Muito prazer
nos deu ter a oportunidade de voltar a traduzir do inglês um texto do Mestre da
Tradição Frithjof Schuon, intitulado ’A Mente Simbolista’, o qual foi
originalmente publicado em francês na edição de Junho da revista ‘Études
Traditionnelles’, em 1957.
Sendo um
pequeno artigo – recomendamos aos leitores demorarem-se também nas chamadas de
página, que contém precisões iluminadoras – toca em alguns aspetos da
mundivisão espiritual antiga, da qual apenas possuímos vestígios no Mundo
Ocidental, já que a sua vivência – e respetiva compreensão – há muito que
desapareceu, pelo menos nas vias exotéricas.
Parece-nos
iluminador que o autor, no último parágrafo, sugira que a atual separação do
Cosmos entre o Sagrado e o Profano, o Céu e a Terra, a Carne e o Espírito, que
impera na mente do Homem atual – e que é sem surpresa refletida no entendimento
mais formalista, racionalista e legalista das religiosidades surgidas durante o
Kali-Yuga – poder ser ultrapassado por via de um vivência e compreensão mais
subtil da Natureza, e inclusive por uma interpretação mais hábil dos textos
sagrados bíblicos e corânicos acerca da relação do Homem com a mesma. Mesmo que tal
não seja um guia viável para a sociedade como um todo, poderá constituir um
raio de luz para aquele que se julga diferenciado.
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‘Quando o homem inferior ouve falar
do Tao, dele ri-se; não seria o Tao se dele não se risse.’
(Lao Tzu)
De acordo com um erro muito prevalente – um que,
inclusive, se torna mais ou menos ‘oficial’ na senda do evolucionismo – todos
os símbolos tradicionais eram originalmente entendidos num sentido estritamente
literal, e o simbolismo propriamente dito apenas se desenvolveu como resultado
de um ‘despertar intelectual’ posterior ou de um ‘refinamento progressivo’ da
mente. Esta é uma opinião que inverte completamente as normais relações das
coisas, como o fazem todas as hipóteses análogas emergentes de um contexto evolucionista.
Na verdade, o que mais tarde surge como um significado supra-adicionado já se
encontrava presente implicitamente, pelo que a ‘intelectualização’ dos símbolos
é o resultado, não de um progresso intelectual, mas pelo contrário de uma
perda, pela maioria, da inteligência primordial; é então à conta de um
entendimento crescentemente defeituoso dos símbolos e em ordem a repelir o
perigo da ‘idolatria’, e não de modo algum para escapar de uma idolatria supostamente
preexistente, mas de facto inexistente, que a tradição se viu obrigada – em
determinado ‘momento cíclico’ e, para o bem da forma, derivando inspiração, se
necessário, de doutrinas estrangeiras – a explicar verbalmente símbolos que na
origem – na ‘Idade Divina’ – se encontravam em si mesmos perfeitamente aptos a
transmitir verdades metafísicas.
Este erro de acreditar que na origem tudo era
‘material’ ou ‘grosseiro’ – incorretamente cunhado de ‘concreto’ – levou inclusivamente
alguns a negar a todo o custo que povos ‘primitivos’, particularmente os índios
norte americanos, tenham a ideia de um Deus Supremo, e frequentemente têm
procurado fazê-lo com recurso a argumentos que provam exatamente o contrário; o
que incompreensões deste género revelam mais que nada – apesar de tal ser
evidente em si mesmo – é que a ‘especialização’ científica isolada – o
conhecimento de formas cranianas, línguas, ritos de puberdade, métodos
culinários e por aí adiante – não resulta na qualificação intelectual que possibilita
poder penetrar ideias e símbolos. Um exemplo entre muitos outros: porque as
ideias dos índios norte-americanos não são compreendidas – na ausência das
chaves indispensáveis, que são uma parte da ciência, no mínimo – estas ideias
são consideradas ‘vagas’; ou é dito que o ‘Mistério’ do índio não é um
‘Espírito’ – ‘o qual o homem primitivo é incapaz de conceber, exceto graças ao
conceito e à pesquisa do homem branco’1 – sem nos dizerem nem o que
é significado por ‘Espírito’, ou porque o ‘Mistério’ em questão não o é. Que
possível importância pode o ‘conceito do homem branco’ ter para o índio, e como
podem os etnólogos saber o que o índio pensa para além da ‘investigação do
homem branco’? As ideias índias são criticadas pelo seu caráter ‘proteano’, que
é considerado incompatível com a ‘mais diferenciada linguagem da civilização.’2
Como se a terminologia – ou o jargão especializado – do homem branco
fosse um critério de verdade ou de valor intelectual, e como se, para o índio,
o que estivesse em causa fossem meras palavras, e não verdades ou experiências!3
A ideia de que, graças a um ‘despertar intelectual’
devido à ‘evolução’, os homens finalmente compreenderam a ‘vulgaridade’ da sua
tradição e que em ordem a tal remediar, eles ingenuamente inventaram
explicações que tendem, arbitrariamente, a emprestar às imagens uma significação
superior – tal ideia corre não apenas contra a verdade intrínseca do simbolismo
em causa, mas também ao que é psicologicamente possível: pois se a elite
intelectual, ou a sensibilidade coletiva, finalmente se apercebeu da
‘vulgaridade’ – e portanto da falsidade4 – dos mitos, a reação
normal teria sido a de substitui-los por algo melhor ou mais ‘refinado’, mas
tal explicação nunca teve lugar em parte alguma. A manutenção da tradição
apenas pode ser explicada pelo seu próprio valor imutável, isto é dizer, pelo
elemento de ‘incondicionalismo’ que por definição a abrange e que a torna inalterável
na sua forma essencial; acreditar que os homens estivessem dispostos a manter a
sua tradição por outras razões é um dos erros mais absurdos e até mais
impertinentes, porque é de facto subestimar a espécie humana. Nem aceitamos a
hipótese do pensamento ‘pré-lógico’5 porque aqui de novo é uma
questão de pensamento simbolista, o qual, sem nunca ser ilógico, é antes
supra-lógico pois transcende os limites da razão, e portanto os das construções
mentais, das dúvidas, das conclusões, das hipóteses.6
* * *
Seria tremendamente erróneo acreditar que a mente
simbolista consiste em selecionar do mundo exterior imagens para nas quais sobrepor
significados mais ou menos forçados; isto seria um passatempo incompatível com
a sabedoria; pelo contrário, a visão simbolista do cosmos é uma perspetiva
espontânea a priori que se baseia na
natureza essencial – ou na transparência metafísica – dos fenómenos, em vez de desligá-los
dos seus protótipos. O homem de formação racionalista, cuja mente como tal se
encontra ancorada no material, parte da experiência e vê as coisas no seu
isolamento existencial: a água é para ele – quando a considera isolada da
poesia – uma substância composta por oxigénio e hidrogénio, à qual uma
significação alegórica pode ser atribuída se assim o desejar, mas sem existir
uma conexão ontológica necessária entre a coisa material e a ideia com ela
associada; a mente simbolista, pelo contrário, é intuitiva num sentido
superior, tendo o raciocínio e a experiência para ela apenas a função de uma
causa ocasional e não a de uma fundação. A mente simbolista vê as aparências na
sua ligação com as essências: no seu modo de visão, a água é primariamente a
aparência sensível de uma realidade-princípio, uma kami (japonês) ou uma manitu (algonquino)
ou uma wakan (sioux);7
isto significa que vê as coisas, não apenas ‘superficialmente’, mas acima de
tudo ‘em profundidade’, ou que as apercebe na sua dimensão ‘participativa’ ou
‘unitiva’, bem como na sua dimensão ‘separativa’. Quando um qualquer
etnologista declara que ‘não existe manitu
fora do mundo das aparências’, tal apenas significa que ele desconhece que para
a mente simbolista as aparências não existem inteiramente por si mesmas; ele
portanto desconhece o essencial e perde o seu tempo a preocupar-se com
símbolos. Ademais, este falso ‘concretismo’ – ou esta tendência de reduzir o
simbolismo, não importa o quão improvável, a um tipo de sensualismo bruto e
ininteligível, na verdade uma espécie de existencialismo avant la lettre – longe de se tornar próximo da Natureza ou das origens,
é de facto uma reação típica do homem ‘civilizado’ – no sentido banal e absurdo
do termo; é a reação de um cérebro supersaturado de construções artificiais e
de sofismos.8
E tal é importante: por um lado, não afirmamos que
o simbolista pensa ‘princípio’ ou ‘ideia’ quando ele vê água, fogo ou algum
outro fenómeno da Natureza; é simplesmente um nosso modo de fazer o leitor
entender o que o simbolista ‘vê’, na medida em que ‘ver’ e ‘pensar’ são para
ele sinónimos;9 por outro lado, não mantemos que todo o indivíduo
pertencente a uma coletividade de mentalidade simbolista ou contemplativa se
encontra totalmente consciente de tudo o que os símbolos significam, de outro
modo o simbolismo espontâneo não constituiria a prerrogativa de períodos que
podem ser qualificados de ‘primordiais’, e comentários posteriores não teriam razão
de ser; a existência destes comentários prova precisamente um certo enfraquecimento
por comparação com a ‘Idade de Ouro’, razão da necessidade de uma doutrina mais
explícita capaz de eliminar todo o tipo de erros latentes. Pois a mentalidade
simbolista, como tudo o que possui caráter coletivo, não se encontra imune a
decadência: na consciência de uma dado indivíduo ou grupo pode degenerar numa
espécie de ‘idolatria10”; mas então cessa de ser simbolista e
torna-se outra coisa. A censura feita aos índios norte-americanos e aos
xintoístas de possuírem uma atitude idólatra e zoolátrica significa no
essencial em atribuir-lhes uma mentalidade anti-simbolista, o que é contrário à
realidade dos factos; para o índio, o bisonte é uma ‘divindade’ – ou uma
‘função divina’ – mas o próprio facto de caçar prova que claramente distingue
entre a entidade ‘real e a forma ‘acidental’ ou ‘ilusória’.11 Mesmo
supondo que no caso de um específico simbolista existe um elemento de
‘panteísmo’, o seu erro não seria maior que o do ‘monoteísta’ para o qual as
coisas não são mais que elas próprias, e para o qual o simbolismo é meramente
uma alegoria posteriormente acrescentada; a verdadeira questão é a de saber
qual dos dois erros é o mais oportuno ou o menos nocivo para uma dada
mentalidade; consequentemente podemos até ir ao ponto de afirmar que uma
atitude idólatra da parte de um hindu ou de um extremo-oriental não terá o
mesmo significado psicológico como se viesse da parte de uma semita ou de um europeu.
O homem primordial vê o ‘maior’ no ‘menor’: o mundo
da Natureza, na verdade, reflete o Céu, e transmite, numa linguagem existencial,
uma mensagem divina que é ao mesmo tempo múltipla e única. O resultado moral
desta perspetiva do cosmos ‘translúcido’ é uma atitude respeitadora e até
devocional para com a Natureza virgem, este santuário – a chave do qual foi
perdida pelo Ocidente desde o desaparecimento das mitologias - que fortifica e
inspira aquelas suas crianças que retiveram o sentido dos seus mistérios, como
a Terra o fez com Antheia. O Cristianismo, tendo tido que reagir contra um
espírito verdadeiramente ‘pagão’, no sentido Bíblico de ‘idólatra’, provocou
que ao mesmo tempo desaparecessem – como sempre acontece em tais casos –
valores que não mereciam a censura de ‘paganismo’; tendo que opor um
‘naturalismo’ filosófico e ‘nivelado’ entre os mediterrânicos, erradicou ao
mesmo tempo, acima de tudo nos nórdicos, um ‘naturismo’ de caráter espiritual.12
A tecnologia moderna é o resultado – bastante indireto, sem dúvida – de uma
perspetiva que, tendo banido da Natureza os deuses e os génios, e tendo-a
tornado, também por este próprio facto, profana,13 acabou por
permitir que ela fosse ‘profanada’ no sentido mais brutal da palavra. O
ocidental prometaico – mas não todo o ocidental – encontra-se afetado por uma espécie
de desdém inato pela Natureza: para ele a Natureza é uma propriedade para ser
gozada e explorada,14 ou até um inimigo a ser conquistado; não é uma
‘propriedade dos Deuses’ como no Bali, mas uma ‘matéria-prima’ destinada a
exploração industrial ou sentimental, de acordo com os gostos e as
circunstâncias.15 Este destronamento da Natureza, ou esta cisão
entre o homem e a terra – uma reflexão da cisão entre o homem e o Céu – deu tão
amargos frutos que não deveria ser difícil admitir que, nestes dias, a mensagem
intemporal da Natureza constitui uma viático espiritual de primeira ordem.
Alguns podem objetar que o Ocidente sempre teve – especialmente nos séculos 18
e 19 - o seu retorno à Natureza virgem, mas tal não é o que queremos significar,
já que não temos uso para um ‘naturismo’ romântico ou ‘deísta’, ou mesmo
ateístico.16 Não é uma questão de projetar um individualismo supersaturado
e desiludido na direção da Natureza profanada – isto seria um mundanismo como outro
qualquer – mas, pelo contrário, de redescobrir na Natureza, com a base da perspetiva
tradicional, a substância divina que lhe é inerente; por outras palavras, ‘ver
Deus em toda a parte’, e nada ver exceto a Sua presença misteriosa.
1
W. J. McGee, em The Siouan Indians, Washington D.C., Smithsonian
Institute Bureau of Ethnology, 15th Annual Report, 1897.
2
Ibid.
3 Um autor não aporta qualquer
importância a declarações índias, feitas no início do século 19, confirmando a existência
imemorial da ideia de um Espírito Supremo, e para provar que esta ideia é
apenas uma abstração importada pelo homem branco, ele cita o seguinte facto,
que data de uma altura (1701) em que os mesmos índios ainda não tinham sofrido
influência branca: ‘No decurso da conversa (William) Penn pediu a um dos
intérpretes Lenape (Delaware) que lhe explicasse a noção que os nativos possuíam
de Deus. O índio estava embaraçado e em vão procurou por palavras. Finalmente
desenhou uma série de círculos concêntricos no chão, e, indicando o seu centro,
disse que este era o local onde o Grande Homem se encontrava simbolicamente
situado.’ (Werner Muller, Die Religionen
der Waldindianer Nordamerikas, Berlin, D. Reimer, 1956, o capítulo intitulado:
“Der Grosse Geist und die
Kardinalpunkte.”) Não se poderia fornecer prova mais clara de incompreensão
que o argumento baseado neste incidente, nomeadamente que para os delawares
Deus era um desenho, portanto algo ‘concreto’ e não uma ‘abstração’! Na mesma
veia: ‘O espírito é algo sem espaço e sem lugar; para traduzir manitu por este termo é ainda mais impróprio pelo facto das
mais recentes fontes conhecem o lugar de manitu
como sendo o zénite ou o céu. Que o cree deva buscar manitu ‘algures em cima’, ou que os menomini localizem o seu mach hawatuk na quarta atmosfera, ou que
os fox localizem o seu kechi manetoa
na Via Láctea – tudo isto apenas significa uma coisa, designadamente, que o
supremo manitu possui o mesmo caráter
sensível que os manitus de menor
importância’ (ibid.). O ponto mais
essencial é inteiramente esquecido, nomeadamente, porque é que o supremo manitu se encontra situado no céu e não
num tacho de cozinha! Onde existe um grau de ignorância a tal grau, tanto em
relação ao simbolismo como à mente simbolista, seria obviamente melhor não se
preocupar de todo com o simbolismo.
4 Pois se eles não fossem falsos,
porquê censurá-los pela sua ‘grosseria’?
5 Do mesmo modo termos como ‘prepolidemonismo’,
‘polidemonismo’, ‘antropolatria’, ‘teatropismo’, etc. etc., indicam
classificações que são tão superficiais como são conjeturais. Levy-Bruhl, que
considera que ‘a mentalidade primitiva, como é bem sabido, é acima de tudo
concreta e de modo algum conceptual’ e que ‘nada lhe é mais estranho que a
ideia de um Deus único e universal’, atribui a esta visão ‘pré-lógica’ a ideia de
que ‘cada planta… tem o seu criador próprio’. Agora o Islão, que certamente não
é ‘pré-lógico’, ensina que cada gota de chuva é depositada por um anjo; a ideia
do ‘anjo da guarda’, incidentalmente, não está desligada da perspetiva –
inteiramente ‘lógica’ – que aqui se encontra em questão. Não sabemos se para a
escola de Levy-Bruhl os pigmeus são ‘primitivos’, mas em todos os eventos a
existência, pela sua parte, da ideia do Deus Supremo não é posta em dúvida (cf.
R. P. Trilles, L’Ame du Pygmee d’Afrique,
Paris, Editions du Cerf, 1945).
6 É valioso apontar o abuso da
palavra ‘magia’. Autores que a qualquer oportunidade falam da ‘imagem mágica do
mundo’ (magisches Weltbild) são
obviamente de todo ignorantes do que ela trata, ou antes apenas possuem uma
vaga noção das analogias cósmicas que a magia desencadeia.
7 No que concerne estas expressões
índias, tão desnecessariamente objetos de controvérsia, não vemos razão para
não as traduzir como ‘espírito’, ‘mistério’ ou ‘sagrado’, dependendo do caso. É
obviamente irrazoável supor que estas expressões não possuem significado, que
os índios falam em ordem a nada dizerem, ou que eles adotam modos de expressão
sem saberem porquê. Que não existe equivalência completa entre uma língua e
outra – ou entre um pensamento e outro – é uma questão inteiramente diferente.
8 Esta é a razão – seja dito de
passagem – de desconfiarmos de considerações condescendentes de uma ‘puridade
primitiva’ ou de uma ‘concretude’ que desdenha ‘especulações’, daí todas estas
reversões anti escolásticas à ‘simplicidade dos Pais’; pois em tais casos é frequentemente
uma questão de mera incapacidade, a qual, em vez de admitir o que é, se prefere
esconder por detrás da ilusão de uma atitude superior.
9 O oposto apenas é verdade num
sentido superior, que não mais possui qualquer ligação com a ordem sensível. Para o metafísico, pensar é
‘ver’ princípios ou ‘ideias’.
10 Do mesmo modo, uma doutrina
metafísica pode perder as suas características ao degenerar-se, através de
sucessivos graus de incompreensão até ao nível de um sistema puramente lógico –
e portanto fragmentário e estéril. A idolatria no sentido estrito do termo é
talvez um fenómeno primariamente semítico; com os antigos árabes não tinha
inclusive a desculpa de derivar de um simbolismo, pois os seus ídolos possuíam frequentemente
origens puramente humanas e empíricas.
11 Similarmente, de acordo com o
testemunho de um sioux no final do século 19: ‘O Homem Vermelho dividiu a mente
em duas partes: a mente espiritual e a mente física. A primeira é espírito
puro, apenas preocupada com a essência das coisas, e foi isto que ele procurava
fortalecer através da oração espiritual, durante a qual o corpo é submetido
pelos jejuns e provações. Neste tipo de oração não existiam súplicas de favor
ou de ajuda. Todos os assuntos de natureza pessoal ou egoísta, como o sucesso
na caça e na guerra, alívio de doença, ou a poupança de um ente amado, eram
definitivamente relegados para o plano da mente mais baixa ou material, e todas
as cerimónias, encantamentos e feitiços desenhados para assegurar um benefício
ou evitar um perigo, eram reconhecidos como emanando do ser físico’. Ver Charles A. Eastman (Ohiyesa), The Soul of the Indian, Lincoln, University of Nebraska Press,
1980. [A Alma do Índio, Planeta Vivo,
2005].
12 Um eco disto encontra-se no Poverello de Assisi.
13 Deve ser dito que os gregos do
período clássico, com o seu empirismo científico, foram os primeiros a
destituir a Natureza da sua majestade, sem, contudo, a destronarem na
consciência popular. Existiam Dodona e outros santuários a céu aberto, mas não
deve ser esquecido que o templo antigo é oposto à Natureza virgem como a ordem
se opõem ao caos, ou a razão ao sonho. Obviamente que isto é igualmente
verdade, em determinada medida e pela natureza das coisas, de toda a arte
humana, mas a mente greco-romana é peculiar em ser muito mais atraída para a
ideia de ‘perfeição’ que à de ‘infinito’; ‘perfeição’ ou ‘ordem’ tornam-se no
próprio conteúdo da sua arte, ao pondo de excluírem toda a recordação das
Essências. – Sem dúvida esta verdade parcial deveria ser complementada por
outra, nesta altura positiva em caráter: um amigo uma vez afirmou,
corretamente, que o Deus dos gregos, que é um ‘geómetra’, não ‘criou’, mas ‘media’
o mundo, como a luz ‘mede’ o espaço. Portanto o templo grego, com a sua
claridade, as suas linhas retas, os seus ritmos precisos, incarna ou antes ‘cristaliza’
a luz, e a este respeito opõe-se, não à Natureza como tal, mas à terra, daí
também à matéria, peso e opacidade; por outras palavras, não apenas constitui
uma sistematização abstrata e limitativa, mas também uma revelação do Intelecto
e uma totalidade. A mesma afirmação também poderia ser feita acerca do Taj
Mahal e outros edifícios islâmicos do tipo, mas com esta diferença, de que nos
últimos casos a luminosidade é concebida de um modo menos ‘matemático’, e de um
modo que é muito mais próximo da ideia do infinito.
14 Para a teologia cristã, o único
propósito da Natureza parece ser o de servir o homem terrestre – poder-se-ia
perguntar de que lhe serve um qualquer paquiderme dos trópicos ou um monstro
marinho – tanto que o Jerusalém Celestial, onde o homem não mais encontra
necessidades físicas, não contém animais nem plantas; contrariamente ao
simbolismo muçulmano, é um paraíso de cristal. Os jannāt do Islão, é verdade, são ‘feitos de pérola, rubi e esmeralda’,
mas eles no entanto são jardins que contêm árvores, frutos, flores e pássaros.
Não é nossa intenção aqui criticar qualquer simbolismo – tal é claro – mas apenas
certas especulações que de tal são derivadas; então, tem sido mantido que a
alma do animal apenas existe através da matéria, da qual não é mais que a
reflexão interior; mas isto deixa sem explicação, primeiramente, as diferenças
de forma – qualitativas e psicológicas – entre os animais, e mesmo os traços
afetivos, e mesmo contemplativos, que eles manifestam. Quando a Bíblia afirma que
o homem deve reinar sobre os animas, parece-nos que isto não implica que eles
apenas ali estão para o servir.
15 Prontamente se fala em ‘conquistar’
o Matterhorn, o Evereste, o Anapurna, os hindus, a lua, o espaço, e aí por adiante.
Na prática a Natureza é simplesmente o oponente a ser abatido: o mundo
encontra-se dividido em dois campos, seres humanos e Natureza. Sem dúvida,
existe um certo módico de verdade nisto, mas tudo depende no significado dado a
esta oposição.
16 É essencial não confundir
simbolismo e ‘naturismo’, como os entendemos, com os movimentos filosóficos e
literários que abusivamente se apropriaram destes termos. Nada se encontra mais
afastado do simbolismo védico, xintoísta ou norte-americano que o naturalismo
artístico dos greco-romanos e as suas interpretações anedóticas dos mitos.
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