Para finalizar esta série de artigos sobre a missão espiritual do guerreiro, traduzimos o artigo 'O Significado das Cruzadas', de Julius Evola.
Aos leitores interessados em aprofundar a visão de Evola sobre o assunto, recomendamos a leitura da colectânea de artigos reunida pela Editora Arktos, intitulada 'Metafísica da Guerra', bem como a obra-prima de Evola, 'Revolta Contra o Mundo Moderno', especialmente a primeira parte do mesmo.
Reiniciemos a nossa análise das tradições relativas
ao heroísmo nas quais a guerra é considerada como um caminho de realização
espiritual no sentido estrito do termo, e portanto adquire uma justificação e
propósito transcendentes. Já discutimos as conceções do antigo mundo romano a
este respeito. Depois descrevemos as tradições nórdicas em relação ao caráter
imortalizante da verdadeira morte heroica no campo de batalha. Era necessário
examinar estas tradições antes de considerar o mundo medieval, já que, como é
geralmente reconhecido, a Idade Média, como uma cultura, surgiu da síntese de
três elementos: primeiro, o Romano; segundo, o Nórdico; e terceiro, o Cristão.
Portanto, estamos agora em posição de examinar a
ideia da ‘sacralidade da Guerra’ como a Idade Média Ocidental a conheceu e
cultivou. Como é evidente, aqui referimo-nos às Cruzadas entendidas no seu
sentido mais profundo, não no sentido reclamado pelos materialistas históricos,
de acordo com os quais elas são meros efeitos de determinismo económicos e
étnicos, nem no sentido reclamado por mentes ‘desenvolvidas’, de acordo com as
quais estas são meros fenómenos de superstição e exaltação religiosa – nem,
finalmente, consideramo-las inclusive como um simples fenómeno Cristão. A
respeito a este último ponto é necessário não perder de vista a correta relação
entre os meios e fins. É frequentemente dito que, nas Cruzadas, a fé Cristã fez
uso do espírito heroico da cavalaria Ocidental. No entanto, o oposto é verdade:
isto é dizer, a fé Cristã, e os imperativos relativos e contingentes da luta
religiosa contra o ´infiel´ e a ‘libertação’ do ‘Templo’ e da ‘Terra Santa’,
foram meramente os meios que permitiram ao espírito heroico manifestar-se,
afirmar-se, e de realizar uma espécie de ascese, distinta daquela de tipo
contemplativo, mas não menos rica nos frutos espirituais. A maior parte dos
cavaleiros que forneceram as suas energias e o seu sangue para a ‘guerra santa’
apenas tinham as ideias mais vagas e os conhecimentos teológicos mais
rudimentares acerca da doutrina pela qual lutavam.
No entanto, o contexto cultural das Cruzadas continha
uma riqueza de elementos capazes de conferir sobre eles um mais elevado
significado simbólico espiritual. Mitos transcendentes ressurgiram do
subconsciente na alma da cavalaria Ocidental: a conquista da ‘Terra Santa’
localizada ‘além-mar’ estava muito mais associada do que muita gente imaginava
com a antiga saga de acordo com a qual ‘no Oriente distante, onde o Sol se
levanta, fica a cidade sagrada onde a morte não existe, e os felizes heróis
capazes de a alcançar gozarão da serenidade celestial e da vida perpétua’.
Além disso, a luta contra o Islão tinha, pela sua
natureza e desde o seu início, o significado de um teste ascético. ‘Esta não
era apenas a luta pelos reinos da Terra’, escreveu o famoso historiador das Cruzadas,
Kugler, ‘mas uma luta pelo Reino dos Céus: as Cruzadas não foram uma coisa de
homens, mas de Deus – portanto, elas não devem ser pensadas do mesmo modo que
os outros eventos humanos’.
A guerra sagrada, de acordo com um antigo cronista,
devia ser comparada a ‘um banho como aquele no fogo do purgatório, mas antes da
morte’. Os que morriam nas Cruzadas eram simbolicamente comparados pelos Papas
e padres ao ‘ouro três vezes testado e sete vezes refinado no fogo’, uma
provação purificante tão poderosa que abria a via para o Senhor supremo.
‘Nunca esqueçam este oráculo’, escreveu São
Bernardo, ‘quer vivamos, ou quer morramos’ pertencemos ao Senhor. É uma glória
para vós nunca abandonar a batalha [exceto se] cobertos de louros. Mas é uma
glória ainda maior ganhar no campo de batalha uma coroa imortal […] Ó ditosa
condição, na qual a morte pode ser aproximada sem medo, esperada com
impaciência, e recebida com um coração sereno!’ Era prometido que o Cruzado
obteria uma glória absoluta – gloris
asolue, na língua provençal – e que ele encontraria ‘descanso no paraíso’ –
conquerre lite en paradis – isto é
dizer, ele atingiria a supra-vida, o estado de existência sobrenatural, algo
para além da representação religiosa. A este respeito, Jerusalém, o objetivo
ambicionado da conquista, aparecia num duplo aspeto, como uma cidade terrena e
como um símbolo, cidade celestial e inatingível – e a Cruzada ganhava um valor
interior independente de todos os significados exteriores, apoios ou motivos
aparentes.
Além disso, a maior contribuição em termos humanos
foi proporcionada às Cruzadas pelas ordens cavaleirescas como os Templários e
os Cavaleiros de São João, que eram constituídas por homens que, como o monge
ou o ascético Cristão, tinham aprendido a desprezar a vaidade desta vida; guerreiro
cansado do mundo, que tudo tinha visto e de tudo desfrutado, que se refugiavam
em tais ordens, fazendo-se então prontos para uma ação absoluta, livre dos
interesses da vida comum, temporal, e também da vida política no sentido mais
estreito do termo. Urbano VIII dirigia-se à cavalaria como a comunidade supranacional
daqueles que estavam ‘prontos a correr para a guerra onde quer que esta
desponte, e levar consigo o medo das suas armas em defesa da honra e da
justiça’. Eles deveriam responder à chamada para a ‘guerra santa’ tão mais
rapidamente, de acordo com um dos escritores do tempo, já que o prémio não seria
um feudo terreno, sempre revogável e contingente, mas um ‘feudo celestial’.
Aliás, o curso das Cruzadas, com todas as suas mais
extensas implicações para a ideologia geral da altura, guiava a uma purificação
e a uma internalização do espírito da empresa. Dada a convicção inicial de que
a guerra pela ‘verdadeira fé’ não podia ter que não fosse um resultado
vitorioso, os primeiros reveses militares sofridos pelos exércitos Cruzados
foram uma fonte de surpresa e de desalento; mas, no fim, elas serviram para
trazer à luz o aspeto mais elevado da ‘guerra sagrada’. O infeliz destino da
Cruzada foi comparado pelos clérigos de Roma aos infortúnios da virtude, que só
são repostos noutra vida. Mas, ao
tomar este rumo, eles já se encontravam próximos de reconhecer algo superior
tanto à vitória como à derrota e de acordo com a maior importância dada ao
aspeto distintivo da ação heroica que é alcançado independentemente de
quaisquer frutos visíveis e materiais, quase no sentido de uma oferenda, que
traz consigo, do sacrifício viril de todos os elementos humanos, a
imortalizante ‘glória absoluta’.
Vê-se que deste modo eles aproximavam-se de um
plano que era supra-tradicional, no sentido mais restrito, histórico e
religioso da palavra ‘tradição’. A fé religiosa particular, os propósitos
imediatos, o espírito antagonista, eram claramente revelados como meios, como inessenciais
em si mesmos, como a própria natureza de um combustível que é usado com o único
propósito de reavivar e de alimentar uma chama. O que restava no centro, no
entanto, era o sagrado valor da guerra. Então tornou-se possível reconhecer que
os elementos do momento atribuíam à batalha o mesmo significado tradicional.
Deste modo e apesar de tudo, as Cruzadas permitiram
enriquecer a troca comercial entre o Ocidente Gibelino e o Oriente Árabe (ele
mesmo centro de mais antigos elementos tradicionais), uma troca cuja
significância é muito maior do que a até aqui atribuída pela maior parte dos
historiadores. Como os cavaleiros das ordens cruzadas encontraram-se na
presença dos cavaleiros das ordens árabes que eram praticamente seus duplos,
manifestando correspondências em éticas, costumes, e por vezes também em símbolos,
pelo que a ‘guerra santa’ que impeliu as duas civilizações uma contra a outra
sob o nome das suas respetivas religiões, levou-os ao mesmo tempo a
encontrarem-se, isto é dizer, a compreender que, apesar de terem como ponto de
partida duas fés diferentes, eles tinham eventualmente concordado guerrear os
idênticos e independentes valores da espiritualidade.
No nosso próximo artigo, vamos estudar o modo pelo
qual, das premissas desta fé os antigos Cavaleiros árabes ascenderam ao mesmo
ponto supra-tradicional do Cavaleiro Cruzado obtido pelo seu ascetismo heroico.
Por agora, no entanto, gostaríamos de lidar com um
ponto diferente. Aqueles que consideram as Cruzadas, com indignação, como entre
os mais extravagantes episódios da ‘negra’ Idade Média, não têm sequer a menor
suspeita de que o que chamam de ‘fanatismo religioso’ foi o sinal visível da
presença e da efetividade de uma sensibilidade e determinação, a ausência da
qual é mais característica do verdadeiro barbarismo. De facto, o homem das
Cruzadas foi capaz de se elevar, de lutar
e morrer por um propósito que, na sua essência, era suprapolítico e
supra-humano, e servir numa frente definida não mais pelo que é
particularístico, mas antes pelo que é universal. Isto mantém-se um valor, um
inamovível ponto de referência.
Naturalmente, isto não deve ser incompreendido para
significar que o motivo transcendental possa ser usado como uma desculpa para o
guerreiro se tornar indiferente, para se esquecer das obrigações inerentes à
sua pertença a uma raça ou a uma pátria. Este não é de todo o nosso ponto, que
se preocupa antes com os significados profundamente díspares de acordo com os
quais as ações e os sacrifícios podem ser experimentados, apesar do facto que,
do ponto de vista externo, eles possam ser absolutamente os mesmos. Existe uma
diferença radical entre aquele que se envolve na guerra simplesmente como tal,
e aquele que simultaneamente se envolve numa ‘guerra sagrada’ e encontra nela
uma experiência mais elevada, ambas desejadas e desejáveis para o espírito.
Devemos acrescentar que, apesar de esta diferença ser
primariamente interior, no entanto, porque os poderes de interioridade são
permitidos encontrar expressão também na exterioridade, derivam efeitos dela
também no plano exterior, especificamente nos seguintes aspetos:
Primeiro que tudo, numa ‘indomabilidade’ do impulso
heroico: o que experimenta espiritualmente o heroísmo é permeado por uma tensão
metafísica, um ímpeto, cujo objeto é ‘infinito’, e que, portanto, levá-lo-á perpetuamente
em frente, para além da capacidade daquele que luta por necessidade, que luta
por como um ofício, ou que é empurrado por instintos naturais ou sugestão
externa.
Segundo, aquele que luta de acordo com o sentido de
uma ‘guerra sagrada’ encontra-se espontaneamente para além de todo o
particularismo e subsiste num clima espiritual o qual, a qualquer dado momento,
pode muito bem fazer surgir e dar vida a uma unidade de ação supranacional.
Isto é precisamente o que ocorreu nas Cruzadas quando príncipes e duques de
todos os territórios se juntaram numa empresa heroica e sagrada,
independentemente dos seus interesses utilitários e divisões políticas particulares,
fazendo surgir pela primeira vez a grande unidade Europeia, fiel à própria
civilização e ao princípio próprio do Sacro Império Romano.
Agora, neste respeito também, se formos capazes de
deixar de lado o ‘integumento’, se formos capazes de isolar o essencial do
contingente, encontraremos um elemento cujo valor precioso não é restrito a
qualquer período histórico particular. Para suceder em referir a ação heroica
também a um plano ‘ascético’, e em justificar o primeiro de acordo com o
último, é aclarar o caminho em direção a uma possível unidade de civilização,
de renovar todo o antagonismo condicionado pela matéria, preparar o ambiente
para grandes distâncias, e para maiores frentes, e, portanto, para gradualmente
adaptar os propósitos externos de ação para o seu novo significado espiritual,
quando ela não é mais um território ou as ambições temporais de um território pelo
que se luta, mas um princípio superior de civilização, uma prefiguração do que,
apesar de ainda metafísico, se move sempre em frente, para além de todo o
limite, para além de todo o perigo, para além de toda a destruição.
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