Friday, October 27, 2017

A Cidade Antiga - A Veneração dos Mortos

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Em baixo deixamos a tradução do segundo capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘A Veneração dos Mortos’.

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Esta crença muito cedo deu nascimento a certas regras de conduta. Já que os mortos tinham necessidade de comida e bebida, aparecia como dever dos vivos o de satisfazer esta necessidade. O cuidado de prover os mortos com sustento não era deixado ao capricho ou às variações dos sentimentos dos homens; era obrigatória. Daí a completa religião dos mortos foi estabelecida, cujos dogmas puderam em breve ser obscurecidos, mas cujos ritos duraram até ao triunfo do Cristianismo. Os mortos eram levados em conta como seres sagrados. Para eles os antigos aplicavam os mais respeitosos epítetos que podiam pensar; chamavam-nos de bons, sagrados, felizes. Para eles tinham toda a veneração que o homem pode ter pelo divino que ama ou teme. Nos seus pensamentos os mortos eram deuses.

Este tipo de apoteose não era o privilégio dos grandes homens; nenhuma distinção era feita entre os mortos. Cícero diz: “Os nossos antepassados desejavam que os homens que tinham deixado a vida deviam ser contados no número dos deuses.” Não era necessário ter sido inclusive um homem virtuoso: o homem perverso, assim como o homem bondoso, tornava-se um deus; mas ele mantinha na segunda vida todas as más inclinações que o tinham atormentado na primeira.

Os gregos davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Ésquilo, o filho assim invocava o pai falecido: “Ò Vós que sois um deus debaixo da terra.” Eurípedes diz, falando de Alcésio: “Perto da sua tumba um passante para e diz, ‘Esta é agora três vezes uma divindade feliz.’”

Os romanos davam aos mortos o nome de Manes. “Prestem aos names o que lhes é devido.”, diz Cícero; “eles são homens que deixaram a vida; considerem-nos como seres divinos.” Os túmulos eram os templos destas divindades, e elas continham as inscrições sacramentais, Dis Manibus, e em grego, theõis ethoníois. Aí o deus vivia debaixo do solo, manesque sepulti, diz Virgílio. Antes do túmulo existia um altar para os sacrifícios, como antes os templos dos deuses.

Encontramos esta adoração dos mortos entre os helenos, entre os latinos, entre os sabinos, entre os etruscos e ainda a encontramos entre os arianos da Índia. Tal menção é feita nos hinos do Rigveda. É do mesmo falado nas Leis de Manu como a mais antiga adoração existente entre os homens. Vemos neste livro que a ideia de metempsicose [transmutação das almas] já se tinha sobreposto sobre esta crença ancestral, mesmo antes da religião de Brahma ter sido estabelecida; e mesmo sob a adoração de Brahma, sob a doutrina de metempsicose, a religião das almas dos antepassados ainda subsiste, viva e indestrutível, e compele o autor das Leis de Manu a tomá-la em conta e a admitir as suas regras no livro sagrado. A não menos singular coisa sobre este livro estranho é a de ter preservado as regras relativas a esta crença antiga, enquanto foi evidentemente preparado numa era quando uma crença inteiramente diferente tinha já ganho ascendência. Isto prova que muito tempo é necessário para transformar uma crença humana, e ainda mais para modificar as suas formas externas, e as leis nela baseadas. No dia presente, inclusive, depois de tantos ciclos de revolução, os hindus continuam a fazer oferendas aos seus antepassados. Esta crença e estes ritos são os mais antigos e os mais persistentes de qualquer coisa relacionada com a raça indo-europeia. Esta adoração era a mesma na Índia, na Grécia e em Itália. O hindu tinha de fornecer os nomes com o repasto, que era chamado de sraddha. “Que o chefe da casa faça a sraddha com arroz, leite, raízes e frutos, em ordem para procurar para si a boa-vontade dos manes.”

A crença hindu acreditava que o momento em que este repasto funerário era oferecido, os manes dos seus antepassados se sentavam ao seu lado e tomavam o alimento que lhes era oferecido. Ela também acreditava que este repasto providenciava ao morto uma grande satisfação. “Quando o sraddha é feito de acordo com os ritos, os antepassados daquele que o oferece experimenta uma satisfação sem limites.”

Assim os arianos do Leste tinham, de início, a mesma noção daqueles do Ocidente, relativa ao destino do homem depois da morte. Antes de acreditarem na metempsicose, que pressupõe uma absoluta distinção entre a alma e o corpo, eles acreditavam na vaga e na indefinida existência do homem, invisível, mas imaterial, e requeriam dos mortais alimento e oferendas.

O hindu, como o grego, considerava os mortos como seres divinos, que disfrutavam de uma existência feliz; mas a sua felicidade dependia da condição de que as oferendas feitas pelos vivos fosse levada a cabo regularmente. Se o sraddha para uma pessoa falecida não fosse executado regularmente, a sua alma deixava a habitação pacífica e tornava-se um espírito errante, que atormentava os vivos; portanto, se os mortos eram de facto deuses, isto era apenas enquanto os vivos os honravam com a sua adoração.

Os gregos e os romanos tinham exatamente a mesma crença. Se o repasto funerário deixasse de ser oferecido aos mortos, eles imediatamente abandonavam os seus túmulos e tornavam-se sombras errantes, que eram escutadas no silêncio da noite. Elas admoestavam os vivos com a sua negligência; ou procuravam castiga-los infligindo-os com doenças, ou amaldiçoando os seus solos com esterilidade. O sacrifício, a oferenda de alimento e a libação restaurava-os ao túmulo, e devolvia-lhes o seu descanso e os seus atributos divinos. O homem estava então em paz com eles.

Se um morto, tendo sido negligenciado, tornava-se um espírito maligno; um que era homenageado, por outro lado, tornava-se uma divindade protetora. Ele amava aqueles que o alimentavam. Para os proteger ele continuava a tomar parte dos assuntos humanos e frequentemente tinha aí um papel importante. Apesar de morto, ele sabia ser forte e ativo. Os vivos a ele oravam e pediam o seu apoio e os seus favores. Quando alguém vinha perto do seu túmulo, parava e dizia: “Deus subterrâneo, que me sejas propício!”

Podemos julgar o poder que os antigos atribuíam a esta divindade pela sua prece, que Electra endereça aos manes de seu pai: “Tome piedade de mim, e do meu irmão Orestes; façam-no voltar a este país; ouça a minha prece, Ò meu Pai; granjeie os meus desejos, recebendo as minhas libações.” Estes poderosos deuses não davam apenas ajuda material, pois Electra acrescenta, “Dê-me um coração mais casto que o da minha mãe e mãos mais puras.” Assim o hindu pede do manes “que nesta família o número dos homens deuses aumente e que ele tenha muito para dar.”

Estas almas humanas deificadas pela morte eram o que os gregos chamavam demónios ou heróis. Os latinos davam-lhes os nomes de Lares, Manes ou Genii. “Os nossos antepassados acreditavam,” diz Apúlio, “que os Manes, quando eram malignos, eram chamados de larvae; chamavam-nos de Lares quando eram benevolentes e propícios. ” Noutro lado lemos, “Genius e Lares são a mesma coisa, assim acreditavam os nossos antepassados.” E em Cícero, “Aqueles que os gregos chamavam de demónios, nós chamamos Lares.”


Esta religião dos mortos parece ser a mais antiga que existiu entre esta raça de homens. Antes do homem ter qualquer noção de Indra ou de Zeus, eles adoravam os mortos; eles temiam-nos e dirigiam-lhes as suas preces. Parece que o sentimento religioso se iniciou deste modo. Foi talvez enquanto olhava em direção aos mortos que o homem primeiro concebeu a ideia do sobrenatural e começou a ter esperanças para além do que via. A morte foi o primeiro mistério, e colocou o homem no caminho de outros mistérios. Levantou os seus pensamentos do visível ao invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino.

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