma punição terrível – a privação de enterro. Deste modo eles puniam a própria alma e infligiam-lhe uma punição quase eterna.

Devemos observar que existia entre os antigos outra opinião em relação ao lugar do morto. Eles imaginavam uma região, também subterrânea, mas infinitamente mais vasta que o túmulo, onde todas as almas, longe dos seus corpos, viviam juntas e onde prémios e punições eram distribuídos de acordo com as vidas que os homens tinham vivido neste mundo. Mas os ritos de enterro, tais como os descrevemos, discordavam manifestamente desta crença – uma prova certa de que, à época em que estes ritos foram estabelecidos, os homens ainda não acreditavam no Tártaro ou nos Campos Elísios. A mais primitiva opinião destas antigas gerações era que o homem vivia na tomba, que a alma não deixava o corpo e que se mantinha fixa a essa porção de terra onde os ossos se encontravam enterrados. Além disso, o homem não tinha contas a prestar da sua vida passada. Uma vez colocado na tomba, não tinha nem prémios nem castigos que esperar. Esta é seguramente uma opinião muito crua, mas é o início da noção de uma vida futura.

O ser que habitava debaixo do solo não era suficientemente livre das fragilidades humanas para não ter necessidade de comida; e, portanto, em certos dias do ano, uma refeição era levada a cada túmulo. Ovídio e Virgílio deram-nos uma descrição desta cerimónia. A observância continuou sem modificação até aos seus dias, apesar das crenças religiosas já terem passado por grandes alterações. De acordo com estes escritores, o sepulcro era rodeado com grandes ramos de ervas e flores, e bolos, frutas e flores eram colocadas sobre ele; leite, vinho e por vezes o sangue de uma vítima eram acrescentados.

Muito nos enganamos se pensássemos que estes repastos funerários não mais eram que uma espécie de celebração. A comida que a família trazia era realmente para o falecido – exclusivamente para ele. E isso concluímos pelo seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo; um buraco era cavado para que o alimento sólido pudesse chegar ao defunto; que, se eles tivessem sacrificado uma vítima, toda a sua carne era queimada, para que os vivos dela não participassem; que eles pronunciavam certas fórmulas consagradas para convidar os mortos a comer e a beber; que se a família inteira estivesse presente à refeição, ninguém tocava na comida; que, finalmente, quando se fossem embora, tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e uns poucos de bolos em vasos; e que era considerada grossa impiedade para qualquer pessoa viva tocar nesta pequena provisão destinada às necessidades do morto.

Estes usos eram atestados do modo mais formal: “Derramo sobre esta terra da tomba,” diz Ifigénia em Eurípides, “leite, mel e vinho, pois é com estes que regozijamos os mortos.” Entre os gregos encontrava-se em frente de todos os túmulos um local destinado à imolação da vítima e para o assar das suas carnes. A tomba romana também continha a sua culina, uma espécie de cozinha, de um tipo particular, e inteiramente para o uso dos mortos. Plutarco relata que, depois da batalha de Plateias, aos assassinados, tendo sido enterrados sob o campo de batalha, os Plateus ofereceriam um repasto funerário todos os anos. Consequentemente, em cada aniversário, eles iam em grande procissão, conduzidos pelos seus primeiros magistrados à colina sob a qual jaziam os mortos. Eles ofereciam aos idos leite, vinho, óleo e perfumes, e sacrificavam uma vítima. Quando as provisões eram colocadas sobre a tomba, os Plateus pronunciavam a fórmula pela qual chamavam os mortos a vir e participar deste repasto. Esta cerimónia era ainda realizada no tempo de Plutarco, que foi permitido testemunhar o sexto centenário dessa comemoração. Um pouco mais tarde, Luciano, ridicularizando estas opiniões e usos, mostra o quão profundamente enraizadas se encontravam na mente comum. “Os mortos”, diz ele, “são alimentadas pelas provisões que colocamos nos seus túmulos, e bebem o vinho que ali derramamos; pois que um morto a quem nada é oferecido é condenado a fome perpétua.”


Estas são antiquíssimas formas de crença, e parecem bastante sem fundamento e ridículas; e, no entanto, elas exerceram império sobre o homem durante um grande número de gerações. Elas governaram as mentes humanas; devemos também observar que elas até governaram sociedades e que a maior parte das instituições domésticas e sociais dos antigos foi derivada desta fonte.

Wednesday, October 25, 2017

A Cidade Antiga – Introdução




Temos a honra de iniciar a tradução do inglês para o português de alguns excertos da grande obra de Numa Denis Fustel de Coulanges, ‘A Cidade Antiga’, da qual deixámos em baixo a introdução.

Entendemos este livro como uma das melhores introduções disponíveis às antigas sociedades gregas e romanas, já que o seu autor é muito perentório no pressuposto de que o entendimento do pensamento do homem ariano ocidental que se estabeleceu no Sul da Europa e na bacia Mediterrânica, especialmente a sua relação com o divino – elemento central do seu ser – é fundamental para compreender estas sociedades, principalmente no seu período inicial, cujos vestígios são escassos.

Deste modo, as interpretações da moderna historiografia que encontramos na maior parte dos livros de história e ficção sobre esta era humana, que atribuem desmesurada importância a fatores económicos, sociais, militares e inclusive biológicos, parecem-nos ter uma importância essencialmente secundária, meras coletâneas de factos que ignoram por completo a dimensão divina e sobre-humana de civilizações que foram sobretudo construções espirituais, ideias-força que só por este meio puderam espalhar-se a vastíssimas latitudes.

Esperamos em breve traduzir os três primeiros capítulos.

Caso o leitor esteja interessado no livro completo, teremos todo o gosto em facultá-lo digitalmente - em português do Brasil, em inglês ou espanhol - bastando para tal deixar uma mensagem nos comentários abaixo.


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Aqui é-nos proposto mostrar por que princípios e por que regras a sociedade grega e romana era governada. Unimos neste mesmo estudo ambos os gregos e os romanos, porque estes dois povos, que eram dois ramos de uma única raça, e que falavam dois idiomas de uma única língua, também tinham as mesmas instituições e os mesmos princípios de governo, e passaram por uma série de revoluções similares.

Devemos tentar estabelecer a uma luz clara as diferenças radicais e essenciais que em todos os tempos distinguiram estes povos antigos das sociedades modernas. No nosso sistema de educação, vivemos desde a infância no meio dos gregos e dos romanos, e tornámo-nos acostumados continuamente a compará-los connosco, a julgar a sua história pela nossa própria, e a explicar as nossas revoluções pelas deles. O que recebemos deles leva-nos a acreditar que nos parecemos a eles. Temos alguma dificuldade em considera-los como nações estrangeiras; somos quase sempre nós próprios que observamos neles. Daqui irrompem muitos erros. Raramente falhamos em nos equivocar em relação a estas antigas nações quando as vemos através das opiniões e dos factos do no nosso próprio tempo.

Agora, erros deste tipo são perigosos. As ideias que os modernos têm da Grécia e de Roma têm frequentemente obstruído a sua análise. Tendo imperfeitamente observado as instituições da cidade antiga, homens têm sonhado em reaviva-las entre nós. Eles têm-se enganado sobre a liberdade dos antigos, e por conta disto a liberdade entre os modernos tem sido posta em perigo. Os últimos oitenta anos claramente demonstraram que uma das maiores dificuldades que impede a marcha da sociedade moderna é o hábito que tem de sempre manter a antiguidade grega e romana à vista.

Para entender a verdade dos gregos e dos romanos, é aconselhável estudá-los sem pensar em nós próprios, como se fossem inteiramente estranhos a nós; com o mesmo desinteresse, e com a mente tão livre, como se estivéssemos a estudar a antiga Índia ou Arábia.

Assim observadas, Grécia e Roma aparecem-nos num caráter absolutamente inimitável; nada nos tempos modernos se assemelha a elas; nada no futuro pode assemelhar-se a elas. Devemos tentar demostrar por que regras estas sociedades eram reguladas, e será livremente admitido que as mesmas regras nunca poderão governar a humanidade de novo.

Como tal veio a acontecer? Porque é que as condições da governação humana já não são as mesmas das dos tempos antigos. As grandes mudanças que aparecem de tempos a tempos na constituição da sociedade não podem ser efetuadas apenas por acaso ou à força.

A causa que as produz deve ser poderosa, e deve ser encontrada no próprio homem. Se as leis da associação humana já não são as mesmas das da antiguidade, é porque houve uma mudança no homem. Existe, de facto, uma parte do nosso ser que é modificada de idade para idade; esta é a nossa inteligência. Encontra-se sempre em movimento, quase sempre a progredir; e à conta disto, as nossas instituições e as nossas leis estão sujeitas a mudança. O homem não possui hoje o modo de pensar que possuía há vinte e cinco séculos atrás; e é por isto que ele não é mais governado como era então governado.

A história da Grécia e de Roma é um testemunho e um exemplo da relação íntima que sempre existiu entre as ideias do homem e o seu estado social. Examine-se as instituições dos antigos sem pensar nas suas noções religiosas, e encontrá-las-ão obscuras, bizarras e inexplicáveis. Por que existiam patrícios e plebeus, patrões e clientes, eupátridas e escravos; e como apareceram as nativas e indeléveis diferenças que encontramos entre estas classes? Qual era o significado dessas instituições lacedemónias que nos parecem tão contrárias à natureza? Como vamos explicar aqueles caprichos injustos da antiga lei privada; em Corinto e em Tebas, a venda de terra era proibida; em Atenas e em Roma, uma desigualdade na sucessão entre irmão e irmã? O que é que os juristas entendiam por agitação, e por gens? Porquê aquelas revoluções nas leis, aquelas revoluções políticas? O que foi aquele patriotismo singular que por vezes eclipsava todo o sentimento natural? O que eles entendiam por aquela liberdade da qual sempre falavam? Como aconteceu que instituições tão diferentes de tudo o que hoje concebemos tornaram-se estabelecidas e reinaram por tanto tempo? Qual é o princípio superior que deu autoridade sobre as mentes dos homens?

Mas ao lado destas instituições e leis encontram-se as ideias religiosas desses tempos, e os factos então tornam-se claros, e a sua explicação já não mais admite dúvidas. Se, ao ir-se atrás às primeiras eras desta raça – isto é dizer, ao tempo em que as suas instituições foram fundadas – observamos a ideia que se tinha da existência humana, da vida, da morte, da segunda vida, do princípio divino, percebemos uma relação próxima entre estas opiniões das antigas regras de direito privado, entre os ritos que brotam destas opiniões e das suas instituições políticas.

A comparação de crenças e de leis mostra-nos que a religião primitiva constituiu a família grega e romana, estabeleceu o casamento e a autoridade paternal, fixou a ordem de relações, e consagrou o direito de propriedade, e o direito de herança. Esta mesma religião, depois de ter alargado e estendido a família, formou uma ainda maior associação, a cidade, e predominou nela como tinha predominado na família. Dela vieram todas as instituições, assim como todo o direito privado, dos antigos. Foi disto que a cidade recebeu todos os seus princípios, as suas regras, os seus usos, e as suas magistraturas. Mas, no curso do tempo, esta religião antiga modificou-se e apagou-se, e o direito privado e as instituições políticas modificaram-se com ela. Então vieram uma série de revoluções, e as mudanças socias regularmente seguem o desenvolvimento do conhecimento.

É da primeira importância, portanto, estudar as ideias religiosas destes povos, e as mais antigas são as mais importantes para conhecer. Pois que as instituições e as crenças que encontramos nos períodos do florescimento da Grécia e de Roma são apenas o desenvolvimento daquelas de uma era anterior; devemos procurar as raízes delas no muito distante passado. As populações gregas e itálicas são muitas centenas de anos mais antigas que Rómulo e Homero. Foi numa época mais antiga, numa antiguidade sem data, que as suas crenças foram formadas, e que as suas instituições foram estabelecidas ou preparadas.

Mas que esperança existe de chegar ao conhecimento deste passado distante? Quem pode contar-nos o que o homem pensava dez ou quinze séculos antes da nossa era? Podemos recuperar o que é tão intangível e fugidio – crenças e opiniões? Sabemos o que os Arianos do Leste pensavam trinta e cinco séculos atrás: aprendemos isto dos hinos dos Vedas, os quais são certamente muito antigos, e das Leis de Manu, nas quais podemos distinguir as passagens que são de uma idade extremamente precoce. Mas onde se encontram os hinos dos antigos helenos? Eles, como os italianos, tinham hinos ancestrais e velhos livros sagrados; mas nada destes nos chegou. Que tradição se pode manter para nós dessas gerações que não nos deixaram uma única linha?

Felizmente, o passado nunca morre completamente para o homem. Muitos podem esquecê-lo, mas o homem sempre o preserva dentro dele. Escolha-se uma época, e ele é o produto, o epítome, de todas as épocas anteriores. Deixe-o olhar para a sua própria alma, e ele pode encontrar e distinguir estas épocas diferentes pelo que cada uma delas deixou dentro dele.

Observemos os gregos do período de Péricles, e os romanos do tempo de Cícero; eles podem levar consigo as marcas autênticas e os vestígios inequívocos das mais remotas idades. O contemporâneo de Cícero (falo especialmente do homem do povo) tem uma imaginação cheia de lendas; estas lendas apareceram-lhe de um período muito antigo e prestam testemunho da maneira de pensar desse tempo. O contemporâneo de Cícero fala uma língua cujas raízes são muito antigas; esta língua, ao expressar os pensamentos das idades antigas, foi modelada neles, e manteve a impressão, e transmitiu-a de século a século. O sentido primário de uma raiz irá por vezes revelar uma opinião antiga ou um uso antigo; ideias transformaram-se, e as memórias delas desapareceram; mas as palavras ficaram, testemunhas imutáveis das crenças que desapareceram.

O contemporâneo de Cícero praticou ritos nos sacrifícios, nos funerais e na cerimónia de casamento; estes ritos eram mais antigos que o seu tempo, o que prova que não correspondiam à sua crença religiosa. Mas se examinarmos os ritos que ele observava, ou as fórmulas que recitava, encontramos as marcas do que os homens acreditavam quinze ou vinte séculos antes.




Tuesday, October 24, 2017

Tradução: Faz a Tua Escolha



Neste excerto da conversa que Thomas Yellowtail, líder espiritual dos índios Crow do Montana, manteve com o seu filho adotivo Michael Fitzgerald (que mais tarde editou esta e outras conversas), são focados pontos pertinentes à Filosofia Perene, desde a falta de sentido do mundo moderno, do estado de antagonismo em que sobrevivem as atuais sociedades humanas, à necessidade da busca de sentido e da importância dos rituais e da oração como veículos para manter o contacto com o Divino, até à unidade suprema de todas as formas tradicionais de espiritualidade.

O Mestre índio exorta todos a abrir os olhos, a acordar do presente estado de sonambulismo e seguir o caminho sagrado, que pode inclusive revestir várias formas, já que os tempos atuais, tempos finais de decomposição – como previsto nas profecias ligadas às mais diversas religiões – apresentam em maior contraste que nunca a distância que o profano se encontra do Sagrado.

Uma nota importante para a carta dirigida líder tradicional índio Thomas Banyacya ao então Presidente Nixon, onde revela as várias profecias Hopis que prefiguram o fim do mundo, que entretanto se realizaram.


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Nos tempos antigos os índios tinham a sua liberdade e seguiam as suas vias tradicionais. Então os brancos obrigaram-nos a instalarmo-nos em reservas. O povo teve então de viver junto e não eram livres para viver da nossa maneira natural. O povo também perdeu de vista o verdadeiro significado das suas tradições. Não demorou até que os poderes e as coisas sagradas que foram dadas aos índios dele foram. Isso foi o que foi dito pelas profecias antes do tempo da instalação nas reservas. Muitos homens-medicina que tinham boa medicina, bons poderes, perderam-nos. Tudo isto aconteceu gradualmente durante os últimos cem anos, até hoje existiram menos e menos homens com poderes e conhecimento espiritual menores. Aqueles que ainda têm dádivas espirituais ou medicina – e sobram uns poucos – não têm um poder tão grande como nos tempos quando os índios ainda eram livres para vaguear o país e viverem do modo tradicional. Com a passagem do tempo, os índios tornaram-se mais “civilizados” e instruídos para viverem do modo do homem branco, e então todos os poderes espirituais foram diminuídos. As pessoas perderam de vista a religião e a prece, pelo que parece que as velhas profecias estavam corretas. Nos tempos em que éramos livres, quando o nosso povo sabia mais da Natureza e das coisas importantes, quase todo o homem tinha poderes medicinais e a única vida que o povo conhecia era centrada no sagrado. Os verdadeiros homens-medicina podiam operar milagres nesses dias. É na verdade o mundo moderno e a “civilização” que estão a fazer-nos perder todas estas coisas. Nos tempos antigos, o povo tinha os seus valores centrados nas preocupações espirituais. Os Poderes espirituais, os dadores de medicina, estão tirar-nos essas coisas sagradas porque já desconhecemos como guarda-las corretamente.

Os índios modernos tomam pouco cuidado das coisas espirituais e das vias tradicionais, portanto existem muito poucas pessoas com a verdadeira medicina ou entendimento. A civilização moderna não tem entendimento sobre as matérias sagradas. Tudo é invertido. Isto torna ainda mais importante que os jovens sigam o que hoje resta. Apesar de muitas das vias sagradas já não se encontrarem entre nós, o que nos resta é suficiente para todos, e se é seguido poderá levar tão longe até quanto uma pessoa possa ir. Os quatro ritos que nos restam formam o centro da religião: a tenda do suor para purificação; a visão-missão para o retiro espiritual; a prece diária com oferenda do tabaco para fumar; e própria a Dança do Sol.Com tudo isto, qualquer pessoa sincera pode realizar o seu centro espiritual interior.

É importante que as novas gerações entendam a diferença entre as vias tradicionais e o mundo moderno em que hoje vivemos. Já antes falei acerca do suporte sagrado que sempre esteve presente para os índios tradicionais. Com este suporte em todo o lado, do momento em que se acorda até à primeira oração do dia, até ao momento de deitar, podia-se pelo menos ver o que era requerido em ordem para levar uma vida própria. Até o que se levava vestido no dia-a-dia tinha significados sagrados, como os desenhos de contas na roupa, e onde quer que se fosse ou o que se fizesse, seja na caça, no fabrico de armas ou qualquer coisa que se fizesse, participava-se na vida sagrada e sabia-se quem se era e carregava-se um senso do sagrado no próprio. Todas as formas tinham um significado, inclusive o tipi [tenda] e o círculo sagrado da respetiva tribo. É claro que a vida era dura e difícil e nem todos os índios seguiam as regras. Mas o suporte da vida tradicional e a presença da Natureza em todo o lado trazia verdadeiras dádivas para todas as pessoas.2

O mundo que habitamos é bastante diferente. Os jovens de hoje não estão capacitados a ler os sinais da natureza e nem sequer tem conhecimento dos nomes dos diferentes animais. Quando um pássaro canta, ou quando vemos as impressões deixadas por um animal, a maior parte das pessoas não saberá o nome do animal que se encontra perto… O que é pior, muitos jovens nem sequer olham, ou às vezes nem querem saber, onde estão a caminhar e não observam as belas coisas que Acbadadea, O Criador de Todas as Coisas Superiores, criou. Quase me faz chorar ver como alguns jovens desaproveitam prendas preciosas. Eles deixam comida apodrecer ou gastam água e eletricidade. As pessoas não compreendem o valor das oferendas que lhes foram dadas; eles pensam que as coisas sempre ali estarão quando delas precisarem. Estas mesmas pessoas terão uma grande surpresa um dia, porque mais cedo ou mais tarde os seus erros serão demonstrados.

Repare-se na maneira em que as pessoas viajam e trabalham nos dias de hoje. Sempre se escuta as pessoas a dizer: “Vivemos na idade da velocidade.” Tudo tem sempre que ser rápido, de acordo com a maneira que as pessoas querem fazer as coisas hoje em dia. Se viajarmos uma grande distância, o destino ou o local para onde vamos não se vai mexer; ainda se mantém imóvel, portanto não há necessidade de estar em tal pressa. Em adição de não se sentir seguro, existem outros perigos neste modo de vida. É um problema com o seu inteiro modo de vida… As pessoas deviam-se perguntar o que é que elas estão a fazer e porque é que o estão a fazer. Tantas pessoas hoje nem sequer pensam; elas apenas fazem algo.

Muitas das coisas modernas que hoje possuímos tornaram tudo pior. Não tínhamos televisão até há poucos anos, e desde que a televisão começou a ser usada, as pessoas tornaram-se loucas por ela. É algo pela qual eu nada quero saber para mim. Torna as pessoas preguiçosas e dá-lhes estranhas ideias sobre a vida. Por exemplo, parece que a modéstia já não existe hoje em dia. Quando as pessoas vêm algo na televisão, elas pensam que é correto. Elas não pensam por si próprias; deixam que a televisão pense por elas. A televisão é algo que não é bom para o mundo. É tão má que a maior parte das pessoas não compreende como algo como a televisão pode arruinar todos os nossos verdadeiros valores.

Parece que tudo no mundo de hoje é feito para que todos possam continuar tão rápido que nunca têm de considerar porque é que lhes foi dado o milagre da vida. É mau de mais que as pessoas desperdicem a sua vida e a sua inteligência ao tornar-se parte desta sociedade. Se parassem por um instante e considerassem que todos eles morrerão e encontrarão o seu Senhor, pergunto o que então fariam?

Uma das razões pela qual a nossa sociedade é tão rápida é a máquina. A maquinaria mudou a maneira pela qual vivemos, e todos os nossos valores em relação ao mundo. Nos dias antigos, requeria-se trabalho manual para quase tudo. Todos tinham uma responsabilidade e todos se ajudavam mutuamente. Não havia dinheiro para manter e para possuir, portanto não se podiam adquirir mais coisas que o vizinho. Os antigos índios viajavam pelas regiões rurais e não podiam carregar consigo mais do que precisavam. As qualidades que o homem possuía em si eram as importantes, não as suas possessões exteriores.

Nesses dias, todos sabiam o que esperar de si e a Via Índia ensinou-o como a conseguir. Nem todos os antigos índios viviam de acordo com os deuses tribais, apesar de o centro sagrado estar presente. Hoje, algumas pessoas ainda rezam, como o devem, apesar do centro sagrado se encontrar praticamente oculto. Mas os objetivos da sociedade nesses dias e hoje são diferentes e isto é algo que todos devem entender. Falámos sobre o modo como praticamos a nossa Religião da Dança do Sol e como tudo tem um significado, um propósito. E tal era com tudo com que o índio dos dias antigos procedia, e tal assim devia ser hoje. Começar-se-ia assim a entender os mistérios deste mundo no qual fomos colocados para encontrar a morte, para entrar no mundo para além do qual não podemos ver.

Muitas das cerimónias da Dança do Sol são difíceis de aguentar; é uma provação para as terminar. Isto é bom e ajuda-nos a relembrar que existe uma maior responsabilidade na vida. A vida é um presente que se está libre de usar como se vê mais útil; mas também se deve entender que as ações de cada um, as suas escolhas, estão a ser observadas por poderes que não se enxergam. Se tudo é fácil para nós e se as nossas preocupações apenas são consideradas como nossas possessões, então perdemos de vista o que é importante. Em tempos difíceis, estamos sempre prontos para enfrentar a morte; talvez aconteça hoje. Então tal deve acontecer todos os dias em tudo o que fazemos. Devemo-nos preparar para encontrar Acbadadea, O Criador de Todas as Coisas Superiores. As pessoas pensam sempre que há tempo suficiente para rezar mais tarde. As pessoas que querem acumular mais riqueza estão sempre a pensar, “vou esperar até mais tarde.” O mundo hoje, e o modo como as pessoas fazem as coisas, encoraja as pessoas a serem preguiçosas nos seus deveres espirituais.

O trabalho manual já não é mais necessário; tudo é feito pela maquinaria. Um homem pode agora fazer um inteiro campo de feno por si próprio. O feno é cortado e embalado por máquinas; eles até possuem agora maquinaria que o apanha e o traz. Sem em nada tocar, a máquina coloca lá as embalagens e já se encontram na pilha. Muitos homens costumavam ser necessários para trabalhar muitos dias, mas agora o trabalho é executado praticamente num dia por estas máquinas. O cultivo de beterraba costumava ocupar vários homens; muitos trabalhadores são hoje eliminados pela maquinaria moderna. Homens que procuram trabalho menial de quinta quase não conseguem encontrar qualquer trabalho hoje. Ninguém deles precisa porque a maquinaria que eles possuem toma conta disso tudo.

Até na indústria do gado é do mesmo modo. Costumavam ser alguns vaqueiros que tomavam conta do trabalho do gado num rancho. Muitos deles não conseguem hoje encontrar mais trabalho. Agora existem máquinas que tomam o seu lugar. Portanto parece como se tivéssemos chegado ao tempo em que muitos bons homens não conseguem encontrar trabalho de todo. Tal não é como as coisas deveriam ser.

Nos dias de hoje, os homens querem acumular dinheiro e então usem o dinheiro para comprarem máquinas para que todo o trabalho possa ser feito mais rapidamente; poderão então acumular ainda mais dinheiro. Isso é tudo em que o homem rico pensa. Então o que fazer em relação ao homem que quer trabalhar para fazer a sua vida? Eles não têm trabalho e não têm nada para fazer, de todo. As pessoas começam então a trabalhar umas contra as outras, como se as pessoas sem dinheiro e máquinas começassem a odiar as outras. Muitas das guerras no mundo de hoje resultam deste problema…

Agora o que acontece quando um bom rapaz índio sai e encontra um emprego com bom e duro trabalho? Todos dele deveriam estar orgulhosos, mas não estão. A inveja é criada pelo facto de que as pessoas estão a competir umas contra as outras. Nas nossas reservas de hoje, as pessoas estão invejosas das outras. Ninguém coopera. As pessoas culpam-se umas às outras por todos os problemas, e criticam os que trabalham e ajudam os outros… Muitos podem perceber que o que vemos no mundo moderno é mau, que a maior parte dos valores que as pessoas hoje têm estão invertidos. Seguir o caminho do mundo-máquina não irá preparar para o encontro com o Criador seja nesta vida ou depois da morte.

É verdade que também não podemos apenas voltar aos velhos dias. Que bem faz desejar que se seja um índio antigo? Porquê criticar o teu irmão e tentar encontrar falhas em todos os outros? Irá tal tornar-te uma pessoa melhor porque decidiste que outro tem as culpas? Alguns índios encararão os seus problemas com uma garrafa. Isto é muito duro – drogas, também. Tal corrompe todos os nossos jovens. Como tal pode resolver os problemas? Tal apenas torna tudo pior, porque eles não tentam fazer nada em relação aos próprios. Estas mesmas pessoas esperam que lhes sejam dadas coisas pela tribo, o governo. Pensam que é a responsabilidade dos outros tomar conta deles… Não querem de todo saber da juventude. Tudo o que lhes interessa é o seu próprio bem-estar. Estes homens irão com certeza receber o seu justo prémio quando encontrarem o seu Criador.

Já falámos acerca da Religião da Dança do Sol e o que ela significa para nós. Pode-se ver que tudo é hoje muito diferente e que muitas das coisas sagradas e das vias sagradas que estavam com o nosso povo índio nos dias antigos se encontram hoje perdidas. Isto estava previsto acontecer, pelo que nós não as merecíamos manter porque já não as respeitávamos. Mas não é bom culpar qualquer pessoa ou país pela nossa situação presente. Todos estes acontecimentos foram previstos em todas as profecias sagradas de todas as grandes religiões.

Ninguém é de culpar pelo nosso presente estado. Todos os que falham viver de acordo com os seus deveres espirituais causam maiores problemas para todos. Portanto, eu digo às pessoas, “Não critiquem o vosso vizinho; isso não ajudará ninguém. Não é bom colocar índio a lutar contra índio; tal apenas torna as coisas piores. Trabalha em ti primeiro; prepare-te para encontrar o teu Criador.”

Todos podem ver como as coisas mudaram desde os tempos antigos, quando os valores sagrados estavam no centro da nossa vida, até aos dias presentes, quando a nossa sociedade parece não ter o sentido do sagrado. Tantos jovens preocupam-se no que acontecerá a este mundo que habitamos, e no que deveriam fazer se querem seguir o caminho espiritual. Eles podem pensar, “Existem outras pessoas que querem seguir a via sagrada? Tenho a oportunidade de seguir uma vida de acordo com as vias tradicionais?”

Se as pessoas continuam no curso presente, sem oração e sem respeito pelas coisas sagradas, então as coisas tornar-se-ão piores para todos. Muitas profecias das grandes religiões de todo o mundo falam sobre o fim do tempo. O Corvo tem uma profecia sobre este tempo, também.

A profecia do Corvo relaciona-se com um importante rito do Corvo: a Dança do Castor e a Dança do Tabaco. É a mesma coisa, mas é conhecida por ambos os nomes. É uma dança participada tanto por homens como por mulheres que são membros da Sociedade da Dança do Tabaco. A sociedade costumava realizar as suas cerimónias todos os anos. Não sabemos de outra tribo índia que tenha esta mesma dança. Podia chamar-se a dança do Corvo índia. A Sociedade do Dança do Tabaco tem uma dança de adoção para adotar novos membros para a sociedade, para que as cerimónias possam ser mantidas. Recentemente, muito poucos membros têm sido adotados e as cerimónias já não são mantidas tão frequentemente como o foram nos tempos antigos…

A planta que eles usam na cerimónia não é realmente um tabaco. O nome do Corvo usado é Itchichea. É muito sagrado. Nos dias antigos, todos os anos, eles plantavam o tabaco numa cerimónia especial na Primavera, usualmente em Maio. Eles colhiam-no no Outono e mantinham a planta e as sementes e iniciavam o processo de novo na Primavera seguinte. Até quando eu era jovem, eles completavam a plantação e a colheita todos os anos para que houvesse sempre tabaco para as cerimónias e orações especiais. Hoje a Sociedade do Tabaco raramente planta e colhe o tabaco. Praticamente todos os membros já não existem e muito poucas adoções acontecem, pelo que menos e menos pessoas conhecem a correta maneira de realizar a cerimónia e de cuidar do tabaco. Acredito que a última vez que eles tiveram uma cerimónia especial de plantação foi há vários anos no lugar da minha irmã, mesmo abaixo de onde o meu irmão vive hoje. Eles erguiam as suas tendas lado a lado e realizavam as suas cerimónias durante um ou dois dias. Então eles saíam e plantavam as suas plantas de tabaco. A planta cresce todo o Verão e eles colhem-na no Outono com outra cerimónia. Eu não me encontrava presente na altura da cerimónia da plantação, mas foi-me dito que produção de sementes e a colheita foram muito pobres. A planta não é uma planta muito forte e então parece que poderá desaparecer em breve. Não deverá restar mais da planta já que esta particular planta é apenas usada pelo Corvo.3

A profecia do Corvo índio conta que quando esta planta desaparece, quando não é plantada e colhida pelo que não existirá reprodução da semente, então finalmente, será o fim do tempo e o mundo acabará. Parece que esse tempo se encontra próximo. Eu não me encontrava lá nesse Outono quando eles foram para o juntar, mas eles contaram-me que não conseguiram grande produção de semente nesse ano. O que eles possuem irá eventualmente tornar-se velho e não produzirá mais, não se irá renovar, e tal será provavelmente o fim.

Existem profecias de outras religiões que também falam sobre o fim do tempo.4 As profecias Hopi são muito interessantes de escutar. Conheci Thomas Banyacya algumas vezes, e ele é muito bom a explicar as profecias Hopi.5

É importante que os jovens entendam e sigam as suas religiões tradicionais. Devemos ajudar a propriamente educar os nossos jovens acerca das nossas tradições. Eu sempre tento encorajar os jovens a esquecer as outras coisas que eles têm na mente: “Larga essas coisas e tenta aprender algo sobre as tuas vias índias tradicionais.”6 Eles deveriam juntar-se a esses encontros que os índios estão a realizar e tentar o uso das diferentes cerimónias e a prece de acordo com a herança índia.

Algumas pessoas podem pensar, “Rezar não traz qualquer bem; nada irá mudar.” Mas existem muitas razões para rezar e essas pessoas estão erradas. Só Deus sabe quando o fim deste mundo acontecerá, e quando e como acontecerá dependerá certamente das orações sinceras que Lhe são oferecidas da maneira correta. Cada homem desaparecerá desta terra no seu tempo próprio. Algumas das profecias apenas falam apenas sobre o fim do tempo; outras falam sobre a fragmentação do mundo moderno, como o conhecemos, e um regresso às vias tradicionais dos nossos antepassados. Não posso dizer o que irá acontecer e se encontraremos as vias espirituais dos nossos antepassados neste mundo ou noutro; mas sei que em ambos os casos teremos ainda de fazer uma escolha, cada um de nós tem de escolher neste momento presente que caminho seguir. As orações de cada pessoa podem ajudar toda a gente. A pessoa que reza e relembra Deus receberá o maior benefício para ele e para os outros.

Algumas pessoas não acreditam que realmente possuem a opção em seguir a religião e de se virar para a oração. Esta é uma ideia estranha. Todos têm uma mente livre e a qualquer momento todos os indivíduos podem escolher uma coisa em vez da outra. Pense sobre isto. Até uma criança não tem que obedecer aos seus pais; ele pode escolher o castigo que irá receber se ele em vez desobedece. Então também pode cada pessoa escolher juntar-se a uma religião e a um caminho de oração. Existem razões diferentes porque o deve fazer: É claro que pode temer a punição como uma criança que desobedece; ou pode seguir um caminho sagrado porque conhece e ama as vias sagradas. Seja qual for a sua razão, deve escolher uma direção ou outra… Não existe algo mais que eu possa dizer exceto erguer a minha voz em oração: Durante os próximos anos, necessito da Sua ajuda para me dar o conhecimento e a força para levar a nossa Religião da Dança do Sol ao nosso povo. Tenho tentado falar alto, para que os jovens saibam o que deles é expectável. Ajude-me a levar esta mensagem aos seus corações. Estou a trabalhar com o meu neto para que esta mensagem possa ser escrita para muitos a verem. Ajude-nos. O nosso povo Apsaroke necessita ver que a sua própria religião é boa e que pode ajudá-los se apenas eles abrirem os seus olhos e corações. Todos precisam de fazer uma escolha – cada um deve escolher uma religião. Ajude-os a entender que eles devem fazer uma escolha antes que seja tarde de mais.

Você contou ao nosso povo através das nossas profecias de Apsaroke que o mundo irá encontrar um fim. As outras religiões que foram dadas aos homens brancos também falam sobre o fim do tempo. De acordo com o que nos foi dito, esse tempo deve cá chegar em breve. Ajude as pessoas ver que elas devem escolher uma religião da sua escolha. Então eles devem rezar todos os dias e viver retamente.

Houve um tempo quando todas as denominações se encontravam longe umas das outras pelo que houve uma pequena rivalidade entre elas. Tal não deve ser o caminho. Elas deviam-se unir e rezar juntas. Todas as pessoas da reserva deveriam unir-se independentemente das suas crenças. Foram dadas diferentes vias a diferentes povos por todo o mundo. Como sabemos, esta terra é redonda como a roda de um vagão. Numa roda de vagão, todos os raios estabelecem-se no centro. O círculo da roda é redondo e todos os raios vêm do centro e o centro és Tu, Acbadadea, o Criador de Todas as Coisas Superiores. Cada raio pode ser considerado como uma religião diferente do mundo, que foi dada por Ti aos diferentes povos e às diferentes raças. Todos os povos do mundo encontram-se no aro da roda e devem seguir um dos raios em direção ao centro. Os diferentes caminhos foram dados mas todos eles levam ao mesmo sítio. Todos oramos ao mesmo Deus, a Ti. Existem diferentes lugares na roda pelo que cada pode parecer estranho a alguém que siga um caminho diferente. É fácil para as pessoas dizerem que o seu caminho é o melhor se tudo sabem sobre a sua fé e tal é bom para eles. Mas eles devem evitar dizer coisas más sobre outras vias que desconhecem. Não deve haver ressentimentos sobre o outro se ele segue um caminho que leva a Ti. Ajuda-nos a encontrar esta sabedoria.

Uma pessoa deve aprender sobre um caminho para Ti antes de se lhe juntar. Não é bom entrar numa fé para de seguida deixá-la. Eu digo isto aos jovens: “Deves escolher uma religião, mas antes de entrar numa, deves saber qual é a melhor para ti. Toma tempo para encontrar tudo o que possas sobre o método de oração e sobre o que essa religião conta acerca do Criador de Todas as Coisas Superiores. Deves entender as regras e saber o que é esperado de ti. Encontra um caminho que te fornece a maneira como tens de viver uma boa vida todos os dias!”… Acbadadea, Medicina dos Pais, ajuda os jovens a conhecer estas coisas.

Algumas pessoas não querem saber o que a religião requer deles. Assim que não gostem de algo – porque não deva ser fácil ou deva requerer algum sacrifício – eles deixam-na num instante sem perguntarem-se o que Tu esperas deles. Eles não podem retirar nada de uma religião se deixam sempre que algo difícil lhes seja pedido. Se eles alguma vez encontram uma via que é tão fácil que possam tudo fazer sem qualquer problema, então eles devem saber que encontraram algo mau. Essa é a altura em que devem deixar essa falsa religião. Criador de Todas as Coisas Superiores, dá aos povos a sabedoria para ver estas coisas e a força para resistir àqueles que não Te seguirem.

Tentei expor a minha mente e o meu coração do melhor modo que sei. Obrigado por me ajudares a guiar as minhas palavras. Agora completei a minha responsabilidade de falar sobre as vias sagradas do nosso povo Apsaroke, e sinto-me bem sobre isto. Obrigado pela ajuda que Tu já me deste para que eu tenha podido levar a cabo os Teus desejos até agora. Ajuda-me a continuar a trabalhar e a orar para que esta posição de Chefe da Dança do Sol possa ser comprida e o meu povo seja permitido viver… Aho, Aho!




1 Estes ritos sagrados estão descritos em detalhes no livro Yellowtail: Crow Medicine Man and Sun Dance Chief, gravado e editado por Michael Oren Fitzgerald (Oklahoma: University of Olkahoma Press, 1991).

2 Nos vastos domínios da Natureza nos quais os índios tradicionais vagueavam, ele encontrava-se num certo sentido sem limites nesta liberdade; noutro sentido ele sempre esteve confinado ao estrito papel colocado sobre ele pelo seu universo religioso. Em todo o momento e em todo o lugar, tudo reforçava as obrigações sagradas da sua herança.

3 Em Maio de 1984, Yellowtail e eu [Michael Oren Fitzgerald.— Ed.] visitamos dois dos mais velhos membros da Sociedade do Tabaco para inquirir sobre cerimónias recentes. Ambos informantes confiram a lembrança de Yellowtail de que a última plantação teve lugar entre 1976 e 1978. Uma geada fortíssima matou todas a produção de sementes de tabaco nesse ano, e a única semente conhecida data de uma prévia plantação. Dois diferentes membros da sociedade guardam esta semente, mas não é conhecido se a semente irá germinar, e não existem plantações marcadas por esta altura.

4 As profecias que Yellowtail discute não estão sozinhas entre os índios das planícies. Por exemplo, os Sioux têm o simbolismo do búfalo e das suas quatro patas. Cada ano o búfalo perde um pêlo de uma das pernas. O fim do ciclo chega quando o búfalo não mais tem pêlos nas suas pernas. (Os hindus têm uma profecia praticamente semelhante.) Ainda, os índios pressentem que a civilização industrial, já que fragmenta o balanço da Natureza, não poderá continuar.

5 Esta carta, assinada por Thomas Banyacya em nome de todos os Líderes da Vila Tradicional Hopi, foi enviada ao Presidente Richard Nixon em 1970:
 Nós, verdadeiros e tradicionais líderes religiosos, reconhecidos como tais pelo Povo Hopi, mantemos total autoridade sobre toda a terra e vida contida no Hemisfério Ocidental. A nossa intendência é-nos adjudicada pelo nosso entendimento em relação ao significado da Natureza, Paz, e Harmonia como falado ao nosso Povo por Ele, conhecido de nós como Massau’u, O Grande Espírito, que há muito tempo atrás forneceu-nos as tábuas de pedra sagradas que preservamos até ao dia de hoje. Por muitas gerações anteriores à vinda do homem branco… o Povo Hopi viveu no lugar sagrado conhecido por si como o Sudoeste e conhecido para nós por ser o centro espiritual do nosso continente. Todos nós da Nação Hopi que seguiram o caminho do Grande Espírito intransigentemente têm uma mensagem à qual estamos comprometidos, através da nossa profecia, a qual agora lhe transmitimos.
O homem branco, através da sua insensibilidade aos modos da Natureza, tem profanado a face da Mãe Natureza. A capacidade da tecnologia avançada do homem branco ocorreu como um resultado da sua falta de consideração pelo caminho espiritual e pela via de todos os seres vivos. O desejo do homem branco por possessões materiais e por poder cegou-o à dor por ele causada à Mãe Natureza na sua busca pelo que chama recursos naturais. E o trilho do Grande Espírito tornou-se mais difícil de ver por quase todos os homens, até por muitos índios que escolheram em vez seguir o caminho do homem branco…
Hoje as terras sagradas onde os Hopi vivem estão a ser profanadas por homens que buscam carvão e água do nosso solo para poderem criar mais poder para as cidades do homem branco. Isto não pode ser permitido continuar pois se tal acontece, a Mãe Natureza irá reagir de tal modo que quase todos os homens sofrerão o fim da vida tal como o conhecemos. O Grande Espírito disse para não se permitir que isto continue até porque foi profetizado pelos nossos antepassados. O Grande Espírito disse para não tirar desta Terra – para não destruir as coisas vivas. O Grande Espírito, Massau’u, disse que o homem era suposto viver em Harmonia e manter uma terra boa e limpa para todas as crianças que virão. Todo o Povo Hopi e outros Irmãos índios mantém-se neste princípio religioso e o Movimento de Unidade Espiritual Tradicional hoje esforça-se para acordar o espírito da natureza no povo índio por toda esta terra. O seu governo quase destruiu a nossa religião base, a qual de facto é um modo de vida para todas as populações nesta terra do Grande Espírito. Sentimos que para sobreviver o vindouro Dia da Purificação, devemos voltar aos princípios religiosos básicos e encontrarmo-nos juntos nesta base como líderes do nosso povo.
Hoje praticamente todas as profecias tornaram-se realidade. Grandes estradas como passagem de rios através da paisagem; o homem fala para o homem através de teias de aranha feitas por linhas telefónicas; o homem viaja através de estradas no céu nos seus aviões; duas grandes guerras foram lançadas por aqueles apoiam a suástica ou o sol nascente; o homem está a interferir com a Lua e com as estrelas. A maior parte dos homens desviaram-se do trilho que nos foi demonstrado pelo Grande Espírito. Só Massau’u sozinho é grande o suficiente para mostrar o caminho de volta para Ele.
É dito pelo Grande Espírito que se uma cabaça de cinzas é depositada na Terra, muitos homens irão perecer e que o fim deste modo de vida se encontra próximo. Nós interpretamos isto com o largar de bombas atómicas em Hiroxima e Nagasaki. Nós não queremos ver isto a acontecer em nenhum lugar ou em nenhuma nação de novo, mas pelo contrário devemos direcionar toda esta energia para propósitos pacíficos, não para a guerra.
Nós, os líderes religiosos e legítimos porta-vozes da Independente Nação Hopi, fomos instruídos pelo Grande Espírito para expressar o convite ao Presidente dos Estados Unidos e a todos os líderes espirituais em todos os locais para se encontrarem connosco e discutir o bem-estar da humanidade para que a Paz, Unidade e Irmandade se tornem parte de todos os homens em toda a parte.

6 Chefe Fools Crow, Teton Sioux, comentou este mesmo ponto:

Decidi ir de novo a Bear Butte para jejuar e rezar… e sabe o que aconteceu? Wakan Tanka e Tunkashila deram-me a mesma resposta que me foi dada na minha viajem lá em 1927. Os Sioux deviam voltar e escolher as coisas boas que os nossos avôs, avós, tias, tios, pais e mães nos ensinaram. A nossa única esperança era voltar ao nosso modo tradicional de vida. Era a única fundação que tínhamos que nos dava significado e propósito. Eu trouxe esta mensagem de volta para os anciãos… (Thomas E. Mails, Fools Crow [Garden City: Doubleday, 1979])

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