Saturday, November 18, 2017

O Significado das Cruzadas




Para finalizar esta série de artigos sobre a missão espiritual do guerreiro, traduzimos o artigo 'O Significado das Cruzadas', de Julius Evola.

Aos leitores interessados em aprofundar a visão de Evola sobre o assunto, recomendamos a leitura da colectânea de artigos reunida pela Editora Arktos, intitulada 'Metafísica da Guerra', bem como a obra-prima de Evola, 'Revolta Contra o Mundo Moderno', especialmente a primeira parte do mesmo.


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Reiniciemos a nossa análise das tradições relativas ao heroísmo nas quais a guerra é considerada como um caminho de realização espiritual no sentido estrito do termo, e portanto adquire uma justificação e propósito transcendentes. Já discutimos as conceções do antigo mundo romano a este respeito. Depois descrevemos as tradições nórdicas em relação ao caráter imortalizante da verdadeira morte heroica no campo de batalha. Era necessário examinar estas tradições antes de considerar o mundo medieval, já que, como é geralmente reconhecido, a Idade Média, como uma cultura, surgiu da síntese de três elementos: primeiro, o Romano; segundo, o Nórdico; e terceiro, o Cristão.

Portanto, estamos agora em posição de examinar a ideia da ‘sacralidade da Guerra’ como a Idade Média Ocidental a conheceu e cultivou. Como é evidente, aqui referimo-nos às Cruzadas entendidas no seu sentido mais profundo, não no sentido reclamado pelos materialistas históricos, de acordo com os quais elas são meros efeitos de determinismo económicos e étnicos, nem no sentido reclamado por mentes ‘desenvolvidas’, de acordo com as quais estas são meros fenómenos de superstição e exaltação religiosa – nem, finalmente, consideramo-las inclusive como um simples fenómeno Cristão. A respeito a este último ponto é necessário não perder de vista a correta relação entre os meios e fins. É frequentemente dito que, nas Cruzadas, a fé Cristã fez uso do espírito heroico da cavalaria Ocidental. No entanto, o oposto é verdade: isto é dizer, a fé Cristã, e os imperativos relativos e contingentes da luta religiosa contra o ´infiel´ e a ‘libertação’ do ‘Templo’ e da ‘Terra Santa’, foram meramente os meios que permitiram ao espírito heroico manifestar-se, afirmar-se, e de realizar uma espécie de ascese, distinta daquela de tipo contemplativo, mas não menos rica nos frutos espirituais. A maior parte dos cavaleiros que forneceram as suas energias e o seu sangue para a ‘guerra santa’ apenas tinham as ideias mais vagas e os conhecimentos teológicos mais rudimentares acerca da doutrina pela qual lutavam.

No entanto, o contexto cultural das Cruzadas continha uma riqueza de elementos capazes de conferir sobre eles um mais elevado significado simbólico espiritual. Mitos transcendentes ressurgiram do subconsciente na alma da cavalaria Ocidental: a conquista da ‘Terra Santa’ localizada ‘além-mar’ estava muito mais associada do que muita gente imaginava com a antiga saga de acordo com a qual ‘no Oriente distante, onde o Sol se levanta, fica a cidade sagrada onde a morte não existe, e os felizes heróis capazes de a alcançar gozarão da serenidade celestial e da vida perpétua’.

Além disso, a luta contra o Islão tinha, pela sua natureza e desde o seu início, o significado de um teste ascético. ‘Esta não era apenas a luta pelos reinos da Terra’, escreveu o famoso historiador das Cruzadas, Kugler, ‘mas uma luta pelo Reino dos Céus: as Cruzadas não foram uma coisa de homens, mas de Deus – portanto, elas não devem ser pensadas do mesmo modo que os outros eventos humanos’.

A guerra sagrada, de acordo com um antigo cronista, devia ser comparada a ‘um banho como aquele no fogo do purgatório, mas antes da morte’. Os que morriam nas Cruzadas eram simbolicamente comparados pelos Papas e padres ao ‘ouro três vezes testado e sete vezes refinado no fogo’, uma provação purificante tão poderosa que abria a via para o Senhor supremo.

‘Nunca esqueçam este oráculo’, escreveu São Bernardo, ‘quer vivamos, ou quer morramos’ pertencemos ao Senhor. É uma glória para vós nunca abandonar a batalha [exceto se] cobertos de louros. Mas é uma glória ainda maior ganhar no campo de batalha uma coroa imortal […] Ó ditosa condição, na qual a morte pode ser aproximada sem medo, esperada com impaciência, e recebida com um coração sereno!’ Era prometido que o Cruzado obteria uma glória absoluta – gloris asolue, na língua provençal – e que ele encontraria ‘descanso no paraíso’ – conquerre lite en paradis – isto é dizer, ele atingiria a supra-vida, o estado de existência sobrenatural, algo para além da representação religiosa. A este respeito, Jerusalém, o objetivo ambicionado da conquista, aparecia num duplo aspeto, como uma cidade terrena e como um símbolo, cidade celestial e inatingível – e a Cruzada ganhava um valor interior independente de todos os significados exteriores, apoios ou motivos aparentes.

Além disso, a maior contribuição em termos humanos foi proporcionada às Cruzadas pelas ordens cavaleirescas como os Templários e os Cavaleiros de São João, que eram constituídas por homens que, como o monge ou o ascético Cristão, tinham aprendido a desprezar a vaidade desta vida; guerreiro cansado do mundo, que tudo tinha visto e de tudo desfrutado, que se refugiavam em tais ordens, fazendo-se então prontos para uma ação absoluta, livre dos interesses da vida comum, temporal, e também da vida política no sentido mais estreito do termo. Urbano VIII dirigia-se à cavalaria como a comunidade supranacional daqueles que estavam ‘prontos a correr para a guerra onde quer que esta desponte, e levar consigo o medo das suas armas em defesa da honra e da justiça’. Eles deveriam responder à chamada para a ‘guerra santa’ tão mais rapidamente, de acordo com um dos escritores do tempo, já que o prémio não seria um feudo terreno, sempre revogável e contingente, mas um ‘feudo celestial’.

Aliás, o curso das Cruzadas, com todas as suas mais extensas implicações para a ideologia geral da altura, guiava a uma purificação e a uma internalização do espírito da empresa. Dada a convicção inicial de que a guerra pela ‘verdadeira fé’ não podia ter que não fosse um resultado vitorioso, os primeiros reveses militares sofridos pelos exércitos Cruzados foram uma fonte de surpresa e de desalento; mas, no fim, elas serviram para trazer à luz o aspeto mais elevado da ‘guerra sagrada’. O infeliz destino da Cruzada foi comparado pelos clérigos de Roma aos infortúnios da virtude, que só são repostos noutra vida. Mas, ao tomar este rumo, eles já se encontravam próximos de reconhecer algo superior tanto à vitória como à derrota e de acordo com a maior importância dada ao aspeto distintivo da ação heroica que é alcançado independentemente de quaisquer frutos visíveis e materiais, quase no sentido de uma oferenda, que traz consigo, do sacrifício viril de todos os elementos humanos, a imortalizante ‘glória absoluta’.

Vê-se que deste modo eles aproximavam-se de um plano que era supra-tradicional, no sentido mais restrito, histórico e religioso da palavra ‘tradição’. A fé religiosa particular, os propósitos imediatos, o espírito antagonista, eram claramente revelados como meios, como inessenciais em si mesmos, como a própria natureza de um combustível que é usado com o único propósito de reavivar e de alimentar uma chama. O que restava no centro, no entanto, era o sagrado valor da guerra. Então tornou-se possível reconhecer que os elementos do momento atribuíam à batalha o mesmo significado tradicional.

Deste modo e apesar de tudo, as Cruzadas permitiram enriquecer a troca comercial entre o Ocidente Gibelino e o Oriente Árabe (ele mesmo centro de mais antigos elementos tradicionais), uma troca cuja significância é muito maior do que a até aqui atribuída pela maior parte dos historiadores. Como os cavaleiros das ordens cruzadas encontraram-se na presença dos cavaleiros das ordens árabes que eram praticamente seus duplos, manifestando correspondências em éticas, costumes, e por vezes também em símbolos, pelo que a ‘guerra santa’ que impeliu as duas civilizações uma contra a outra sob o nome das suas respetivas religiões, levou-os ao mesmo tempo a encontrarem-se, isto é dizer, a compreender que, apesar de terem como ponto de partida duas fés diferentes, eles tinham eventualmente concordado guerrear os idênticos e independentes valores da espiritualidade.

No nosso próximo artigo, vamos estudar o modo pelo qual, das premissas desta fé os antigos Cavaleiros árabes ascenderam ao mesmo ponto supra-tradicional do Cavaleiro Cruzado obtido pelo seu ascetismo heroico.

Por agora, no entanto, gostaríamos de lidar com um ponto diferente. Aqueles que consideram as Cruzadas, com indignação, como entre os mais extravagantes episódios da ‘negra’ Idade Média, não têm sequer a menor suspeita de que o que chamam de ‘fanatismo religioso’ foi o sinal visível da presença e da efetividade de uma sensibilidade e determinação, a ausência da qual é mais característica do verdadeiro barbarismo. De facto, o homem das Cruzadas foi capaz de se elevar, de lutar e morrer por um propósito que, na sua essência, era suprapolítico e supra-humano, e servir numa frente definida não mais pelo que é particularístico, mas antes pelo que é universal. Isto mantém-se um valor, um inamovível ponto de referência.

Naturalmente, isto não deve ser incompreendido para significar que o motivo transcendental possa ser usado como uma desculpa para o guerreiro se tornar indiferente, para se esquecer das obrigações inerentes à sua pertença a uma raça ou a uma pátria. Este não é de todo o nosso ponto, que se preocupa antes com os significados profundamente díspares de acordo com os quais as ações e os sacrifícios podem ser experimentados, apesar do facto que, do ponto de vista externo, eles possam ser absolutamente os mesmos. Existe uma diferença radical entre aquele que se envolve na guerra simplesmente como tal, e aquele que simultaneamente se envolve numa ‘guerra sagrada’ e encontra nela uma experiência mais elevada, ambas desejadas e desejáveis para o espírito.

Devemos acrescentar que, apesar de esta diferença ser primariamente interior, no entanto, porque os poderes de interioridade são permitidos encontrar expressão também na exterioridade, derivam efeitos dela também no plano exterior, especificamente nos seguintes aspetos:

Primeiro que tudo, numa ‘indomabilidade’ do impulso heroico: o que experimenta espiritualmente o heroísmo é permeado por uma tensão metafísica, um ímpeto, cujo objeto é ‘infinito’, e que, portanto, levá-lo-á perpetuamente em frente, para além da capacidade daquele que luta por necessidade, que luta por como um ofício, ou que é empurrado por instintos naturais ou sugestão externa.

Segundo, aquele que luta de acordo com o sentido de uma ‘guerra sagrada’ encontra-se espontaneamente para além de todo o particularismo e subsiste num clima espiritual o qual, a qualquer dado momento, pode muito bem fazer surgir e dar vida a uma unidade de ação supranacional. Isto é precisamente o que ocorreu nas Cruzadas quando príncipes e duques de todos os territórios se juntaram numa empresa heroica e sagrada, independentemente dos seus interesses utilitários e divisões políticas particulares, fazendo surgir pela primeira vez a grande unidade Europeia, fiel à própria civilização e ao princípio próprio do Sacro Império Romano.

Agora, neste respeito também, se formos capazes de deixar de lado o ‘integumento’, se formos capazes de isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento cujo valor precioso não é restrito a qualquer período histórico particular. Para suceder em referir a ação heroica também a um plano ‘ascético’, e em justificar o primeiro de acordo com o último, é aclarar o caminho em direção a uma possível unidade de civilização, de renovar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o ambiente para grandes distâncias, e para maiores frentes, e, portanto, para gradualmente adaptar os propósitos externos de ação para o seu novo significado espiritual, quando ela não é mais um território ou as ambições temporais de um território pelo que se luta, mas um princípio superior de civilização, uma prefiguração do que, apesar de ainda metafísico, se move sempre em frente, para além de todo o limite, para além de todo o perigo, para além de toda a destruição.



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