Em baixo
deixamos a tradução do segundo capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de
Coulanges, intitulado, ‘A Veneração dos Mortos’.
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Esta crença muito cedo deu nascimento a certas regras de conduta. Já que os mortos tinham necessidade de comida e bebida, aparecia como dever dos vivos o de satisfazer esta necessidade. O cuidado de prover os mortos com sustento não era deixado ao capricho ou às variações dos sentimentos dos homens; era obrigatória. Daí a completa religião dos mortos foi estabelecida, cujos dogmas puderam em breve ser obscurecidos, mas cujos ritos duraram até ao triunfo do Cristianismo. Os mortos eram levados em conta como seres sagrados. Para eles os antigos aplicavam os mais respeitosos epítetos que podiam pensar; chamavam-nos de bons, sagrados, felizes. Para eles tinham toda a veneração que o homem pode ter pelo divino que ama ou teme. Nos seus pensamentos os mortos eram deuses.
Este tipo de apoteose não era o privilégio dos
grandes homens; nenhuma distinção era feita entre os mortos. Cícero diz: “Os
nossos antepassados desejavam que os homens que tinham deixado a vida deviam
ser contados no número dos deuses.” Não era necessário ter sido inclusive um
homem virtuoso: o homem perverso, assim como o homem bondoso, tornava-se um
deus; mas ele mantinha na segunda vida todas as más inclinações que o tinham
atormentado na primeira.
Os gregos davam aos mortos o nome de deuses
subterrâneos. Em Ésquilo, o filho assim invocava o pai falecido: “Ò Vós que
sois um deus debaixo da terra.” Eurípedes diz, falando de Alcésio: “Perto da
sua tumba um passante para e diz, ‘Esta é agora três vezes uma divindade
feliz.’”
Os romanos davam aos mortos o nome de Manes.
“Prestem aos names o que lhes é
devido.”, diz Cícero; “eles são homens que deixaram a vida; considerem-nos como
seres divinos.” Os túmulos eram os templos destas divindades, e elas continham
as inscrições sacramentais, Dis Manibus, e
em grego, theõis ethoníois. Aí o deus
vivia debaixo do solo, manesque sepulti, diz
Virgílio. Antes do túmulo existia um altar para os sacrifícios, como antes os
templos dos deuses.
Encontramos esta adoração dos mortos entre os
helenos, entre os latinos, entre os sabinos, entre os etruscos e ainda a
encontramos entre os arianos da Índia. Tal menção é feita nos hinos do Rigveda.
É do mesmo falado nas Leis de Manu como a mais antiga adoração existente entre
os homens. Vemos neste livro que a ideia de metempsicose [transmutação das
almas] já se tinha sobreposto sobre esta crença ancestral, mesmo antes da
religião de Brahma ter sido estabelecida; e mesmo sob a adoração de Brahma, sob
a doutrina de metempsicose, a religião das almas dos antepassados ainda
subsiste, viva e indestrutível, e compele o autor das Leis de Manu a tomá-la em
conta e a admitir as suas regras no livro sagrado. A não menos singular coisa
sobre este livro estranho é a de ter preservado as regras relativas a esta
crença antiga, enquanto foi evidentemente preparado numa era quando uma crença
inteiramente diferente tinha já ganho ascendência. Isto prova que muito tempo é
necessário para transformar uma crença humana, e ainda mais para modificar as
suas formas externas, e as leis nela baseadas. No dia presente, inclusive, depois
de tantos ciclos de revolução, os hindus continuam a fazer oferendas aos seus
antepassados. Esta crença e estes ritos são os mais antigos e os mais
persistentes de qualquer coisa relacionada com a raça indo-europeia. Esta
adoração era a mesma na Índia, na Grécia e em Itália. O hindu tinha de fornecer
os nomes com o repasto, que era chamado de sraddha.
“Que o chefe da casa faça a sraddha com arroz, leite, raízes e frutos, em
ordem para procurar para si a boa-vontade dos manes.”
A crença hindu acreditava que o momento em que este
repasto funerário era oferecido, os manes dos seus antepassados se sentavam ao
seu lado e tomavam o alimento que lhes era oferecido. Ela também acreditava que
este repasto providenciava ao morto uma grande satisfação. “Quando o sraddha é
feito de acordo com os ritos, os antepassados daquele que o oferece experimenta
uma satisfação sem limites.”
Assim os arianos do Leste tinham, de início, a
mesma noção daqueles do Ocidente, relativa ao destino do homem depois da morte.
Antes de acreditarem na metempsicose, que pressupõe uma absoluta distinção
entre a alma e o corpo, eles acreditavam na vaga e na indefinida existência do
homem, invisível, mas imaterial, e requeriam dos mortais alimento e oferendas.
O hindu, como o grego, considerava os mortos como
seres divinos, que disfrutavam de uma existência feliz; mas a sua felicidade
dependia da condição de que as oferendas feitas pelos vivos fosse levada a cabo
regularmente. Se o sraddha para uma pessoa falecida não fosse executado
regularmente, a sua alma deixava a habitação pacífica e tornava-se um espírito
errante, que atormentava os vivos; portanto, se os mortos eram de facto deuses,
isto era apenas enquanto os vivos os honravam com a sua adoração.
Os gregos e os romanos tinham exatamente a mesma
crença. Se o repasto funerário deixasse de ser oferecido aos mortos, eles
imediatamente abandonavam os seus túmulos e tornavam-se sombras errantes, que
eram escutadas no silêncio da noite. Elas admoestavam os vivos com a sua
negligência; ou procuravam castiga-los infligindo-os com doenças, ou amaldiçoando
os seus solos com esterilidade. O sacrifício, a oferenda de alimento e a
libação restaurava-os ao túmulo, e devolvia-lhes o seu descanso e os seus
atributos divinos. O homem estava então em paz com eles.
Se um morto, tendo sido negligenciado, tornava-se
um espírito maligno; um que era homenageado, por outro lado, tornava-se uma
divindade protetora. Ele amava aqueles que o alimentavam. Para os proteger ele
continuava a tomar parte dos assuntos humanos e frequentemente tinha aí um
papel importante. Apesar de morto, ele sabia ser forte e ativo. Os vivos a ele
oravam e pediam o seu apoio e os seus favores. Quando alguém vinha perto do seu
túmulo, parava e dizia: “Deus subterrâneo, que me sejas propício!”
Podemos julgar o poder que os antigos atribuíam a
esta divindade pela sua prece, que Electra endereça aos manes de seu pai: “Tome
piedade de mim, e do meu irmão Orestes; façam-no voltar a este país; ouça a
minha prece, Ò meu Pai; granjeie os meus desejos, recebendo as minhas
libações.” Estes poderosos deuses não davam apenas ajuda material, pois Electra
acrescenta, “Dê-me um coração mais casto que o da minha mãe e mãos mais puras.”
Assim o hindu pede do manes “que
nesta família o número dos homens deuses aumente e que ele tenha muito para
dar.”
Estas almas humanas deificadas pela morte eram o
que os gregos chamavam demónios ou heróis. Os latinos davam-lhes os nomes de Lares,
Manes ou Genii. “Os nossos antepassados acreditavam,” diz Apúlio, “que os
Manes, quando eram malignos, eram chamados de larvae; chamavam-nos de Lares
quando eram benevolentes e propícios. ” Noutro lado lemos, “Genius e Lares são
a mesma coisa, assim acreditavam os nossos antepassados.” E em Cícero, “Aqueles
que os gregos chamavam de demónios, nós chamamos Lares.”
Esta religião dos mortos parece ser a mais antiga
que existiu entre esta raça de homens. Antes do homem ter qualquer noção de
Indra ou de Zeus, eles adoravam os mortos; eles temiam-nos e dirigiam-lhes as
suas preces. Parece que o sentimento religioso se iniciou deste modo. Foi
talvez enquanto olhava em direção aos mortos que o homem primeiro concebeu a
ideia do sobrenatural e começou a ter esperanças para além do que via. A morte
foi o primeiro mistério, e colocou o homem no caminho de outros mistérios. Levantou
os seus pensamentos do visível ao invisível, do transitório para o eterno, do
humano para o divino.
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