Thursday, November 30, 2017

O Espírito Burguês



O vazio não existe. Desde o início da existência da humanidade, o homem acreditou que a sua estadia terrena era ditada por correntes e influências espirituais que penetravam a sua vida individual e coletiva, o seu modus vivendi, seja este físico, psíquico ou divino. Mesmo o homem moderno, pese o seu intenso ‘realismo’ e de desdenhar o homem tradicional que acreditava no sobrenatural, crê e vive sob a influência de mitos e correntes psíquicas que ultrapassam a sua existência individual e definem os seus pensamentos e atitudes. E não falamos aqui somente dos nossos contemporâneos que se afirmam religiosos, pois basta fazer referência aos dogmas profanos atuais como o cientismo ou o progressismo, por ora reinantes, para perceber que – consciente ou inconscientemente – as ideias chaves de uma época não são aleatórias e obedecem a uma corrente psíquica que impregna a mentalidade dos coevos. Tomando o exemplo do mito evolucionista hoje tão predominante, um pouco de reflexão sob o seu modo de implementação na menta coletiva permite concluir que tal paradigma de entendimento não foi implementado por via da reflexão racional efetuada por mentes humanas individuais, ainda mais sabendo-se que tal conceção foi sempre estranha à grande maioria da humanidade terrestre até há poucos séculos atrás, incluindo às próprias elites governativas e educacionais anteriores.

Portanto, concebemos a história humana como que saturada por diversas correntes supra-humanas que a cada momento da existência permeiam as mentes dos seres que habitam a Terra. E se de facto uma corrente tiver uma maior preponderância num dado momento ou latitude, tal não significa que outras de sentidos opostos - ou inclusive com o mesmo sentido mas de direção mais extremada – não existam, tão só que apenas subsistem em estados mais latentes. Para exercerem efeito sobre a humanidade, não dependem somente delas mesmas, mas da aptidão – melhor diríamos, da disposição – dos seres humanos para as receberem e as potenciarem. E se concordamos que a maioria – a esmagadora maioria – da humanidade é agente passivo da história, existe necessariamente elites de homens, que, por ações e omissões, funcionam como conduto entre as forças sobre-humanas que lhes são afins e a Terra, veiculando aquelas e influenciando, assim, indiretamente, as atitudes mentais da época. E se uma corrente de pensamento efetua maior influência numa dada época do que noutra, tal se deve tanto a uma diminuição das conexões estabelecidas pelos representantes terrestres da que era anteriormente a predominante, como a uma correspondente intensificação da ativação de correntes de orientação distinta por parte de seres que as desejam atiçar para assim influenciarem conjuntos de populações mais ou menos alargados que se encontram sob a sua ‘alçada’.

Não querendo soar demasiado ‘esotérico’ nem assustar os nossos leitores ‘pragmáticos’, apenas gostaríamos de realçar na nossa introdução ao tema deste ensaio que, de facto, a todas as etapas da humanidade correspondem ideias-chave que determinam os respetivos comportamentos, como se cada época fosse dominada por um - à falta de melhor termo – espírito preponderante.

Se existe um espírito que domina a época atual, tal é o espírito burguês. Avisamos que tal nome não é de modo algum perfeito e contém falhas, e inclusive poderíamos adotar outras designações, inclusivamente com conotações religiosas, mas parece-nos que a designação escolhida encaixa na perfeição ao período histórico moderno, que vai do séc. XVI até aos nossos dias e que acentua o seu caráter particular numa maior corrente subversiva de duração infinitamente maior – a qual, se adotarmos uma perspetiva religiosa sob o mesmo tema, também se pode denominar por satânica.

O espírito burguês como força predominante no mundo Ocidental surgiu com toda a sua pujança durante o Renascentismo europeu, especialmente nas regiões de Inglaterra e da Europa Central e do Norte, que foram as primeiras que assistiram à ascensão do chamado Terceiro Estado às rédeas do poder político e cultural, formalizada politicamente pela Revolução Francesa de 1789.

Esta classe de seres, que até então viam a sua influência na sociedade limitada pelas antigas classes dominantes, deixou a partir desse momento de encontrar freio na sua usurpação dos aparelhos culturais, sociais, políticos, económicos, administrativos e religiosos. A tal usurpação muito contribuiu o surgimento da heresia do Luteranismo, que assentou de feição nestas mentes individualistas e economicistas que sentiam-se destinadas para comandar comunidades de homens onde a finança, o comércio e o mercantilismo já eram os valores supremos. Com o triunfo de Lutero e o reconhecimento do novo evangelho pelos poderes de então, as antigas instituições nobiliárquicas e clericais perderam a sua autoridade e o caráter individualista da sociedade acentuou-se, passando-se a enfatizar a busca terrena da felicidade individual, que na ótica burguesa correspondia fundamentalmente ao ato produtivo e mercantil com o intuito da criação de lucro e da acumulação de riqueza.

Procuremos então analisar a mentalidade da nossa época, encapsulada pelas características do seu arquétipo - o burguês.

O burguês tem como principal função da sua estadia terrestre, como é sabido, enriquecer, o mais que pode e consegue. Para ele, a consecução da riqueza terrena é fundamental como objetivo de vida e a ele vai devotar a maioria das suas forças e energias. O dinheiro, consequência visível e a medida deste sucesso, é o barómetro que lhe permite distinguir-se dos restantes seres humanos, e portanto procura-o tanto pelo reconhecimento do seu esforço e habilidade, como para usá-lo de novo como instrumento de multiplicação do mesmo, seja em investimento em capitais produtivos, seja para influenciar decisões favoráveis nesse desiderato. Considerações de inspiração divina e religiosa são extremamente raras nesta classe de seres, e se as há, coadunam-se e subordinam-se sempre ao exercício do seu mister comercial ou mercantil – que é a sua imagem de marca adquirida por via hereditária ou por uma ambição pessoal acentuada. Todas as suas relações sociais e modos de comportamento são guiados com este fim egoísta. Mesmo quando o bem comum é considerado – entendido por ele num sentido puramente materialista – subordina-se na esmagadora maioria dos casos à consecução da sua felicidade terrena.

O burguês não pratica a atividade pela atividade em si, mas sim pelo fim que esta lhe permite alcançar: acumulação de riqueza, que por sua vez granjeará maior acumulação de riqueza. Seja qual for a atividade (comercial, financeira, industrial ou agrícola), o burguês nunca a vê como fim mas sempre como meio. Ao contrário das classes nobres e clericais cujo fim da sua atividade era a atividade em si (guerra, administração, ascetismo, estabelecimento dos ritos, etc.), o burguês, como o escravo, visa o trabalho para obter um benefício material, que no limite se resume à mera sobrevivência terrena. Tudo o que é espiritual, cultural e social, é acessório à sua função essencial.

Esta perspetiva de vida cria uma visão maniqueísta do mundo guiada pelos interesses privados, em que imperam os instintos de sobrevivência e a competição por recursos limitados onde os outros seres que pertencem à sua comunidade são: ou potenciais aliados seus - sejam sócios de negócio, fornecedores ou clientes - ou inimigos - competidores comerciais ou representantes de frentes e de correntes ideológicas que podem criar barreiras á sua atividade mercantil e financeira. Assim, é-lhe imperioso cair nas boas graças de todos e de manter uma rede de contactos a mais alargada possível que lhe permita potenciar ao máximo as oportunidades de negócio e respetiva rede de relações comerciais, assim como aniquilar os competidores atuais e potenciais. O burguês sabe que quantos mais homens conhecer e possa influenciar – sempre por via material, que no fundo é o único móbil que o guia e que projeta em todos os elementos da sua comunidade – aumenta exponencialmente as suas hipóteses de fortuna, pelo que naturalmente devota interesse às atividades coletivas da sociedade que lhe permitam publicitar o seu nome e assim ganhar credo e favores junto de uma rede o mais extensa possível. Assim, o seu ativismo social é quase sempre público, incluindo as suas atividades caritativas, que na verdade, constituem para ele investimentos que lhe trarão benefícios a algum prazo.

Este esforço constante de agradar ao máximo número de pessoas possível, manter uma aparência de caráter e de comportamento necessárias para efetuar negócios e estabelecer relações de interesse, mesmo que tal não corresponda à sua disposição interior, são das características principais do burguês. Ele é um exímio projetador da disposição e da atitude que julga serem as mais adequadas ao ambiente e aos interlocutores do momento, já que de tal depende o seu sucesso comercial. Além disso, ele deve dominar as práticas do chamado marketing e da autopromoção, enaltecendo a todo o momento a superior qualidade dos seus produtos e serviços, comparando-as favoravelmente às dos seus competidores, que subtilmente menospreza. Neste contexto, mais que a verdade e a etiqueta, ele tem de se preocupar em criar na mente dos seus interlocutores o cenário que mais lhe é favorável, por meio de artifícios variados, que no limite não correspondem de todo à realidade. Manter as aparências é mister. Quando na presença de um potencial cliente, ele tem de apreender a disposição e os gostos do mesmo, assim como a respetiva estação social e económica, de forma a adaptar a sua postura e atitude, para poder cair nas suas boas graças com o intuito de aumentar as probabilidades de efetuar a venda. A busca incessante do lucro que consome a maior parte da sua vida mental, aliada ao medo da concorrência e da erosão da sua fortuna - que teme acima de tudo o mais - causam nele uma profunda inquietação e irrequietismo, pelo que é normal vê-lo num constante afã com as suas atividades comerciais, sempre projetando futuros cenários de expansão comercial e de poupança, que para sempre consomem a sua vida, mesmo quando já é abastado.

O burguês é na essência um cosmopolita, no sentido moderno do termo, já que a busca da sua felicidade individual e material é potenciada pela constante expansão do seu círculo social, seja de que estrato, condição e latitude este consista. Se pertence formalmente a uma nação ou a uma instituição coletiva regional, a sua ambição, refletida na expansão da sua atividade, obriga ao estabelecimento de contactos e relações permanentes com interlocutores e mercados estrangeiros, pelo que a sua lealdade às instituições de origem é sempre de ordem secundária àquela atividade da qual depende o seu modo de vida.

Mais do que conhecimentos teóricos, religiosos e filosóficos, ele preocupa-se sobretudo com conhecimentos técnicos da respetiva atividade a que se encontra associado ou que possam facilitar o estabelecimento de negócios, como línguas estrangeiras, contabilidade, finanças, gestão, ou a criação de códigos e linguagens comerciais que reduzam ao máximo as barreiras mercantis. E do mesmo modo que pratica a sua atividade, ele apreende este conhecimento com o desiderato principal de assim obter mais vantagens materiais. A sua necessidade de conhecimento, limita-se quase sempre ao que de mais prosaico existe, resumindo-se na maior parte dos casos à coleção das notícias e factos que lhe permitam conceber uma ideia ou uma previsão de como navegar as águas turvas em que se movimenta na sua atividade comercial. Mesmo nas suas demandas mais intelectuais, raramente busca o conhecimento pelo conhecimento, pois quase sempre se dedica a algo que o possa beneficiar materialmente ou que lhe permita impressionar o seu círculo de relações. Mais que ser, o parecer continua a imperar.

O espírito burguês é essencialmente democrático, por várias ordens de razões. Primeiro, o burguês liberto detém um caráter subversivo, já que nutre dentro de si, originalmente ou por herança familiar, ressentimentos para com as classes que anteriormente se encontravam mais elevadas na hierarquia social – realeza, nobreza ou clérigo. Ele, quando não integrado em estruturas hierárquicas fortes e vivificadas, desconfia daquelas e vê como injusta a sua antiga ou ainda presente condição de subordinação – do seu posto, só observa a plebe do alto – e desdenha as tradições daquelas, que concebe somente como formalismos vazios pois, no fundo, sente-se inferiorizado pela mais elevada dignidade de porte que pressupõe uma superioridade que não é somente material, no fundo a única que o burguês e a plebe conhecem. O burguês, em todos os lugares em que se libertou dos grilhões da Tradição, aboliu as classes sociais superiores ou tentou usar a sua fortuna e influência para se lhes juntar, sinal já do ocaso eminente daquelas. Por outro lado, o burguês, vendo em todos os seres potenciais clientes ou parceiros de negócio, apreende a sociedade como um conjunto de seres qualitativamente iguais, mesmo que apenas formalmente. Qualquer distinção hierárquica ou imposição à liberdade individual é vista com desconfiança já que afetará a sua capacidade de expansão comercial e margens de lucro. Por outro lado, sendo a sua vida estabelecida à volta de contratos de compra e venda e de relações que se baseiam não na palavra dada ou na honra, mas na vontade escrita e legalmente ou judicialmente demandável - pois de tal depende a sua subsistência num mundo mercantilizado – tende naturalmente a expandir esta mundividência a toda a vida social e política. Partindo da sua vivência interior e dos hábitos que adota nos seus relacionamentos, concebe que todos os seres humanos são passíveis de faltar à palavra dada, pelo que cabe contratualizar o máximo de relações possíveis, maximizando assim a possibilidade do cumprimento das mesmas. Porém, o idealismo político da mente burguesa, que no fundo tem sempre um substrato utilitário, esbarra em todas as ocasiões em que as circunstâncias políticas ou económicas do momento ameaçam perturbar o seu modo de sustento. Em tais casos, quando se depara com uma oportunidade de negócio que só pode ser obtida por via política ou administrativa, ele não tem pejo em usar de táticas ilegais ou contrárias à ideologia coletiva que professa, já que, no final de contas, a sua ambição de sucesso comercial e social sobrepõe- se às convicções políticas e espirituais a que adere num dado momento, das quais se desenvencilha assim que tal se lhe depara como mais conveniente.

A visão contratualista e legalista do mundo e da vida vai efetivamente criar sistemas ideológicos que, por um lado, veem o bem privado como algo fundamental a proteger, que deve ser preservado a todo o custo da cobiça de terceiros, e que, por outro, minimizam a influência de órgãos superiores nas vontades individuais e comerciais. Este contratualismo estende-se obviamente ao seio das suas empresas e ofícios, onde, na pele de administrador de homens - vistos como meros recursos produtivos destituídos de verdadeira personalidade – uniformiza o mais possível as relações entre os trabalhadores e o detentor do capital, descurando sempre que pode as distinções qualitativas entre os homens, para focar unicamente as quantitativas (sejam físicas ou mentais) que contribuam para o maior sucesso da empresa, com a correspondente diferenciação na componente salarial de cada indivíduo, que adquire correlação com a componente produtiva. E se a exploração do fator humano na empresa mercantil é apresentado pelo burguês como sinal da sua fundamental bondade e dedicação à causa pública, justificando assim a busca crescente de mais e mais lucro, ele é o primeiro a implementar métodos de produção cada vez mais desumanos e duros, a deslocalizar empregos ou a automatizar por via mecânica e tecnológica a produção desde, quando tal lhe é mais benéfico.

Por outro lado, o burguês é essencialmente um produto do seu tempo, em todas as áreas, assumindo sempre publicamente as posições e as atitudes dominantes da comunidade. Ele vai sempre projetar-se para os outros como um esteio dos ‘melhores’ valores e conceções do momento, obrigação que estende aos elementos do seu círculo familiar mais próximo, cuja atividade e reputação podem igualmente afetar as suas atividades mercantis. E será sempre ele, seja em capacidade oficial ou como cidadão privado, a promover publicamente a moralidade reinante, os costumes sociais considerados de bom-tom ou os valores assumidos pela maioria dos concidadãos. Nunca o burguês toma publicamente posições radicais ou consideradas extremistas, já que tal afetará o seu negócio, que depende sempre de cair nas boas graças do maior número possível de potenciais clientes. No entanto, como no caso dos ideais políticas que perora publicamente, as suas práticas comerciais são suscetíveis de não se coadunarem com a moralidade que faz questão de pregar. E se a sua ambição o ‘obriga’ amiúde a práticas comerciais desleais e desonestas, não raras vezes embarca em atividades comerciais imorais e perniciosas para a sociedade que contrariam a propagada moralidade, mas que rapidamente racionaliza como criadoras de riqueza e de emprego para o coletivo.


Pensamos que o acima indicado, não sendo exaustivo, deixará ao leitor uma ideia mais bem-definida do arquétipo psíquico burguês que representa o espírito da nossa época. Não lhe será difícil transpor este espírito para o nosso tempo e observar este espírito a guiar as nossas empresas, escolas, igrejas, ministérios, partidos, ideologias, atitudes e comportamentos. Tal mereceria um outro ensaio, como também mereceria uma análise separada a crescente influência de um outro espírito, de tendência ainda mais inferior, que já corrói os alicerces do mundo burguês e que o irá destronar a médio prazo. Contamos debruçarmo-nos sobre ambos num futuro que esperamos breve.

2 comments:

  1. Considero este ensaio um contributo válido e incisivo sobre o actual espírito dominante.
    Obrigado pelo brilhante esforço de refexão.
    Um abraço
    Jc

    ReplyDelete
  2. Agradecemos o comentário e esperamos continuar a merecer a sua visita.

    João.

    ReplyDelete

Wakinyan-Tanka - O Simbolismo da Águia Entre os Peles Vermelhas

Com a devida vénia, deixamos traduzido o ensaio de António Medrano, originalmente publicado na já defunta publicação tradicionalista ...