Em baixo
deixo a tradução do capítulo VIII, do livro de René Guenon intitulado “O Reino
da Quantidade e os Sinais dos Tempos”, originalmente publicado em francês em 1945, e do qual aqui se traduz da edição inglesa de 2001 da Editora Sophia Perennis.
Constituindo
este livro uma explanação mais desenvolvida do diagnóstico feito pelo autor no
seu “Crise do Mundo Moderno”, principalmente no que toca à crescente
quantificação do mundo, suas causas e, muito interessante, no que constituirá o
seu apex.
O presente
capítulo apresenta o contraste entre a natureza moderna do trabalho, de caráter
demónico, com as antigas artes e ofícios que ligadas a sistemas verdadeiramente
tradicionais permitiam uma via para o conhecimento iniciático, para além da sua
função integradora no contexto social e económico. Realçar aqui que esta via
esotérica estaria aberta independentemente da particular religião ou legislação
exotérica prevalente na respetiva comunidade, contando que as vias de
possibilidades de tal iniciação se encontrassem abertas, o que hoje já
praticamente não acontece.
Ofícios Antigos e a Indústria Moderna
Existe um
grande contraste entre o que os antigos ofícios costumavam ser e o que a
indústria moderna é agora, e isto mostra no seu essencial outro caso particular
e ao mesmo tempo uma aplicação prática do contraste entre um ponto de vista qualitativo
e quantitativo, que predomina num e noutro, respetivamente. Em ordem para ver a
razão de tal, é útil notar primeiro que tudo o que a distinção entre artes e os
ofícios, ou entre o “artista” e o ”artesão”, é em si mesma algo especificamente
moderno, como se tivesse nascido da desvio e da degeneração que tem levado à
substituição em todos os campos da conceção tradicional pela conceção profana.
Para os antigos o artifex era indiferentemente
o homem que praticava uma arte ou um ofício; mas ele era, para dizer a verdade,
algo que nem o artista nem o artesão são hoje, se essas palavras são usadas no
sentido moderno (ademais a palavra “artesão” tende mais e mais a desaparecer da
linguagem contemporânea); ele era algo mais que tanto um como o outro porque,
ao menos originalmente, a sua atividade estava delimitada por princípios de uma
ordem muito mais profunda. Se os ofícios costumavam englobar de uma forma ou
outra as artes propriamente ditas, tal é porque a natureza dos ofícios era
verdadeiramente qualitativa, já que ninguém pode recusar admitir que tal é a
natureza da arte, mais ou menos por definição. No entanto, os modernos, por
essa mesma razão, estreitamente restringiram a sua conceção de arte,
relegando-a a uma espécie de domínio fechado sem conexão com o resto da
atividade humana, isto é, com o que consideram que constitui a “realidade”,
usando a palavra no mesmo sentido cru que esta tem para eles; e eles vão ao
ponto de livremente atribuir à arte, roubada portanto de toda a sua
significação prática, o carácter de um “luxo”, um termo totalmente
característico da que pode sem qualquer exagero ser chamada da “parvoíce” do nosso
período.
Em toda a
civilização tradicional, como tem sido posto à evidência, toda a atividade
humana de qualquer tipo é sempre considerada como derivada essencialmente de
princípios. Isto é conspicuamente verdadeiro para as ciências, e não é menos
verdade para as artes e para os ofícios, e existe adicionalmente uma ligação
próxima entre elas todas, já que de acordo com uma fórmula postulada como um
axioma fundamental pelos construtores da Idade Média, ars sine scientia nihil; a ciência em questão é com certeza ciência
tradicional, e certamente não ciência moderna, a aplicação da qual pode dar
nascimento a nada exceto à indústria moderna. Por esta ligação a princípios, a
atividade humana podia dizer-se estar como que “transformada”, e em vez de
estar limitada ao que é em si mesma, nomeadamente, a uma mera manifestação
externa (e o ponto de vista profano consiste nisto e nada mais), ela é
integrada com a tradição, e constitui para aqueles que a desempenham um meio
efetivo de participação na tradição, e isto é como dizer que carregava consigo
um caráter verdadeiramente “sagrado” e “ritual”. Isso é porque pode ser dito,
em qualquer civilização, que “toda a ocupação é um sacerdócio”;1 mas
em ordem para evitar conferir a esta última palavra uma maior ou menor extensão
de sentido ilegítima, se não uma falsa, deve se claro que sacerdócio não é
sacerdócio a não ser que possua algo que foi preservado apenas nas funções
sacerdotais, desde o tempo em que a prévia não existente distinção entre
sagrado e profano surgiu.
Para ver o
que se significa pelo caráter “sagrado” de toda a atividade humana, mesmo que
só de um ponto de vista exterior, ou, se preferido, exotérico, é só preciso
considerar uma civilização como a Islâmica, ou a civilização Cristã da Idade
Média; é fácil ver que nelas as mais comuns ações da vida têm algo de “religioso”.
Em tais civilizações a religião não é algo restrito, estritamente limitado e
que ocupe um lugar aparte, sem influência efetiva em nada mais, como o é para
os modernos Ocidentais (pelo menos para os quais que ainda consentem em admitir
a religião de todo); pelo contrário ela penetra toda a existência do ser humano,
ou melhor, ela abraça dentro do seu domínio tudo o que constitui essa
existência, e particularmente a vida social propriamente dita, tanto que não
existe realmente nada que sobre que seja “profano”, exceto no caso daqueles que
por uma razão ou por outra estejam fora da tradição, mas quaisquer desses casos
representam então nada menos que uma mera anomalia. Noutros lugares, onde a
palavra “religião” não pode ser propriamente aplicada à forma da civilização
considerada, existe no entanto uma legislação tradicional e “sagrada” que
representa um papel equivalente mesmo que tenha um caráter diferente, sendo
considerações similares então aplicadas a todas as civilizações tradicionais
sem exceção. Mas existe algo mais: olhando para o esoterismo em vez do
exoterismo (sendo estas palavras utilizadas por conveniência apesar de não
serem estritamente aplicáveis a todos os casos da mesma maneira) torna-se claro
que existe, de uma forma geral, uma iniciação ligada aos ofícios e que os
utilizam como a sua base ou o seu “suporte”;2 estes ofícios devem
portanto ser capazes de uma significação superior e mais profunda se eles são
supostos de providenciar um caminho de acesso ao domínio iniciático, e é por
razão do seu caráter essencialmente qualitativo que evidentemente tal coisa é
possível.
A noção que
mais ajuda em direção a um entendimento deste ponto é aquela que a doutrina
Hindu chama de svadharma. Em si esta noção
é inteiramente qualitativa, já que implica a realização por qualquer ser humano
de uma atividade conforme com a sua particular essência ou natureza, e daí ser
conforme à “ordem” (rita) no sentido
já explicado; e é esta mesma noção, ou antes a sua ausência, que indica tão
claramente onde a conceção profana e moderna falha. De fato, de acordo com a
conceção moderna um homem pode adotar qualquer profissão, e até mudá-la se tal
favorece o seu capricho, como se a profissão fosse algo totalmente fora dele
próprio, não tendo qualquer ligação com o que ele realmente é, isso por virtude
do qual ele é ele próprio e não qualquer outro. De acordo com a conceção
tradicional, de outro modo, cada pessoa tem normalmente de cumprir a função
para a qual ele está destinado pela sua própria natureza, usando as particulares
aptitudes essencialmente implícitas na sua natureza como tal;3 ele
não pode cumprir uma função diferente exceto sob custo de uma desordem séria, a
qual terá as suas repercussões em toda a organização social de que ele é uma
parte; e muito mais que isto, se tal tipo de desordem se tornar geral, começará
a ter um efeito no próprio ambiente cósmico, já que todas as coisas estão
ligadas por rigorosas correspondências. Sem desenvolver mais este último ponto,
apesar de uma aplicação às condições modernas poder bem ser feita, o que foi
dito até agora pode ser então sumarizado: de acordo com a conceção tradicional,
são as qualidades essenciais dos seres que determinam as suas atividades; de
acordo com a conceção profana de outro modo, estas qualidades já não são
tomadas em conta, e os indivíduos são considerados não mais que permutáveis e
puramente “unidades” numéricas. A última conceção pode só logicamente levar ao exercício
de uma atividade integralmente “mecânica”, na qual nada resta de
verdadeiramente humano, e isso é exatamente o que podemos ver acontecendo hoje.
É quase desnecessário dizer que as atividades “mecânicas” dos modernos, que
constituem indústria propriamente dita e que são só um produto de um desvio
profano, não podem oferecer qualquer possibilidade de uma iniciação de qualquer
tipo, e mais, elas mais não podem ser que obstáculos ao desenvolvimento de toda
a espiritualidade; de fato elas não podem propriamente ser consideradas como
autênticos ofícios, se essa palavra quer reter a força do seu significado
tradicional.
Se o ofício é
como se fosse uma parte do próprio homem e uma manifestação ou expansão da sua
própria natureza, é fácil ver como pode servir como base para uma iniciação, e
porque é a melhor base possível numa maioria de casos. Iniciação tem de fato
como o seu objetivo a superação das possibilidades do indivíduo humano como
tal, mas não é menos verdade que pode apenas tomar tal indivíduo como ele é
como ponto de partida, e então só por apoio no seu lado superior, isto é, por
juntar-se ela própria áquilo que nele é verdadeiramente qualitativo; então a
diversidade de caminhos iniciáticos, em outras palavras, dos meios usados como “suportes”
em ordem para se adaptar às diferenças das naturezas individuais; estas
diferenças tornam-se, no entanto, de menos importância à medida que o tempo
passa, em proporção com ser avançar no seu caminho e que portanto se aproxima
do fim que é igual para todos. Os meios empregues não podem ser efetivos a não
ser que eles realmente sirvam a natureza própria do ser aos quais eles se
aplicam; e já que é necessário trabalhar a partir do que é mais acessível em
direção ao que o é menos, do exterior para o interior, é normal escolhê-los no
seio da atividade pela qual a sua natureza se manifesta exteriormente. Mas é
óbvio que esta atividade não pode ser usada de qualquer outra maneira que não
seja por efetivamente expressar a natureza interior; portanto a questão
realmente torna-se uma de “qualificação” no senso iniciático da palavra; e em
condições normais, a mesma “qualificação” deve ser um requerimento para a prática
do próprio ofício. Tudo isto está também ligado com a diferença fundamental que
separa o ensinamento iniciático, e mais geralmente todo o ensinamento
tradicional, do ensinamento profano. Tudo que é simplesmente “aprendido” de fora
não tem qualquer valor no primeiro caso, independentemente das grandes
quantidade de noções acumuladas (para aqui também “ensinamento” profano mostra
claramente a marca da quantidade); o que conta é, ao contrário, um “acordar” das
possibilidades latentes que o ser traz consigo (o que é, em última análise, o
significado real da “reminiscência” Platónica).4
Estas últimas
considerações fazem entendível que a iniciação, usando a o ofício como “suporte”,
tem ao mesmo tempo, e como se fosse uma num sentido complementar, uma
repercussão na prática do ofício. O artesão, tendo realizado totalmente as possibilidades
das quais a sua atividade profissional é a sua expressão externa, e portanto possuindo
o conhecimento efetivo daquilo que é o verdadeiro sentido da sua atividade, vai
então conscientemente atingir aquilo que previamente era só uma consequência
bastante “instintiva” da sua natureza; e portanto, já que o conhecimento
iniciático nasce do ofício, o ofício por sua vez tornar-se-á o campo de aplicação
do conhecimento, do qual não se poderá mais separar. Haverá então uma correspondência
perfeita entre o interior e o exterior, e o trabalho produzido pode então
tornar-se a expressão, não mais só até um certo grau e de uma maneira mais ou
menos superficial, mas a expressão adequada, daquele que o concebeu e o
executou, e constituir-se-á numa “obra de arte” no verdadeiro sentido da
palavra.
Não há
portanto dificuldade em ver o quanto afastado o verdadeiro ofício está da
indústria moderna, tanto que os dois estão como que opostos, e quão é
tristemente verdade que no “reino da quantidade” o ofício é, como os
partidários do “progresso” tão rapidamente declaram, uma “coisa do passado”. O
trabalhador em indústria não pode pôr no trabalho nada dele próprio, e muito
esforço seria até posto para o prevenir se ele tivesse ainda que a mínima
inclinação para o fazer; mas ele não pode nem tentar, porque a sua atividade
consiste somente em fazer uma máquina andar, e porque de mais ele é considerado
bastante incapaz de iniciativa pela “formação” – ou antes deformação - profissional
que tenha recebido, que é praticamente a antítese da aprendizagem antiga, e
cujo único objetivo é ensiná-lo a executar certos movimentos “mecanicamente” e
sempre da mesma maneira, sem ter de todo que entender a razão deles ou de
preocupar-se com o resultado, já que não é ele, mas a máquina, que verdadeiramente
fabricará o objeto. Servente da máquina, o homem deve tornar-se a máquina ele
próprio, e então o seu trabalho nada terá de verdadeiramente humano, já que não
implica pôr ao serviço quaisquer das qualidades que realmente constituem a
natureza humana.5 O fim de tudo isto é o que o jargão moderno chama de “produção
em massa”, o objetivo da qual é só produzir a maior quantidade possível de
objetos, e de objetos os mais exatamente iguais possível, com o objetivo de uso
por homens que são supostos não serem menos iguais; esse é de facto o triunfo
da quantidade, como foi apontado mais cedo, e é pela mesma bitola o triunfo da
uniformidade. Estes homens que estão reduzidos a meras “unidades” numéricas são
supostos viver no que dificilmente se podem chamar casas, já que tal seria
abusar da palavra, mas em “colmeias” das quais os compartimentos serão todos
planeados com base no mesmo modelo, e mobiladas com objetos feitos em “produção
de massa”, de maneira a causar o desaparecimento no ambiente em que as pessoas
vivem de qualquer diferença qualitativa; é suficiente examinar os projetos de
alguns arquitetos contemporâneos (que descrevem os próprios as habitações como “máquinas
vivas”) para ver que nada tem sido exagerado. O que então aconteceu à arte
tradicional e à ciência dos antigos construtores, ou às regras rituais pelas
quais o estabelecimento de cidades e edifícios eram regulados em civilizações
normais? Seria inútil pressionar mais este assunto, porque um teria de ser cego
para não ver o abismo que separa o normal da civilização moderna, e sem dúvida
todos concordarão em reconhecer quão grande a diferença é; mas aquilo que a
vasta maioria dos homens hoje vivos celebra como “progresso” é exatamente o que
é apresentado agora ao leitor como uma decadência profunda, acelerando
continuamente, a qual arrasta a humanidade para o esgoto onde a quantidade pura
reina.
1.
A.M. Hocart, Les
Castes (Paris: P. Geuthner, 1938), p27. [Caste: A Comparative Study (New York: Russell and Russell, 1968).]
2.
Deve ser notado que tudo o que ainda persiste no Ocidente de
verdadeiras organizações iniciáticas, qualquer que seja o seu presente estado
de decadência, não tem outra origem que não esta. Iniciações pertencentes a
outras categorias desapareceram completamente há muito tempo.
3.
Deve ser notado que a palavra francesa metier é etimologicamente derivada do latim ministerium, e propriamente significa “função”
4.
Neste tema ver particularmente o Meno de Platão.
5.
Deve ser notado que a máquina é num sentido o oposto do
instrumento, e não é de modo nenhum um “instrumento aperfeiçoado” como muitos
imaginam, já que o instrumento é de certa maneira um “prolongamento” do próprio
homem, enquanto que a máquina reduz o homem a nada mais que o seu servo; e, se
fosse verdade dizer que “o instrumento cria o ofício”, não é menos verdade que
a máquina mata-o; as reações instintivas dos artesões contra as primeiras
máquinas falam por si próprias.
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