Tuesday, August 8, 2017

Ofícios Antigos e a Indústria Moderna




Em baixo deixo a tradução do capítulo VIII, do livro de René Guenon intitulado “O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos”, originalmente publicado em francês em 1945, e do qual aqui se traduz da edição inglesa de 2001 da Editora Sophia Perennis.

Constituindo este livro uma explanação mais desenvolvida do diagnóstico feito pelo autor no seu “Crise do Mundo Moderno”, principalmente no que toca à crescente quantificação do mundo, suas causas e, muito interessante, no que constituirá o seu apex.

O presente capítulo apresenta o contraste entre a natureza moderna do trabalho, de caráter demónico, com as antigas artes e ofícios que ligadas a sistemas verdadeiramente tradicionais permitiam uma via para o conhecimento iniciático, para além da sua função integradora no contexto social e económico. Realçar aqui que esta via esotérica estaria aberta independentemente da particular religião ou legislação exotérica prevalente na respetiva comunidade, contando que as vias de possibilidades de tal iniciação se encontrassem abertas, o que hoje já praticamente não acontece.



Ofícios Antigos e a Indústria Moderna

Existe um grande contraste entre o que os antigos ofícios costumavam ser e o que a indústria moderna é agora, e isto mostra no seu essencial outro caso particular e ao mesmo tempo uma aplicação prática do contraste entre um ponto de vista qualitativo e quantitativo, que predomina num e noutro, respetivamente. Em ordem para ver a razão de tal, é útil notar primeiro que tudo o que a distinção entre artes e os ofícios, ou entre o “artista” e o ”artesão”, é em si mesma algo especificamente moderno, como se tivesse nascido da desvio e da degeneração que tem levado à substituição em todos os campos da conceção tradicional pela conceção profana. Para os antigos o artifex era indiferentemente o homem que praticava uma arte ou um ofício; mas ele era, para dizer a verdade, algo que nem o artista nem o artesão são hoje, se essas palavras são usadas no sentido moderno (ademais a palavra “artesão” tende mais e mais a desaparecer da linguagem contemporânea); ele era algo mais que tanto um como o outro porque, ao menos originalmente, a sua atividade estava delimitada por princípios de uma ordem muito mais profunda. Se os ofícios costumavam englobar de uma forma ou outra as artes propriamente ditas, tal é porque a natureza dos ofícios era verdadeiramente qualitativa, já que ninguém pode recusar admitir que tal é a natureza da arte, mais ou menos por definição. No entanto, os modernos, por essa mesma razão, estreitamente restringiram a sua conceção de arte, relegando-a a uma espécie de domínio fechado sem conexão com o resto da atividade humana, isto é, com o que consideram que constitui a “realidade”, usando a palavra no mesmo sentido cru que esta tem para eles; e eles vão ao ponto de livremente atribuir à arte, roubada portanto de toda a sua significação prática, o carácter de um “luxo”, um termo totalmente característico da que pode sem qualquer exagero ser chamada da “parvoíce” do nosso período.

Em toda a civilização tradicional, como tem sido posto à evidência, toda a atividade humana de qualquer tipo é sempre considerada como derivada essencialmente de princípios. Isto é conspicuamente verdadeiro para as ciências, e não é menos verdade para as artes e para os ofícios, e existe adicionalmente uma ligação próxima entre elas todas, já que de acordo com uma fórmula postulada como um axioma fundamental pelos construtores da Idade Média, ars sine scientia nihil; a ciência em questão é com certeza ciência tradicional, e certamente não ciência moderna, a aplicação da qual pode dar nascimento a nada exceto à indústria moderna. Por esta ligação a princípios, a atividade humana podia dizer-se estar como que “transformada”, e em vez de estar limitada ao que é em si mesma, nomeadamente, a uma mera manifestação externa (e o ponto de vista profano consiste nisto e nada mais), ela é integrada com a tradição, e constitui para aqueles que a desempenham um meio efetivo de participação na tradição, e isto é como dizer que carregava consigo um caráter verdadeiramente “sagrado” e “ritual”. Isso é porque pode ser dito, em qualquer civilização, que “toda a ocupação é um sacerdócio”;1 mas em ordem para evitar conferir a esta última palavra uma maior ou menor extensão de sentido ilegítima, se não uma falsa, deve se claro que sacerdócio não é sacerdócio a não ser que possua algo que foi preservado apenas nas funções sacerdotais, desde o tempo em que a prévia não existente distinção entre sagrado e profano surgiu.

Para ver o que se significa pelo caráter “sagrado” de toda a atividade humana, mesmo que só de um ponto de vista exterior, ou, se preferido, exotérico, é só preciso considerar uma civilização como a Islâmica, ou a civilização Cristã da Idade Média; é fácil ver que nelas as mais comuns ações da vida têm algo de “religioso”. Em tais civilizações a religião não é algo restrito, estritamente limitado e que ocupe um lugar aparte, sem influência efetiva em nada mais, como o é para os modernos Ocidentais (pelo menos para os quais que ainda consentem em admitir a religião de todo); pelo contrário ela penetra toda a existência do ser humano, ou melhor, ela abraça dentro do seu domínio tudo o que constitui essa existência, e particularmente a vida social propriamente dita, tanto que não existe realmente nada que sobre que seja “profano”, exceto no caso daqueles que por uma razão ou por outra estejam fora da tradição, mas quaisquer desses casos representam então nada menos que uma mera anomalia. Noutros lugares, onde a palavra “religião” não pode ser propriamente aplicada à forma da civilização considerada, existe no entanto uma legislação tradicional e “sagrada” que representa um papel equivalente mesmo que tenha um caráter diferente, sendo considerações similares então aplicadas a todas as civilizações tradicionais sem exceção. Mas existe algo mais: olhando para o esoterismo em vez do exoterismo (sendo estas palavras utilizadas por conveniência apesar de não serem estritamente aplicáveis a todos os casos da mesma maneira) torna-se claro que existe, de uma forma geral, uma iniciação ligada aos ofícios e que os utilizam como a sua base ou o seu “suporte”;2 estes ofícios devem portanto ser capazes de uma significação superior e mais profunda se eles são supostos de providenciar um caminho de acesso ao domínio iniciático, e é por razão do seu caráter essencialmente qualitativo que evidentemente tal coisa é possível.

A noção que mais ajuda em direção a um entendimento deste ponto é aquela que a doutrina Hindu chama de svadharma. Em si esta noção é inteiramente qualitativa, já que implica a realização por qualquer ser humano de uma atividade conforme com a sua particular essência ou natureza, e daí ser conforme à “ordem” (rita) no sentido já explicado; e é esta mesma noção, ou antes a sua ausência, que indica tão claramente onde a conceção profana e moderna falha. De fato, de acordo com a conceção moderna um homem pode adotar qualquer profissão, e até mudá-la se tal favorece o seu capricho, como se a profissão fosse algo totalmente fora dele próprio, não tendo qualquer ligação com o que ele realmente é, isso por virtude do qual ele é ele próprio e não qualquer outro. De acordo com a conceção tradicional, de outro modo, cada pessoa tem normalmente de cumprir a função para a qual ele está destinado pela sua própria natureza, usando as particulares aptitudes essencialmente implícitas na sua natureza como tal;3 ele não pode cumprir uma função diferente exceto sob custo de uma desordem séria, a qual terá as suas repercussões em toda a organização social de que ele é uma parte; e muito mais que isto, se tal tipo de desordem se tornar geral, começará a ter um efeito no próprio ambiente cósmico, já que todas as coisas estão ligadas por rigorosas correspondências. Sem desenvolver mais este último ponto, apesar de uma aplicação às condições modernas poder bem ser feita, o que foi dito até agora pode ser então sumarizado: de acordo com a conceção tradicional, são as qualidades essenciais dos seres que determinam as suas atividades; de acordo com a conceção profana de outro modo, estas qualidades já não são tomadas em conta, e os indivíduos são considerados não mais que permutáveis e puramente “unidades” numéricas. A última conceção pode só logicamente levar ao exercício de uma atividade integralmente “mecânica”, na qual nada resta de verdadeiramente humano, e isso é exatamente o que podemos ver acontecendo hoje. É quase desnecessário dizer que as atividades “mecânicas” dos modernos, que constituem indústria propriamente dita e que são só um produto de um desvio profano, não podem oferecer qualquer possibilidade de uma iniciação de qualquer tipo, e mais, elas mais não podem ser que obstáculos ao desenvolvimento de toda a espiritualidade; de fato elas não podem propriamente ser consideradas como autênticos ofícios, se essa palavra quer reter a força do seu significado tradicional.

Se o ofício é como se fosse uma parte do próprio homem e uma manifestação ou expansão da sua própria natureza, é fácil ver como pode servir como base para uma iniciação, e porque é a melhor base possível numa maioria de casos. Iniciação tem de fato como o seu objetivo a superação das possibilidades do indivíduo humano como tal, mas não é menos verdade que pode apenas tomar tal indivíduo como ele é como ponto de partida, e então só por apoio no seu lado superior, isto é, por juntar-se ela própria áquilo que nele é verdadeiramente qualitativo; então a diversidade de caminhos iniciáticos, em outras palavras, dos meios usados como “suportes” em ordem para se adaptar às diferenças das naturezas individuais; estas diferenças tornam-se, no entanto, de menos importância à medida que o tempo passa, em proporção com ser avançar no seu caminho e que portanto se aproxima do fim que é igual para todos. Os meios empregues não podem ser efetivos a não ser que eles realmente sirvam a natureza própria do ser aos quais eles se aplicam; e já que é necessário trabalhar a partir do que é mais acessível em direção ao que o é menos, do exterior para o interior, é normal escolhê-los no seio da atividade pela qual a sua natureza se manifesta exteriormente. Mas é óbvio que esta atividade não pode ser usada de qualquer outra maneira que não seja por efetivamente expressar a natureza interior; portanto a questão realmente torna-se uma de “qualificação” no senso iniciático da palavra; e em condições normais, a mesma “qualificação” deve ser um requerimento para a prática do próprio ofício. Tudo isto está também ligado com a diferença fundamental que separa o ensinamento iniciático, e mais geralmente todo o ensinamento tradicional, do ensinamento profano. Tudo que é simplesmente “aprendido” de fora não tem qualquer valor no primeiro caso, independentemente das grandes quantidade de noções acumuladas (para aqui também “ensinamento” profano mostra claramente a marca da quantidade); o que conta é, ao contrário, um “acordar” das possibilidades latentes que o ser traz consigo (o que é, em última análise, o significado real da “reminiscência” Platónica).4

Estas últimas considerações fazem entendível que a iniciação, usando a o ofício como “suporte”, tem ao mesmo tempo, e como se fosse uma num sentido complementar, uma repercussão na prática do ofício. O artesão, tendo realizado totalmente as possibilidades das quais a sua atividade profissional é a sua expressão externa, e portanto possuindo o conhecimento efetivo daquilo que é o verdadeiro sentido da sua atividade, vai então conscientemente atingir aquilo que previamente era só uma consequência bastante “instintiva” da sua natureza; e portanto, já que o conhecimento iniciático nasce do ofício, o ofício por sua vez tornar-se-á o campo de aplicação do conhecimento, do qual não se poderá mais separar. Haverá então uma correspondência perfeita entre o interior e o exterior, e o trabalho produzido pode então tornar-se a expressão, não mais só até um certo grau e de uma maneira mais ou menos superficial, mas a expressão adequada, daquele que o concebeu e o executou, e constituir-se-á numa “obra de arte” no verdadeiro sentido da palavra.

Não há portanto dificuldade em ver o quanto afastado o verdadeiro ofício está da indústria moderna, tanto que os dois estão como que opostos, e quão é tristemente verdade que no “reino da quantidade” o ofício é, como os partidários do “progresso” tão rapidamente declaram, uma “coisa do passado”. O trabalhador em indústria não pode pôr no trabalho nada dele próprio, e muito esforço seria até posto para o prevenir se ele tivesse ainda que a mínima inclinação para o fazer; mas ele não pode nem tentar, porque a sua atividade consiste somente em fazer uma máquina andar, e porque de mais ele é considerado bastante incapaz de iniciativa pela “formação” – ou antes deformação - profissional que tenha recebido, que é praticamente a antítese da aprendizagem antiga, e cujo único objetivo é ensiná-lo a executar certos movimentos “mecanicamente” e sempre da mesma maneira, sem ter de todo que entender a razão deles ou de preocupar-se com o resultado, já que não é ele, mas a máquina, que verdadeiramente fabricará o objeto. Servente da máquina, o homem deve tornar-se a máquina ele próprio, e então o seu trabalho nada terá de verdadeiramente humano, já que não implica pôr ao serviço quaisquer das qualidades que realmente constituem a natureza humana.5 O fim de tudo isto é o que o jargão moderno chama de “produção em massa”, o objetivo da qual é só produzir a maior quantidade possível de objetos, e de objetos os mais exatamente iguais possível, com o objetivo de uso por homens que são supostos não serem menos iguais; esse é de facto o triunfo da quantidade, como foi apontado mais cedo, e é pela mesma bitola o triunfo da uniformidade. Estes homens que estão reduzidos a meras “unidades” numéricas são supostos viver no que dificilmente se podem chamar casas, já que tal seria abusar da palavra, mas em “colmeias” das quais os compartimentos serão todos planeados com base no mesmo modelo, e mobiladas com objetos feitos em “produção de massa”, de maneira a causar o desaparecimento no ambiente em que as pessoas vivem de qualquer diferença qualitativa; é suficiente examinar os projetos de alguns arquitetos contemporâneos (que descrevem os próprios as habitações como “máquinas vivas”) para ver que nada tem sido exagerado. O que então aconteceu à arte tradicional e à ciência dos antigos construtores, ou às regras rituais pelas quais o estabelecimento de cidades e edifícios eram regulados em civilizações normais? Seria inútil pressionar mais este assunto, porque um teria de ser cego para não ver o abismo que separa o normal da civilização moderna, e sem dúvida todos concordarão em reconhecer quão grande a diferença é; mas aquilo que a vasta maioria dos homens hoje vivos celebra como “progresso” é exatamente o que é apresentado agora ao leitor como uma decadência profunda, acelerando continuamente, a qual arrasta a humanidade para o esgoto onde a quantidade pura reina.


1.           A.M. Hocart, Les Castes (Paris: P. Geuthner, 1938), p27. [Caste: A Comparative Study (New York: Russell and Russell, 1968).]

2.           Deve ser notado que tudo o que ainda persiste no Ocidente de verdadeiras organizações iniciáticas, qualquer que seja o seu presente estado de decadência, não tem outra origem que não esta. Iniciações pertencentes a outras categorias desapareceram completamente há muito tempo.

3.           Deve ser notado que a palavra francesa metier é etimologicamente derivada do latim ministerium, e propriamente significa “função”

4.           Neste tema ver particularmente o Meno de Platão.

5.           Deve ser notado que a máquina é num sentido o oposto do instrumento, e não é de modo nenhum um “instrumento aperfeiçoado” como muitos imaginam, já que o instrumento é de certa maneira um “prolongamento” do próprio homem, enquanto que a máquina reduz o homem a nada mais que o seu servo; e, se fosse verdade dizer que “o instrumento cria o ofício”, não é menos verdade que a máquina mata-o; as reações instintivas dos artesões contra as primeiras máquinas falam por si próprias.


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