Tuesday, February 13, 2018

O Modo de Vida Tradicional

 

Publicamos hoje a tradução de um artigo de Antonio Medrano, intitulado ‘O Modo de Vida Tradicional’, incluído no livro ‘Cuadernos de Formación Tradicional’, editado pelo Circulo Cultural Imperium.

Este autor espanhol, pouco conhecido em Portugal, é um dos expoentes máximos no país vizinho da corrente Sophia Perennis, tendo incluso sido apelidado como o ‘Coomaraswamy espanhol’. Influenciado ainda jovem pelas obras de Julius Evola e de René Guénon, aliado à sua vocação individual e familiar pela ação – o seu pai foi uma das figuras de proa da aviação militar espanhola e herói de guerra e o seu próprio apelido remonta às proezas da reconquista cristã medieval – sempre tentou conjugar a via do conhecimento tradicional com a da ação no mundo moderno, pelo que para além de destacado profissional e universitário, erudito, homem de leituras e escritor profícuo, com uma biblioteca de mais de quarenta mil volumes - deixou obra também no campo do ativismo cultural, da formação de quadros dirigentes não apenas no mundo empresarial como no político, e no mundo desportivo, sempre com esse intuito de não só conhecer mas, especialmente, de viver a via tradicional diariamente e permitir que outros acedessem a tal mundividência.

Esperamos que este texto sirva não só para introduzir este autor, que, confessamos, ainda há pouco tempo desconhecíamos, mas principalmente para dar pistas a quem busque uma aplicação prática da integração da Tradição na respetiva vivência diária, seja a externa – no trabalho, em casa, com amigos ou familiares – mas principalmente na interna. E contra nós falamos quando reconhecemos o logro em que facilmente se pode cair – especialmente nos tempos que correm por via constatação dos abismos em que o mundo moderno se afunda – em que se julga suficiente manter uma atitude totalmente desengajada, na qual o combate se realizar no mero plano ‘intelectual’, esquecendo que a Tradição só se efetiva por meio de uma atitude viril e nobre, que tendo consequências no modo de estar, parte de uma transformação da vivência interna, na qual tem palco a ‘Grande Guerra Santa’.

Que este artigo sirva para relembrar que, como defensores da Ordem, da Virtude e dos valores que têm validade Eterna, se não colocarmos todos os nossos esforços para os atualizar no nosso modo de existência e sermos uma incarnação dos mesmos, na prática pouco nos distinguiremos do homem comum e caído que tão prontamente denunciamos e do qual nos julgamos distanciar.


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Qual é o modo de vida próprio ao homem da Tradição? Quais são as atitudes e os estilos existenciais mais conformes à via tradicional? Como temos de conduzir a nossa vida diária se queremos percorrer o caminho que a Sabedoria perene nos ensina? Que pauta ou norma de vida podemos seguir para aproximarmo-nos cada vez mais à sua verdade no meio de um ambiente hostil como o da atual civilização? São estas algumas das interrogações que colocam de forma imediata quem pela primeira vez entra em contacto com a doutrina tradicional, todos aqueles que começam a despertar para o resplendor da respetiva mensagem luminosa e imorredoura.

Posto que a Tradição ou a Sabedoria é antes de mais nada vida, uma forma integral de viver, uma realidade para ser vivida em todos e cada um dos momentos da existência, não poderia formular-se pergunta mais certeira e oportuna como esta acerca da forma do viver tradicional. Esta é a primeira pergunta que todos nos deveríamos colocar, não por pura curiosidade intelectual, senão para dar resposta e proceder em consequência, tratando de aplicar a dita resposta à nossa própria vida única e uniforme, válida indiscriminadamente e por igual para todos os seres humanos. Mais que modo de vida tradicional haveria que falar, em rigor, em modos de vida tradicionais; pois múltiplas e diversas são as vias existenciais que o mundo da Tradição apresenta, oferecendo neste campo uma rica gama de possibilidades adaptadas às diferenças de época e lugar, assim como à diversidade de tipos humanos e de formulações doutrinais. Em primeiro lugar, o modo de vida diário, em numerosas questões de detalhe, segundo as tradições. Não é o mesmo o modo de vida de um muçulmano que o de um hindu, ou o de um cristão e um taoista, como tão pouco seriam evidentemente idênticas as normas que regiam a vida de um antigo germano e aquelas às que ajustava a sua existência um egípcio ou um azteca.

E, em segundo lugar, mesmo quando nos situemos dentro do contexto de uma mesma tradição, o modo de vida diferirá segundo a inclinação vocacional predominante em cada ‘casta’ ou tipo humano, segundo o sexo e condição de cada pessoa e segundo a sua capacidade ou nível intelectual. Assim, por exemplo, não se prescreve a mesma atitude perante a vida a um homem e a uma mulher, como tão pouco se exigem as mesmas virtudes ou qualidades, nem se exigem com igual rigor, a um indivíduo com escassos dotes e a um ser especialmente inteligente, capaz de perceber as coisas com maior claridade e penetração. De forma semelhante, a norma de vida válida para um monge resulta inadequada para um pai de família, de igual que não se podem aplicar os mesmos critérios a um contemplativo e a um homem inclinado à ação. O estilo existencial da casta sacerdotal há-de ser, por força, diferente do que resulta característico da casta guerreira ou da mercantil. Contudo, não se pode desconhecer que essa múltipla e plural constelação de formas de vida tem em comum um núcleo de princípios fundamentais, que é precisamente o que os faz pertencer a um mesmo mundo espiritual, apresentando-as como partícipes de um mesmo arquétipo cultural e como variantes de uma mesma forma de vida: a cultura e a forma de vida tradicionais. É a coincidência em algumas normas básicas comuns o que, ao mesmo tempo que une e irmana entre si todas essas formas de vida, tão diversas, por outra parte contrapõem-se sem paliativos ao modo de vida reinante no mundo moderno, profano e anti-tradicional.

Resulta, pois, legítimo falar de uma forma tradicional de vida, da qual as diversas variantes a que fizemos alusão não seriam senão expressões ou modulações particulares. As diversas formas tradicionais de vida são, com efeito, adaptações da Vida normativa e essencial da Tradição, do mesmo modo que as distintas tradições se perfilam como expressões adequadas às diferentes condições humanas da Verdade eterna, una e única. É este modo de vida normativo e essencial, subjacente a todas as culturas tradicionais, o que vamos tentar esboçar aqui nas suas linhas mestras e com uma linguagem o mais acessível e concisa possível, sem tecnicismos, erudições, nem floreados literários. E fá-lo-emos, claro está, sem nunca perder de vista que as nossas palavras vão dirigidas a pessoas cuja vida desenvolve-se preferencialmente ou de forma predominante no mundo da ação, e que nasceram e cresceram num ambiente refratário às realidades e forças, de natureza espiritual, que configuram tal modo de vida, como ocorre na moderna civilização ocidental.

Por uma questão de clareza, procurarei fazê-lo de uma maneira esquemática, quase telegráfica, destacando vários pontos que me parecem especialmente importantes, ainda que sejam inevitáveis certas repetições ou reiterações, dado os entrelaçados que se encontram entre os diversos aspetos analisados. Estas repetições colocam em evidência até que ponto a forma tradicional de vida possui coerência e unidade. Como elementos fundamentais da atitude tradicional perante a vida caberia destacar os seguintes:


1.       Assentar A Vida Em Princípios Autênticos

Guiar-se pela verdade, eleger como base e cimento da própria vida os princípios imutáveis da Tradição ou Sabedoria universal. Completo acatamento da doutrina tradicional: ter sempre presentes os seus ensinamentos e seguir as suas orientações; conformar a totalidade da nossa existência às suas diretrizes e conselhos. Sujeitar à Norma impessoal da doutrina – que é o critério da pura objetividade – todos os nossos critérios, juízos, opiniões, tendências, impulsos e atos, reduzindo à mínima expressão, ou melhor ainda, erradicando por completo, o capricho e a arbitrariedade, a mania de originalidade e de independência individual, o afã de protagonismo, o criticismo racionalista ou sentimental ou qualquer outra manifestação de individualismo.

A vida do homem tradicional distingue-se, antes que tudo, da do homem moderno, por este critério doutrinal, por esta submissão à verdade e aos princípios: enquanto a vida do primeiro toma inspiração, completamente, numa doutrina que orienta, ordena e dá sentido a todos os aspetos da sua existência (uma verdadeira doutrina: sagrada, sapiencial, supra-humana, de origem transcendente, situada por cima dos critérios e das opiniões individuais), a do último desenrola-se com independência de qualquer orientação doutrinal, à margem de toda a doutrina, ignorando inclusive o que esta palavra significa. Carecendo de uma pauta normativa que guie a vida, o homem moderno vive à sua vontade, faz o que lhe dá na gana. O homem tradicional, pelo contrário, vive como é devido, faz não o que lhe apetece ou apraz, mas o que é correto, o que é justo e necessário. O seu comportamento ajusta-se à Norma, e por isso pode ser qualificado de normal, na plena e genuína aceção da palavra. A sua maneira de pensar, de falar e de obrar desenvolve-se com normalidade, em contraposição à anormalidade do viver moderno, completamente desorientado e desnorteado na sua radical anomia (ausência de nomos, de lei ou norma). Tudo isto supõe, evidentemente, um esforço prévio de conhecimento e de assimilação do conteúdo doutrinal da Tradição. Uma vez dado este passo, há que deixar que a sua mensagem transformadora e vivificante penetre de modo natural as diversas esferas e facetas da nossa vida, de tal modo que vá modelando, retificando e ajustando a nossa maneira de ser, o nosso modo de ver as coisas e de nos vermos a nós mesmos, a nossa forma de nos comportar e de reagir perante os acontecimentos.


2.       Sacralizar e Ritualizar a Própria Vida

Fazer que nela se faça presente com a maior intensidade possível a dimensão ritual e simbólica que constitui um dos ingredientes principais do mundo tradicional (para o qual se torna imprescindível enxertar-se numa via tradicional concreta; isto é dizer, abraçar e seguir algumas das diversas tradições ortodoxas). Rodear-se dos ritos e símbolos sagrados da Tradição, empapando com a sua influência luminosa o próprio ambiente existencial: a casa, o local de trabalho, a indumentária, o horário e o ritmo de vida. Procurar que o próprio existir adquira um perfil e um conteúdo sacrais, com contornos ritualizados e com sentido simbólico, na medida que o permitam as condições de vida imperantes na civilização atual e as circunstâncias pessoas de cada um. Aproveitar, de maneira especial, aqueles meios e técnicas que a cultura sagrada coloca à nossa disposição para nos abrir ao mais elevado e plasmar na vida diária os conteúdos do sagrado: oração, meditação, leitura de textos sagrados, recitação de mantras ou fórmulas sagradas (jaculatórias, invocações), práticas de mudras ou gestos rituais (prostrações, genuflexões e reverências, benzer-se, gasho ou saúdo ritual com as mãos unidas), adoção de asanas ou posturas corretas. A sacralização da própria postura, tanto física como mental, que se tenha a cada momento. Revestir-se de um hábito ou hálito cultural, litúrgico e sacrificial, incorporando no próprio viver esse comportamento de culto que é consubstancial à cultura autêntica (a palavra ‘cultura’ vem de culto e cultivo: o cultivo da terra efetuado com os ritos adequados, realizando sobre ela um culto que a consagra e a torna fecunda). Fazer da nossa vida inteira um ato de culto, um serviço divino.


3.       Unidade, Integração e Concentração

Buscar o que nos une, o que nos unifica e fortalece, o que nos permite superar a desunião, o conflito e o desgarro interno, e nos torna um ‘reino unido’, para dizê-lo com as palavras de S. Francisco de Sales. Afiançar a unidade em nós mesmos. Isto – ‘união’, ‘unidade’ – é o que significa a palavra sânscrita Yoga: toda a disciplina sagrada é, na realidade, um yoga, uma via de unidade. A do homem tradicional é uma vida inteira, íntegra, unida e bem embalsamada, de uma peça. É um todo harmónico, perfeitamente trabalhado, em que cada parte ou parcela se integra orgânica e solidariamente com as demais. E por isso é uma vida plena de sentido. É a totalidade simbolizada pelo círculo, na que se encaixam na sua mais estrita significação as palavras ‘integridade’ e ‘inteireza’ (o que se encontra inteiro, o que é ‘redondo’, completo ou consumado). Tudo o contrário que ocorre ao homem moderno, cuja vida se encontra desintegrada, fragmentada, descentrada, formando um conglomerado informe e caótico, sem centro nem freio de unidade.

Há que praticar e cultivar tudo aquilo que nos faça ganhar em integridade, interioridade, profundidade, elevação, centralidade e harmonia. Assim, por exemplo: introspeção, reflexão, contemplação, trabalho, estudo, arte, música, silêncio, exercício físico e mental. Assentar a nossa vida na ordem, na paz e no sossego, na calma e na quietude criadoras. Afastar, pelo contrário, o que nos divide e debilita. Eliminar, ou reduzir à sua mínima expressão, tudo que signifique desintegração, dissociação (entre religião e vida, entre teoria e prática, entre trabalho e arte, entre o que se diz e o que se faz), agitação, dispersão, dissipação, distração (o viver distraídos, não a distração que supõe uma sã distensão do ânimo), superficialidade, frivolidade, ruído e desordem. Há que procurar estar bem centrado. Articular a própria vida em torno de um centro inamovível. Ter sempre presentes os princípios que são o centro da nossa vida. Não estar continuamente mariposeando, indo de um lado para outro, mudando de ideias, de projetos ou de atividades. Centrar a atenção numa coisa só, com a duração que faça falta. Não aturdir-se propondo-se fazer muitas coisas; não pretender abarcar demasiado, para ganhar em qualidade e intensidade. Aproveitar cada ocasião que se ofereça para concentrar as próprias energias. Eleger como norma a estabilidade e a firmeza. Cultivar as virtudes da continuidade, da tensão, da paciência, da tenacidade, e da fidelidade como meios para habituar-se a concentrar a atenção e o esforço durante tempo prolongado. Ir ao essencial. Frente à tendência atualmente dominante, em que a vida se torna superficial, trivial e insubstancial, tornando a vida interior asfixiada pela agitação externa, dar primazia ao interno sobre o externo e superficial, priorizar o importante e essencial ao acidental e acessório. ‘Ó homem, faz-te essencial!’, recomendava Angelus Silesius.


4.       Retidão, Nobreza, Autenticidade e Pureza de Vida

Manter-se sempre em Reto caminho. Viver em conformidade com a Lei divina, com a Norma eterna, com o Dharma universal. Retitude em palavras, obras e pensamentos; que a totalidade da própria existência se reja por uma atitude pura, justa e nobre. Esforçar-se por fazer sempre bem e por fazer tudo bem: atuar com vontade de perfeição; fazer com primor, esmero e cuidado requintado o que façamos, dando o melhor de nós mesmos. Comportamento sério e responsável, adequado ao que a inteligência e a consciência nos ditam, que sopese bem as próprias abordagens intelectuais e mentais: não deixar-se ludibriar por essa demagogia íntima que tantas vezes obnubila a razão. Assegurar-se que as nossas ideias estão bem fundadas, se justificam, não são fruto da arbitrariedade, do capricho ou de um arrebato momentâneo. Praticar os valores e virtudes que fazem que a vida seja autenticamente digna de ser vivida: honradez, valentia, fidelidade, lealdade, prudência, discrição, amabilidade, gratidão, perseverança, diligência, laboriosidade.

Assentar a respetiva vida no amor e na verdade, na sinceridade. Evitar a falsidade e a mentira, a duplicidade e a hipocrisia, a traição à própria norma interior, a colaboração com as forças do caos ou a rendição às suas incitações. Não enganar-se nem enganar os demais. Que a verdade guie a nossa ação, procurando não equivocarmo-nos, não cair no erro nem desviarmo-nos do reto proceder. Que a nossa vida seja íntegra e autêntica, dando preferência ao ser sobre o aparentar.

Esta linha de alta exigência moral supõe nobreza, magnanimidade, grandeza de alma: o ideal helénico e a megalopsychia e o indo-ário do mahatma. Apenas uma alma nobre se sente atraída por tão nobre e excelsa norma de conduta; só numa alma grande podem entrar e ter cabimento tão elevados princípios: só uma alma grande e nobre pode responder ao que dela se pede e as altas exigências que o Caminho reto apresenta. Cultivar esta nobreza é um dos principais propósitos da disciplina tradicional.


5.       Viver em Harmonia com o Ritmo Cósmico

Ajustar a própria vida às leis eternas da Natureza, expressão da Vontade do Criador. O homem é um cosmos, um microcosmos, e há-de reger-se pelas mesmas leis que regulam o macrocosmos, o grandioso edifício do universo. Isto significa levar uma vida sã, natural, ordenada, sensível, sóbria e equilibrada, abstendo-se de qualquer coisa que seja antinatural, de tudo o que é frívolo e supérfluo, do que não é necessário ou é prejudicial, do que seja artifício ou ficção enganosa (assim, por exemplo, a enorme acumulação de baboseiras, necessidades artificiais e problemas inventados que gera a civilização consumista). A ordem da própria vida há que refletir a Ordem que rege a Criação.

Há que ordenar a própria vida em todos os seus aspetos: a mente, as ideias e os sentimentos, o horário e o calendário, as atividades que se realizam durante o dia, as coisas que utilizamos e configuram o nosso ambiente vital. Impõe-se fugir da desordem, das situações caóticas, do luxo e da extravagância, do excessivamente rebuscado ou complicado. A naturalidade e a simplicidade são o ideal do modo de vida tradicional, pois só uma vida simples, austera e sem excessos pode ser uma vida livre e autêntica, uma em que a verdade se arreigue.


6.       Respeito, Cortesia, Atitude Amorosa e Caritativa

Respeito a nós mesmos e a tudo que nos rodeia. Consideração reverente à realidade em todas as suas formas de expressão, às leis da vida e aos seres que compartem connosco a existência. Respeito à ordem hierárquica, à diversidade e às diferenças qualitativas que configuram a estrutura do real. Respeito ao que temos por cima, por baixo e ao nosso lado. Respeito ao próximo, àqueles que connosco convivem: respeito às suas inclinações e convicções, à sua vocação, ao seu espaço mental e vital, à sua maneira de ser e de entender a vida (postura esta que exclui o proselitismo, essa aberração tão característica do Ocidente moderno, que levou a querer impor a sua civilização ao resto dos povos da terra).

Trato cortês, atento e amável com tudo e com todos. Não destruir, desprezar nem desperdiçar nenhum bem. Não maltratar nem ofender nenhuma das coisas que temos perante nós ou que utilizamos na vida diária. Não prejudicar, não atacar, não danificar nada nem ninguém. Não manchar a nossa própria dignidade nem a dignidade da Criação. Manter uma atitude de sagrada veneração perante a Natureza, manifestação da Realidade divina. Tratar com delicadeza, com a máxima atenção e ternura as pessoas e os objetos (animais, plantas, coisas inanimadas) que nos acompanham no peregrinar sobre a terra, que nos servem como bons amigos ou fiéis servidores e nos ajudam a viver. Comportar-se com tudo que existe com a responsável magnanimidade de um rei e com o cativante afeto de um irmão. Saber cuidar as coisas que nos foram dadas, que Deus nos confiou para poder cumprir o nosso destino e missão. Atitude compreensiva e compassiva para com todos os seres, começando pelo ser que temos mais próximo, que somos nós mesmos: compreensão e compaixão à minha própria pessoa; amar-me a mim mesmo como base para poder amar os demais (amar e amar-me, que significa desejar o bem para mim e para o próximo). O homem tradicional abraça com o seu amor a totalidade das criaturas, vendo nelas companheiras de caminho e inclusive irmãos. O universo inteiro cabe no seu abraço cordial e redentor, nele se reflete o amor com que o Criador observa a sua Criação e que recebe o nome de ‘caridade cósmica’.


7.       Mente Aberta, Flexível E Recetiva

Abertura de ânimo, em atitude de cordialidade, simpatia e empatia com tudo o que vive. Não fechar-se nem anquilosar-se. Evitar qualquer forma de rigidez, de fanatismo, de obsessão ou fechamento mental. Conservar o respetivo espírito sempre virgem, num templo de frescura, brandura e flexibilidade que o capacite a dar a resposta adequada em cada ocasião e para adaptar-se ao que dele exigem as circunstâncias. Estar disposto a retificar ou emendar o que seja necessário da própria maneira de ser e de atuar, ao ritmo das indicações certeiras que se recebam. Atitude recetiva, acolhedora, de escuta ativa. Não estar contínua e exclusivamente a ouvir-se a si mesmo, obcecado com os respetivos problemas e interesses. Viver em contínuo e generoso intercâmbio com o que nos rodeia. Viver com as janelas do coração abertas à mensagem que nos chega das pessoas e das coisas. O universo inteiro é uma revelação: através de todos e de cada um dos feitos da existência são-nos transmitidas verdades da maior transcendência para a nossa vida espiritual. Cada momento, cada coisa e cada acontecimento traz-nos algum ensinamento. Há que colocar-se numa disposição de ânimo que nos permita captar essa mensagem, essa voz íntima e secreta, prontos sempre a responder e a corresponder como é devido, e a oferecer ajuda ali onde seja necessário.

Só numa mente aberta pode a Luz da Verdade entrar. Só um espírito totalmente aberto pode assimilar a doutrina tradicional. Infelizmente, o homem comum vive encerrado em si mesmo, enclausurado no seu mundo e com a mente cheia de vacuidades e bagatelas que o impedem de captar o realmente importante.


8.       Centralidade, Equilíbrio e Moderação

O ritmo e a medida são os critérios existenciais do homem tradicional, cuja vida se via conformada por uma aritmética e geometria sagradas. Moderação em tudo: no comer, no beber, no dormir e descansar, no pensar e no falar, no trabalhar e no divertir-se. É o sé stesso misura (‘a moderação mede-se a si mesma’) com que Dante define o comportamento e estilo do homem de bem (Purgatório. XVII, 98). Vida bem temperada, sem os rigores da frialdade ou do acaloramento que geralmente atormentam os seres humanos: longe tanto de frialdades glaciares, que gelam e endurecem o coração, como de ardores abrasadores, que perturbam a paz interior e arrasam qual violento incêndio os campos da alma. Temperança e moderação que evitam exageros e desvios danosos, intransigências violentas, radicalismos e rigidezes, obsessões e manias.

Buscar em cada instante o centro de equilíbrio. O ‘Justo Meio’, equidistante do excesso e do defeito, de que fala a doutrina zoroástrica; o ‘Caminho do Meio’ da doutrina budista; o ‘Centro áureo’ postulado por Confúcio e pela tradição chinesa; a senda simbolizada pelo braço central do Y pitagórico. ‘No centro está a virtude’, afirmam em uníssono tanto os autores clássicos do mundo greco-romano como os moralistas e místicos cristãos. Impor-se um método, uma disciplina, uma ascese que, empregando técnicas perfeitamente medidas, atue como limite criador; uma ascese que não seja demasiado tensa nem demasiado relaxada, nem excessivamente dura nem excessivamente branda, distanciada por igual do hedonismo enervante e do ascetismo mortificador ou masoquista. Guiar-se, nas diversas vicissitudes e circunstâncias do viver quotidiano, por uma austeridade balançada, por uma frugalidade sã e uma sobriedade nobre. Reduzir ao máximo os desejos, apetites, aspirações e necessidades. Cultivar e fomentar tão só as aspirações e os desejos nobres. Descartar tudo que é degradante, que nos escraviza ao mundo dos sentidos, que acentua o sentido do ego.


9.       Postura de Desapego Radical

A Abgeschiedenheit (‘distanciamento’, ‘afastamento’ ou ‘isolamento’) de que fala Meister Eckhart, equivale à ‘pobreza de espírito’ evangélica. Não viver apegado às coisas, afogados por tarefas e preocupações mundanas. Não estarmos dependentes do que se passa e como nos correm as coisas; não sermos movidos pela sede de dinheiro, de fama ou de poder. Desprender-se do afã de possuir e dominar. Não aferrar-se a nada nem a ninguém, de tal forma que não sintamos a sua perda ou nos desespere o seu desaparecimento; pois tudo é perecível e o aferrar-se a algo, como se fosse durar para sempre, não proporciona senão dor e pesar. Ânimo desprendido, despido, vazio, em radical solidão, com o olhar fixo unicamente no Eterno. O que Eckhart chama ‘mente solteira’ (lediges Gemüt); a ‘bondade indiferente’ de Tertuliano, a ‘santa indiferença’ dos místicos espanhóis; o ‘deixar largar’ que ensina o Zen. Ser pobre no meio das riquezas: possuir as coisas como se não se possuísse; não desejá-las se não se possuem. Esvaziar-se de tudo: desprendermo-nos dos impedimentos que nos complicam a vida e descartarmo-nos da bagagem pesada e inútil que costumamos acumular sobre a nossa alma.

A solidão interior como meio formativo e recurso libertador, como requisito para a inspiração e como base da comunidade autêntica, não a solidão negativa, como isolamento individualista e egoísta, como sintoma e fruto amargo do desamor. Um viver solitário que é ao mesmo tempo radicalmente solidário, pois é animado pelo amor, nutrindo-se da Fonte de Amor eterno. Só com este desapego interior pode o homem alcançar a liberdade perfeita; pois graças a ele consegue libertar-se de si mesmo e de tudo que o rodeia: já não se vê afetado pelos acontecimentos; os contratempos já não causam entalhe no seu ânimo, permanece sempre o igual e impassível. Instala-se num estado de equanimidade, de equidade anímica ou de igualdade de ânimo (‘a santa igualdade de ânimo’, de que falava S. Francisco de Sales). Sabe comtemplar com um semblante sereno a boa e a má fortuna, o êxito e o fracasso, o elogio e a censura.


10.   Eliminação do Egoísmo

Extirpar qualquer tendência egocêntrica e egolátrica. ‘O ego é o inferno’, repetem incessantemente os místicos cristãos, hindus, muçulmanos e budistas. O caminho da liberdade passa pela submissão e aniquilação do ego. É o caminho da abnegação e do abatimento (o self-naughting da mística inglesa). Ser nada para ser tudo. Temos de viver num estado de completa submissão à Vontade divina, oferecendo a Deus tudo quando façamos ou possuamos e aceitando tudo que ele nos envie. A vontade própria deve eliminar-se para dar prioridade à Vontade de Deus. Na vida quotidiana há que manter uma postura de desconfiança e distância em relação ao próprio eu: a tudo o que dele surja (emoções, opiniões, juízos, apetências, preocupações, dúvidas, temores). O nosso pior inimigo está dentro de nós: é o nosso ego, o nosso eu. Dele provém todos os nossos problemas. Este é o adversário que temos de vencer se queremos que desperte e se afirme a nossa realidade espiritual.

Desprender-se da noção do ‘eu e do meu’, que frequentemente condiciona a nossa atuação e o nosso pensamento ao longo do dia. Procurar viver num estado de anonimato, como se não fôssemos nada nem ninguém. Como passo prévio, já que este nível de anulação total do ego é sumamente difícil, convirá que o ego adote uma atitude serviçal, colocando-o ao serviço da Verdade e fazendo que se considere servidor de Deus e do próximo, com o qual se irá depurando até que chegue a esfumar-se quase por completo. Para libertarmo-nos do egoísmo dispomos de um antídoto duplo: a humildade e a generosidade. A humildade faz-nos reconhecer que somos algo muito pequeno, que estamos cheios de debilidades e limitações, que somos falíveis e corruptíveis, e que lhe devemos tudo quanto temos. A generosidade leva-nos a reconhecer a valia e a grandeza fora de nós, a admirar o que nos supera e a ela nos subordinar, a entregarmo-nos ao grande e ao nobre, a dar com liberalidade (preferindo dar a receber) e a pensar nos demais antes de nós. Operando conjuntamente, a humildade e a generosidade impulsionam-nos a buscar por cima de tudo o bem, a verdade e a beleza, ao mesmo tempo que permitem que nos submetamos com facilidade e sem problemas ao que por natureza estamos submetidos.


11.   Acão Pura e Desinteressada, Realizada com Sentido Sacrificial

Fazer aquilo que deve ser feito sem preocupar-se com as consequências que podem acarretar para a nossa pessoa. Cumprir o dever respetivo, com independência do gosto ou desgosto que nos proporciona a tarefa a realizar e sem consideração pelo êxito ou fracasso, aos bons ou aos maus resultados que se podem conseguir, ao aplauso ou à crítica com que sejam acolhidos o nosso proceder ou obra realizada. Na hora de empreender uma atividade, não tomar em conta as perspetivas de triunfo ou derrota, de ganho ou perda, de prémio ou castigo, tão só a retitude e a conveniência da ação a realizar. É o ideal do Karma Yoga da tradição hindu: a ação desvinculada dos frutos, efetuada com total desprendimento e oferecendo-a a Deus, sabendo que ele é o verdadeiro Realizador, que nós somos apenas seus instrumentos.

Fazer bem as coisas não porque a nossa boa conduta será premiada, mas por amor ao bem. Abster-se de fazer o mal não porque se vai ser castigado, mas por negação espontânea e radical do mal como algo contrário à nossa própria natureza. Viver a ação como sacrifício, na significação etimológica da palavra: sacer facere = ‘Fazer Sacro’. Imolar o ego ao altar do dito sacrifício, fazer que se consuma nas chamas desse fogo sagrado. Obrar com total desapego, sem ego, sem a noção ‘sou eu que faço’, sem pensar que vou obter isto ou aquilo, que existe um sujeito que vai ser derrotado ou vai sair vencedor. Realizar conscientemente, inclusive com ilusão e entusiasmo, as tarefas que nos correspondam, esforçando-nos para que a nossa seja uma obra bem realizada. Nos combates que haja a empreender, lutar com o maio ímpeto para alcançar a vitória, mas sem obsessionarmos com ela e sem tão-pouco temer a derrota. Perder e ganhar com o mesmo bom ânimo, como o bom desportista. Atuar, trabalhar e combater com espírito desportivo. Atitude lúcida perante a vida, participando alegremente na Dança no Jogo de Deus, o que os hindus apelidam de Lila divino.


12.   Viver em Perpétuo Estado de Alerta Interior

Manter uma permanente atitude de atenção e vigilância (o sati budista). Estarmos sempre despertos, atentos ao que se passa dentro e fora de nós. Ser em todo o momento conscientes do que fazemos, pensamos e dizemos; manter sob atenta observação os movimentos do nosso corpo, os nossos impulsos e motivações, as comoções que têm lugar na nossa alma. Dar-se cabalmente conta da realidade em que vivemos imersos, percebendo com nitidez até os seus detalhes mais ínfimos. Visão circular capaz de tomar em conta a totalidade da situação para que nada passe desapercebido.

Não vivermos distraídos, despistados ou atordoados, adormecidos ou letárgicos, submersos inconscientemente no puro devir horizontal, como mortos na vida, como zombies ou robôs com aparência humana. Não permitir que a nossa mente funcione à base de automatismo e de reações induzidas, como se fôssemos entes teledirigidos manipulados pelos que detêm os poderosos meios de comunicação da sociedade de massas. Não deixar que a existência vá decorrendo sem nos apercebermos do profundo mistério que encerra, mas justamente o contrário: despertar para a vida e estar sempre em guarda, mantendo a postura erguida e alerta do sentinela que vela o tesouro da cidade interior. É uma atitude indispensável para o conhecimento de si mesmo e do mundo. E deste modo a única via possível para conseguir a submissão do ego, em vez de ser ele que nos submeta e escravize.


13.   Vivência do Momento Presente

Entrega íntegra e total à ação do momento. Concentrar-se no que se faz a cada instante, com completo esquecimento de tudo o resto. Viver em pleno, limpa e intensamente no ‘aqui e agora’. Não estar pendente do que foi ou do que será, do que se passou ontem ou do que poderá passar amanhã. Não deixar que nos invada a preocupação pelo futuro nem o lamento ou o remorso pelo que aconteceu. Identificar-se com o que há que fazer agora, fundir-se na tarefa que temos em mãos, seja esta ou a que seja. Colocar todo nosso ser naquilo que fazemos, seja a comer ou a trabalhar, meditar ou caminhar, rezar ou descansar, falar com um amigo ou contemplar uma obra de arte. Consagrarmo-nos a ele de corpo e alma, com todos os nossos sentidos, como se a nossa vida dele dependesse (que realmente depende), como se do mais vital e transcendente se tratasse, vivendo-o como algo sagrado. Fundirmo-nos com o real, com o que é – isto é dizer, com o que perante nós aparece como dado neste momento – em vez de estar pensando continuamente no que poderia ser ou que gostaríamos que fosse, lamentando não poder estar neste ou noutro lugar e sentindo falta desta ou daquela atividade mais gratificante e apetecível que poderíamos estar agora a fazer. Deste modo a vida ancora-se no Eterno Presente, no Agora supremo em que resplandece a Presença de Deus.

A vivência do presente exige também não perder tempo; saber aproveitar cada pequena parcela deste bem tão valioso e irrecuperável que a Providência coloca à nossa disposição; não permitir que o tempo passe indolentemente; não deixar que se esfume desaproveitando o despercebido nem um só minuto do nosso existir quotidiano. Todo o oposto desta atitude que se resume na locução ‘matar o tempo’. Matar o tempo é matar-se pouco a pouco. Perder o tempo é perder a vida, suicidar-se lentamente. Apenas quem emprega bem o seu tempo em boas ações, plenas de conteúdo, salva a sua vida, torna-a proveitosa e lhe dá sentido.


14.   Esforço Heroico e Vontade Combativa

Para viver a vida como é devido faz falta tensão afirmadora, espírito de luta, energia interior, força e tenacidade, virilidade espiritual (a virya indo-ária, a virtus romana, a areté helénica). Esforço sustentado com persistência, exigência e rigor, ação continuamente orientada para a perfeição. Trabalhar e trabalhar-se sem cessar. Desconfiar de tudo o que seja passividade, abandono, inércia, ociosidade, sonolência, apatia, preguiça, deixar-se levar. Empenho e resolução para realizar o respetivo destino, para levar a cabo a missão única e intransferível que nos foi encomendada nesta vida, para modelarmo-nos e aperfeiçoarmo-nos, para avançar na via da Libertação e Iluminação. Coragem e determinação para vencer todas as dificuldades que se interponham no nosso caminho. E sobretudo tensão e perseverança na consecução do objetivo proposto e na prática da disciplina eleita. Não desanimar pelas falhas e erros que se cometam; não render-se perante a constatação da própria debilidade. Luta implacável contra as potências do caos e das trevas, donde quer que insinuem a sua presença, e de modo especial no terreno que mais nos concerne e que temos mais próximo: na sua projeção dentro do nosso próprio ser. Dito por outras palavras: guerra sem cartel contra o dragão que se oculta na caverna da própria individualidade. É o que a doutrina tradicional designa com o nome de ‘grande guerra santa’. A vida há que ser vivida como um combate ao serviço de Deus, como uma luta sagrada pelo triunfo das forças da ordem e da luz. ‘Milícia é a vida do homem sobre a terra’, diz a Bíblia.

15.   Autodomínio e Senhorio de Si Mesmo

Império sobre a própria individualidade. O que Lao-Tse chama ‘conquistar e conservar o Império’. Ser dono e senhor do próprio mundo psíquico e mental, das respetivas reações e emoções. Não deixar-se levar pelos sentimentos; não permitir que a própria irracionalidade nos manipule e nos dite a maneira de pensar, de falar e de atuar. Não afastar nem alienar a nossa vida interior. Viver desde o próprio, e não desde instâncias externas, de impulsos de origens distantes. Não estar à mercê do que ocorra em nós ou à nossa volta; não estar sujeito aos vaivéns que a alma pode experimentar. Dominar as paixões, em vez de deixar que sejam elas que nos dominem. Possuir as coisas em vez de ser por elas possuído. Que nada possa mandar sobre nós mesmos, escravizar-nos ou subjugar-nos. Que o próprio mundo pessoal seja semelhante a um império ou reino bem regido, sem rebeldias nem insubordinações ilegítimas, obediente à Lei do Céu. Um império forte e poderoso, mas ao mesmo tempo benigno, suave, humano, flexível. Que a própria vida se organize como uma comunidade retamente ordenada, articulada com arranjo e justiça e de acordo com a correta hierarquia, com um princípio dominador firmemente assente no próprio centro. Qua a realidade espiritual, o Eu superior, mande como rei sobre o plano físico e psíquico, sobre o eu inferior, efémero e contingente. Apenas sobre esta base a verdadeira liberdade é possível. Ser livre e dominar-se, ser dono de si, exercer um controlo inteligente, justo e sereno sobre o próprio ser, submetendo-o aos ditados da inteligência e da Norma espiritual – submetendo-o, não tiranizando-o.


16.   Claridade, Lucidez, Racionalidade


Comportamento lógico e racional, animado pelo logos ordenador, pela razão clarificadora e iluminadora das sombras que buscam assenhorar-se da alma. Manter a todo o instante um estado de claridade mental, de luminosidade intelectual, de discernimento lúcido. Não tolerar que a respetiva visão se torne nebulada pelo erro ou pela ignorância (a avidya da doutrina budista e vedântica, a cegueira espiritual). Impedir que o elemento irracional determine os critérios orientadores da nossa vida. Mover-se em permanente clima de inteligência e sensatez: que no próprio mundo psíquico impere a luz e a sanidade.

Manter-se afastado da insensatez, da torpeza física e mental. Fugir de tudo que seja confusão, ofuscação, ideais pouco claras, sentimentalismo (predomínio do sentimental, o sentimento como critério e regra de vida), misticismo obscuro, sugestionamentos coletivos, gregarismo e fenómenos de massas, manipulação dos estratos subconscientes da nossa psique (todas elas coisas que estão na ordem do dia nos tempos que correm). Evitar qualquer tipo de intoxicações, vícios ou espasmos emotivos que ofusquem e assombrem a nossa mente, que diminuam a nossa consciência, que rebaixem a nossa lucidez intelectual e a nossa força volitiva. Não consumir drogas, narcóticos ou produtos alucinogénios, que adormeçam ou inibam a nossa capacidade de ação e reação, que nos mergulhem na penumbra ou semeiem na nossa alma a preguiça ou a impotência. Não abusar das substâncias calmantes e estimulantes, nas que o homem moderno tende a confiar cegamente, delegando nelas o controlo da sua vida. Evitar tornar-se presa das técnicas de envelhecimento, de condicionamento da mente e de adestramento coletivo que tão enorme desenvolvimento adquiriram na civilização moderna. Ao falar da necessidade de evitar as drogas, isto inclui também aqueles produtos intoxicantes mais subtis, que poderíamos qualificar de drogas culturais, psíquicas ou mentais, com as quais somos bombardeados incessantemente e que fazem parte da lavagem de cérebro e de caráter em que se vê submetido o homem de hoje.


17.   Atitude Profundamente Objetiva e Realista

Não desvirtuar, tergiversar, distorcer nem violentar a realidade. Ver as coisas tais como são, e não pretender vê-las como queríamos que fossem, projetando sobre elas o nosso subjetivismo deformante. Conservar uma postura de central imperialidade, de objetividade impessoal, que exclui não só qualquer atitude partidarista, como também o aferramento ilegítimo a preferências individuais, o tingir a realidade com a cor dos próprios desejos ou o enquistamento em enfoques parciais. Normas básicas a ter em conta são aqui: o não enganar-se com as próprias construções mentais ou mediante engenhosos malabarismos dialéticos; o aceitar a realidade em toda a sua desnudez, em vez de sacrificá-la ou subordiná-la aos próprios gostos, apetências ou manias; saber captar a verdade objetiva, sem deformações interesseiras; antepor a verdade a qualquer outra consideração e acostumar-se a preferir a verdade pura e simples a qualquer interpretação adocicada dos factos. É necessário, sobretudo, manter uma atitude imparcial e neutral ante a nossa própria vida anímica: perante as nossas alterações emocionais, perante os altos e baixos que a nossa alma possa experimentar, perante o impacto do prazer ou do sofrimento, perante as consequências afirmadoras ou negadoras do eu que trazem consigo os acontecimentos. Só assim poderemos deixar de nos ver abalados pelas comoções do psiquismo.


18.   Aceitação, Confiança e Alegria

Alegre e serena aceitação do que ocorre, de tudo aquilo que a vida nos traz, vendo nele algo que Deus nos envia para o nosso próprio aperfeiçoamento. Alegre afirmação da vida, com todos os seus bens e pesares, considerada como um dom de Deus que há que saber aproveitar para fazer render os talentos que nos deram. E ao mesmo tempo, tranquila aceitação da morte, enfrentada cara a cara, sem rejeição nem temor. Confiar na Providência divina, na Lei sábia e amorosa que rege a ordem cósmica. Conformidade com o próprio destino, com a própria sorte e condição (o próprio karma), sabendo que nada é casual, que tudo possui o seu significado, pois descansa numa profunda lógica e obedece a leis precisas que ultrapassam a nossa compreensão. Não queixar-se nem cair no pessimismo. Não cair tão pouco num fanatismo cego, mas atuar com energia quando se trata de emendar uma situação deplorável ou indesejável. Ver as coisas pelo lado bom e positivo. Saber extrair o melhor das experiências, como a abelha extrai o mel das flores amargas.

Fidelidade ao svadharma, à lei ou norma do próprio ser, à norma que rege a nossa natureza pessoal e nos assinala o nosso destino. Longe de tornar-se movido pela ambição, pelo afã competitivo, pela obsessão de progresso e ascensão na escala social (a absurda mania de ser ou aparentar ser mais que os demais ou, pelo menos, de igualar-se ao que está por cima), o homem tradicional não deseja mais que estar no seu próprio posto, aquele que corresponde à sua própria natureza, à sua mais íntima vocação, às suas qualidades, aptidões e méritos. Não há nada mais afastado da norma tradicional que a insatisfação, a agressividade, o descontentamento perpétuo, a inveja e o ressentimento, atitudes insalubres que são fomentadas e atiçadas pela moderna civilização do igualitarismo e do comunismo. Uma vez mais, naturalidade, retitude, autenticidade e sensibilidade. O homem tradicional vive conectado às fontes da alegria (o Ananda ou Gozo divino). Por isso é inexequível às potências abissais que obscurecem a existência humana e estendem sobre ela o negro véu da tristeza, que é o pior veneno da alma. Viver contente com o que se é e com o que se possui. Não se render jamais à amargura, à angústia ou à apatia. O seu templo vital caracteriza-se pela simpatia, o sentido de humor e uma jubilosa ingenuidade. A sabedoria compadece-se mal com estados de alma como a irritação, a melancolia, a aridez, o desabrimento e o mau-humor; é risonha e jovial, como o prova o sorriso que resplandece do Homem divino, sábio e liberto (Cristo, Buddha, Lao-Tse, Ramana Maharshi). Também neste ponto a sua forma de viver apresenta-se em abismal contraste com a do homem moderno, cuja vida é triste e angustiada, insípida e monótona, aborrecida e sombria, ameaçada pela depressão e pela náusea vital, o que o leva a buscar a evasão em paraísos artificiais, tão lúgubres como penosos e escravizantes.


19.   Encher a Vida de Beleza e Poesia

Viver com sentido poético; isto é, com sabedoria e amor, projetando luz sobre as coisas, descobrindo as profundas riquezas que encerra a vida. Mover-se e observar o mundo com vocação criadora e harmonizadora, com uma visão de totalidade, incorporando ano próprio viver a força renovadora que em si contém a poesia. Fazer da nossa vida uma obra de arte, uma realidade bela, harmónica e bem formada, na que se realize de forma efetiva a síntese daquelas três qualidade do Ser – o bem, a verdade e a beleza – colocadas em relevo pela filosofia platónica. Incorporar a elegância, a finura e a delicadeza às diversas manifestações que configuram a nossa existência quotidiana.

A cultura tradicional encontra-se banhada num mar de poesia e beleza. Tudo nela é belo e encontra-se envolto num delicado alento poético: desde os textos sagrados à arquitetura dos templos, desde os símbolos dos utensílios que se são usados na atividade diária, desde o vestuário às formas de vida. A diferença do que ocorre na moderna civilização industrial, onde a arte é algo separado da vida quotidiana, reservado a uma minoria de indivíduos privilegiados e ociosos, na cultura tradicional todo o homem é um artista e um poeta: tudo o que faz tem um valor poético e artístico; vai criando arte e poesia à medida que vive. Se a beleza é o resplendor da verdade, uma vida que se encontra enraizada e inspirada na verdade será uma vida bela, da mesma forma que quem vira as costas à verdade ou a despreza estará forçosamente condenado a penar sob o erro e o horror, caindo numa existência feia e disforme. A vida do homem tradicional, que é o mesmo que dizer do homem normal, encontra-se nos antípodas da vida prosaica do homem moderno, uma vida cinzenta e opaca, que se vê asfixiada pela fealdade e pela insustentabilidade, ensombrada por enormes monstruosidades de toda a índole.

20.   Encher a Vida de Beleza e Poesia

Exercitar o corpo, para fortalecê-lo, endurecê-lo e dar-lhe flexibilidade e resistência. Saber aproveitar todas as energias e desenvolver todas as suas potencialidades, de tal modo que se converta num firme apoio para a obra de elevação e realização espiritual. Não esquecer nunca que a meta a alcançar é o desenvolvimento integral, harmónico e equilibrado da pessoa. A doutrina tradicional – totalmente distante daquelas aberrantes correntes espiritualistas que creem ver um antagonismo irredutível entre espírito e matéria, entre alma e corpo, olhando com desprezo este último – valora com ênfase especial o exercício físico e o cultivo da realidade corporal do ser humano, atitude que tem o seu fundamento doutrinal na consideração do ser sensível como manifestação da realidade espiritual e da estreita ligação existente entre corpo, alma e espírito. Prova dela é a importância que na cultura tradicional adquirem o trabalho manual, o artesanato, o canto e a dança, o desporto como ação sagrada (os jogos gregos, as artes marciais orientais, o Hatha-Yoga). A música e a ginástica são os dois esteios propostos por Platão para a formação do homem ideal (estando comprometida na noção grega de ‘música’ também a poesia). Caberia recordar também o importante papel que nas práticas iniciáticas desempenham a postura corporal, o respetivo ritmo da respiração ou a concentração em determinadas zonas do corpo. Na doutrina cristã o corpo humano é concebido como ‘templo vivo do Espírito Santo’, da mesma forma que o universo revela-se como corpo e templo de Deus.

Mais importante ainda que a disciplina do corpo é a disciplina da mente. Somos o que pensamos. Do modo de funcionamento da nossa mente, depende como se desenrola a nossa vida. A mente é o melhor e o pior que o homem possui: ou melhor, quando está controlada, quando foi afinada e depurada; o pior, quando extravasa os seus devidos limites e se agita desavergonhadamente, sem controlo nem freio algum. Há que submeter e purificar a mente para que se torne flexível, transparente e permeável à influência do espírito. Então funcionará de maneira correta, convertendo-se num espelho que reflete a luz da Mente divina. Na realidade, o adestramento e fortalecimento do corpo vão cooperar com este labor de catarse mental tal como expressa o velho adágio latino mens sana in corpore sano.


21.   Consciência da Presença Divina

Há que recordar sem cessar, ter viva na mente, como uma prova da mais palpitante evidência, a ideia de que a Divindade se encontra presente no centro do nosso ser e no mundo em que vivemos, em tudo quanto nos rodeia. O Absoluto não é algo estranho e distante, mas uma realidade omnipresente; presente no universo inteiro e no mais íntimo de nós mesmos.

Ter a consciência da Presença divina significa ser consciente de que Deus é a própria raiz da nossa vida, que sem ele nada podemos e que a Ele pertence tudo o que somos, o que temos e o que fazemos. Conservar sempre vivo no nosso espírito a recordação de Deus e invocar a todo o instante o seu Nome. Viver com a convicção de que o Ser supremos está mais cerca de nós que nós mesmos e que a Força divina é o que atua em, por e através de nós. Ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. Sentir a Divindade em todas as partes e em todo o momento; pois não há nada que se encontre fora do Espírito, não sendo a existência senão a manifestação da Realidade absoluta, a expressão da Verdade última (a Deidade, o Tao, o Brahman, la Budeidade ou a Natureza-Buddha, segunda a designação que recebe o Princípio supremo nas diversas tradições).

     A repetição contínua do Nome divino (o dhikr islâmico, o japa hindu, o nembutsu budista, a ‘oração de Jesus’ ou a invocação do Sagrado Coração cristãs) é o método empregue em todas as tradições para permitir que o indivíduo se concentre na Presença inefável e mantenha viva a recordação do Eterno. O completo edifício tradicional, com a forma de vida correspondente, descansa nesta recordação que nos devolve a memória do que somos e que nos remete à Origem e ao Fim da nossa vida, indicando-nos de onde vimos e para onde vamos.

Saturday, February 10, 2018

Guénon e o Fim dos Tempos: O Fim de Um Mundo


Os vários assuntos tratados no curso deste estudo constituem o que no todo podem ser, de modo geral, apelidados de ‘sinais dos tempos’ no sentido dos Evangelhos, por outras palavras, os sinais precursores do ‘fim de um mundo’ ou de um ciclo. Este fim apenas parece ser o ‘fim do mundo’, sem qualquer reserva ou especificação de qualquer tipo, para aqueles que não veem nada para além dos limites deste ciclo específico; um erro muito desculpável, é verdade, mas um que no entanto tem consequências lastimáveis nos terrores excessivos e injustificados a que dá azo naqueles que não se encontram suficientemente desligados da existência terrestre; e naturalmente são tais as mesmas pessoas que mais facilmente formam esta conceção errónea, apenas por razão da estreiteza do seu ponto de vista. Na verdade podem existir muitos ‘fins do mundo’, porque existem ciclos de muita variada duração, contidos uns nos outros, e também porque esta mesma noção pode ser sempre aplicada analogicamente em todos os graus e em todos os níveis; mas é óbvio que estes ‘fins’ contêm uma importância desigual, como também os próprios ciclos aos quais pertencem; e nesta conexão deve ser reconhecido que o fim agora em consideração é inegavelmente de considerável maior importância que muitos outros, pois é o fim de um Manvantara completo, e portanto da existência temporal do que justamente pode ser chamado de uma humanidade, mas isto, seja dito uma vez mais, de modo algum implica que signifique o fim do próprio mundo terrestre, porque, através da ‘retificação’ que tomará lugar no instante final, este fim tornar-se-á imediatamente o início de outro Manvantara.

Enquanto nesta matéria, existe ainda um ponto adicional que necessita ser explicado mais precisamente: os partidários do ‘progresso’ têm o hábito de dizer que a ‘idade de ouro’ não se encontra no passado mas no futuro; no entanto, a verdade é que no que respeita ao nosso Manvantara ela encontra-se no passado, pois não é outra coisa que não o próprio ‘estado primordial’. Existe no entanto um pressentimento de que ela se encontra tanto no passado como no futuro, mas apenas na condição de que a atenção não se confine ao atual Manvantara mas seja estendida a incluir a sucessão de ciclos terrestres, pois no que respeita ao futuro tudo menos a ‘idade de ouro’ de outro Manvantara pode ser colocado em questão; está portanto separada do nosso período por uma ‘barreira’ completamente intransponível aos profanos que dizem tal tipo de coisa, e não possuem qualquer tipo de ideia do que falam quando anunciam a aproximação de uma ‘nova era’ como sendo uma a que a atual humanidade esteja ligada. O seu erro, na sua forma mais extremada, será o do próprio Anticristo quando ele reclama trazer à existência uma nova ‘idade de ouro’ através do reinado da ‘contra-tradição’, e quando ele lhe dá uma aparência de autenticidade, puramente traiçoeira e efémera, por meio de uma contrafação da ideia tradicional do Sanctum Regnum; isto torna claro a razão do acima mencionado papel desempenhado pelas conceções ‘evolucionistas’ em todas as ‘pseudo-tradições’, e apesar destas ‘pseudo-tradições’ ainda serem ‘prefigurações’ muitos parciais e débeis da ‘contra-tradição’, no entanto elas estão sem dúvida a contribuir inconscientemente mais diretamente que alguma outra coisa para os preparativos da sua chegada. A ‘barreira’ recentemente aludida, que num sentido compele aqueles para a qual existe a confinarem-se inteiramente ao interior do presente ciclo, é claramente um obstáculo ainda mais insuperável para os representantes da ‘contra-iniciação’ do que é para aqueles para quem nada existe fora do presente ciclo, e será portanto especialmente para eles que o fim do ciclo tem necessariamente de ser o ‘fim do mundo’ no sentido mais completo que a expressão pode conter.

Isto levanta outra questão relacionada, sobre a qual algumas palavras devem ser ditas, apesar de na verdade uma resposta já estar implicitamente contida em algumas considerações previamente abordadas, isto é: em que medida estão as pessoas que mais completamente representam a ‘contra-iniciação’ efetivamente conscientes do papel que estão a desempenhar, e em que medida são elas por outro lado meros instrumentos de uma vontade que ultrapassa a sua própria, e portanto delas está escondida, apesar de estarem inexoravelmente subordinadas a ela? De acordo com o que acima foi dito, os limites entre os dois pontos de vista sobre os quais a sua ação pode ser concebida são determinados essencialmente pelos limites do mundo espiritual, o qual não conseguem penetrar de modo algum; poderão possuir um conhecimento tão extensivo quanto possível das possibilidades do ‘mundo intermédio’, mas este conhecimento será sempre, no entanto, irremediavelmente falsificado pela ausência do espírito, que só ele lhe pode fornecer verdadeira significação. Obviamente tais seres nunca podem ser mecanicistas ou materialistas, nem mesmo partidários do ‘progresso’ ou ‘evolucionistas’ no sentido comum dos termos, e quando eles promulgam no mundo as ideias que estas palavras expressam, estão a praticar uma fraude consciente; mas estas ideias referem-se apenas à ‘anti-tradição’ meramente negativa, que para eles é apenas um meio e não um fim, e eles podiam, como toda a gente, procurar desculpar a sua fraude dizendo que ‘o fim justifica os meios’. Este erro é de uma ordem muito mais profunda que o dos homens que eles influenciam e aos quais aplicam ‘sugestões’ por via dessas ideias, pois não surge de outro modo que não da consequência da sua total e invencível ignorância acerca da verdadeira natureza de toda a espiritualidade; isto torna muito mais difícil dizer exatamente até que ponto eles podem estar conscientes da falsidade da ‘contra-tradição’ que buscam estabelecer, pois eles podem verdadeiramente acreditar que, assim o fazendo, estão a opor o espírito manifestado em toda a tradição normal e regular, e estão situados ao mesmo nível dos que a representam neste mundo; e neste sentido o Anticristo seguramente tem de ser o mais ‘iludido’ de todos os seres. Esta ilusão tem a sua raiz no erro ‘dualista’ já mencionado; dualismo é encontrado de uma forma ou de outra em todos os seres cujo horizonte não se estende para lá de certos limites mesmo se os limites são aqueles do inteiro mundo manifestado; tais pessoas não conseguem resolver a dualidade que veem em todas as coisas que jazem nesses limites referindo-a a um princípio superior, e portanto pensam que é realmente irredutível e são por tanto levados a uma negação da Unidade Suprema, que de facto é para eles como se não existisse. Por esta razão foi possível dizer que os representantes da ‘contra-iniciação’ são no fim contas meros joguetes do papel que eles mesmos desempenham, e que a sua ilusão é na verdade a maior ilusão de todas, já que é positivamente a única onde um ser pode, não apenas ser seriamente mais ou menos desviado, mas na verdade tornar-se irremediavelmente perdido; no entanto, se eles não se encontrassem tão iludidos, claramente não estariam a desempenhar uma função que tem de ser desempenhada, como qualquer outra função, para que o plano Divino possa ser realizado neste mundo.

Isto leva-nos de volta à consideração do duplo aspeto, benéfico ou ‘maléfico, de toda a história do mundo, vista como um ciclo de manifestação; e esta é na verdade a ‘chave’ para todas as explicações tradicionais das condições sob as quais esta manifestação é desenvolvida, especialmente quando está a ser considerada, como agora, no período que a levará diretamente ao seu fim. Por um lado, se esta manifestação é simplesmente tomada em si mesma, sem a referir a um todo muito maior, o processo inteiro desde o seu início até ao seu fim é claramente um de progressiva ‘descida’ ou de ‘degradação’, e isto é o que pode ser apelidado como o seu aspeto ‘maléfico’; mas, por outro lado, a mesma manifestação, quando colocada de volta no todo de que é uma parte, produz efeitos que têm um resultado verdadeiramente ‘positivo’ na existência universal; e o seu desenvolvimento deve ser levado a cabo até ao fim, para incluir um desenvolvimento das possibilidades inferiores da ‘idade escura’, de modo a que a ‘integração’ desses resultados se torne possível e se possa tornar o princípio imediato de outro ciclo de manifestação; isto é o que constitui o aspeto ‘benéfico’. O mesmo aplica-se quando o próprio fim de ciclo é considerado: do ponto de vista especial do que tem então de ser destruído porque a sua manifestação terminou e se encontra como exausto, o fim é naturalmente ‘catastrófico’ no sentido etimológico, no qual o mundo evoca a ideia de uma ‘queda’ súbita e irreparável; mas, por outro lado, do ponto de vista de acordo com o qual a manifestação, ao desaparecer como tal, é trazida de volta ao seu princípio no que concerne a tudo o que é positivo na sua existência, este mesmo fim aparece pelo contrário como a ‘retificação’ de onde, como explicado, todas as coisas são subitamente restabelecidas no seu ‘estado primordial’. Além disso isto pode ser analogicamente aplicado em todos os graus, seja um ser ou um mundo em questão: em resumo, é sempre o ponto de vista parcial que é ‘maléfico’, e o ponto de vista que é total, ou relativamente total com respeito ao outro, que é ‘benéfico’, porque todas as desordens possíveis apenas são desordens quando consideradas em si mesmas e ‘separativamente’, e porque estas desordens parciais são eliminadas completamente na presença da ordem total na qual são ultimamente fundidas, constituindo, quando despidas do seu aspeto ‘negativo’, elementos dessa ordem comparáveis a todos ou outros; não existe de facto nada que seja ‘maléfico’ exceto as limitações que necessariamente condicionam toda a existência contingente. Os dois pontos de vista, respetivamente ‘benéfico’ e ‘maléfico’, foram previamente abordados como se fossem de algum modo simétricos; mas é fácil entender que eles não são nada dessa espécie, e que o segundo apenas significa algo que é instável e transitório, já que apenas o que o primeiro representa tem um caráter permanente e positivo, para que o aspeto ‘benéfico’ possa senão prevalecer no final, enquanto o aspeto ‘maléfico’ completamente desvanece porque na realidade era apenas uma ilusão inerente na ‘separatividade’. No entanto, a verdade é que então não se torna mais apropriado usar a palavra ‘benéfico’ do que a palavra ‘maléfico’, pois os dois termos são essencialmente correlativos e não podem ser usados corretamente para indicar uma oposição quando ela não mais existe, pois ela pertence, como todas as oposições, exclusivamente a um particular domínio relativo e limitado; logo que os limites desse domínio são ultrapassados, existe apenas aquilo que é, e que não pode senão ser, ou ser outra coisa do que é; e como consequência, se não se parar antes da mais profunda ordem de realidade, pode ser dito em toda a verdade que ‘o fim de um mundo’ nunca é e nunca pode ser outra coisa que não o fim de uma ilusão.

Wakinyan-Tanka - O Simbolismo da Águia Entre os Peles Vermelhas

Com a devida vénia, deixamos traduzido o ensaio de António Medrano, originalmente publicado na já defunta publicação tradicionalista ...