Thursday, July 20, 2017

Em Defesa da Burka



Na esteira dos acontecimentos geopolíticos pós-11 de Setembro, tanto os círculos intelectuais dominantes, bem como a esmagadora maioria da população ocidental, consideram que o atual grande vetor de confrontação mundial é representado pelo binómio mundo ocidentalizado/mundo islâmico.

Fala-se cada vez com maior intensidade da ameaça que o Islão representa para os valores ocidentais, originando esta tanto dos sectores radicais da “ideologia islâmica”, bem como dos representantes moderados da mesma, que toleram no seu seio o crescimento do ódio ao Ocidente e que, no fundo, por ações e omissões, pactuam com o mesmo objetivo: a destruição do Ocidente.

Segundo a opinião mais ou menos generalizada, o famoso ataque de Bin Laden às Torres Gémeas e ao Pentágono foi o primeiro salvo numa luta civilizacional que perdurará até à vitória decisiva do Bem contra o Mal: aquele representado pelos valores democráticos e humanistas, este representado pelas forças retrógradas que usam uma interpretação fanática do Islão para manterem subjugadas grandes partes da população mundial.

Mesmo não havendo consenso sobre os meios táticos a empregar nesta luta (confrontação militar, democratização do Islão, assimilação populacional, fomentação de divisões internas no seio inimigo, bombardeamentos nucleares, pacifismo, controles migratórios, etc.), todo o atual espectro político no Oeste - de liberais, a socialistas, sociais-democratas, anárquicos, monárquicos, feministas, conservadores religiosos, comunistas, libertários, ou elementos da direita radical moderna – junta-se em uníssono na asserção que o mundo islâmico representa um retrocesso em relação ao ideário moderno (seja este o atual ou o idealizado).

Neste contexto, uma das questões que amiúde vem a debate é o da permissão do uso da burka ou do chamado véu islâmico (hijab) em espaços públicos na Europa. Não sem gozo constato que na oposição mais vociférica ao uso daqueles trajes unem-se, aos expectáveis elementos laicos mais ou menos radicais - feministas, comunistas, libertários, liberais económicos, etc. - a chamada “direita dos valores”: na Europa, incluímos nesta designação todos os conservadores sociais/religiosos, bem como partidos de tendências autoritárias e monarquistas; nos EUA, os chamados “value voters” e os mais recentes movimentos “Tea Party” e “Alt-Right”, representam um bloco paralelo.

Uma palavra aqui para o “apoio” que alguns sectores da esquerda e, incluso, grupos feministas, fazem do uso da burka ou do véu islâmico – tal acontece apenas por razões táticas de combate à sociedade ocidental atual, que, na sua ótica, não é radical o suficiente e que ainda é dominada por estruturas de poder social e económico que continuam a oprimir, entre outros, a mulher, as raças não brancas e as classes desfavorecidas. O uso da burka é, então, um instrumento da mulher islâmica oprimida pelo Ocidente - na maior parte dos casos, ela é “de côr” e provém de estratos sociais mais desfavorecidos - de usar a sua feminidade e liberdade de escolha de traje e assim atacar as estruturas de poder brancas e patriarcais. Basta contrastar a tolerância que esta esquerda (normalmente caviar) mostra para com a mulher islâmica tradicional, com o desdém e ódio que nutre por uma freira católica, para perceber as suas verdadeiras motivações.

A busca desapaixonada do corrente uso da burka não pode ser dissociada do papel que o vestuário, em geral, ocupava nas sociedades antigas tradicionais, algumas que ainda hoje perduram, se bem que num modo cada vez menos puro.

Se no Ocidente de hoje, o vestuário representa a visão utilitária que o moderno tem da vida, uma expressão da sua pretensa individualidade e liberdade, quando não um instrumento para o progresso destes valores (basta atentar no efeito libertador/desagregador que o bikini ou a mini-saia tiveram na sociedade do séc. XX), no mundo tradicional, no qual incluímos a civilização islâmica ou, por exemplo, a Europa da Idade Média, a roupa e o modo de vestir, tanto nos espaços públicos e privados, é o reflexo da mundividência sobrenatural dessa sociedade, que não é ordenada com base na mera agregação de vontades individuais, mas com base em valores absolutos de caráter espiritual/religioso, que permeiam a sociedade do cimo até à sua base.

Não cabendo aqui dissecar estes valores absolutos ou explicar em detalhe como estas sociedades não foram formadas por uma vontade meramente humana, é importante reter que toda a legislação, estratificação e costumes destas viam no absoluto a sua origem e tinham como função servi-lo, pelo que não subsistiam por si mesmas. O esquecimento ou violação daqueles preceitos acarretaria consequências gravíssimas que afetariam não só a própria ordenação social como também – e mais importante –a tensão espiritual da mesma, pela infiltração de forças de espírito subversivo.

Ao vestuário - modo como os cidadãos se apresentam para com os outros membros da sociedade no exercício das suas funções públicas e privadas - assistia uma importância enorme, que completamente escapa ao cidadão moderno. Por exemplo, a um membro da classe mercantil caberia um tipo de vestimenta que um artífice manual não teria; ou a um lavrador nunca lhe passaria pela cabeça vestir-se como um nobre e vice-versa, mesmo que tivesse meios para tal.

Ainda de maior importância era a acentuação da diferenciação de indumentárias entre membros dos 2 sexos, já que a atribuição do género sexual não era um acaso (ou uma mera construção social, como alguma intelectualidade esquerdista em voga hoje afirma), mas sim algo divino que caberia acentuar para manter a tensão espiritual acima referida e cumprir a respetiva função individual na Terra.


Referindo-nos em particular à indumentária feminina, cabe mencionar que, especialmente com o advento das religiões abraâmicas - surgidas já em plena etapa da história humana em que o Conhecimento Primordial se tinha evaporada na mente dos homens (a chamada Idade de Ferro), uma ainda maior atenção foi dada, entre outros aspetos sociais, à limitação da feminilidade afrodisíaca no seio dessas sociedades. O homem, considerado então como caído e irremediavelmente perdido, já não possuía em si a força espiritual para combater as chamadas forças diabólicas que controlavam a Terra, pelo que se lhe impuseram os mais duros controlos externos – diríamos mesmo desesperados – para manter no seio da humanidade a tensão espiritual que permitisse ainda um contacto, por muito ténue que fosse, com o sagrado.

Essa acentuação dos controlos sociais passaram por uma ainda maior atenção dada à cobertura do corpo da mulher, tanto em espaços públicos, como privados, onde, para além dos órgãos sexuais, se prestou atenção a elementos do corpo feminino considerados mais afrodisíacos, como os cabelos, pescoço, ombros ou pés, que teriam de estar cobertos ou fora de vista por parte de membros do sexo masculino não autorizados (à feminilidade afrodisíaca e sensualista cabia também uma função reconhecida e estruturada, sobre a qual não nos debruçaremos aqui a fundo).

Se o homem moderno já não consegue conceber tais membros como sexuais - exceto por via do que hoje se chamam fetiches e taras, que, tendo uma natureza desviante, não são fruto do acaso - tal é essencialmente um sintoma da sua atual grosseria e dessensibilização para o verdadeiro sensualismo feminino, cujos antigos compreendiam de forma muito mais aguda e perspicaz (basta para tal comparar a sabedoria contida em tratados sexuais do mundo antigo, como o Kama Sutra ou rituais de copulação no mundo islâmico, com o mecanicismo sexual moderno).

A não exposição da carne e respetiva cobertura de órgãos femininos acima referidos, assim como a exaltação da discrição e sobriedade, o não porte de enfeites e acessórios, ou o uso de roupas sem cores, era considerado fundamental para a não acentuação das características sensuais da mulher, principalmente na praça pública, cujo efeitos “diabólicos” eram justificados por razões da teologia coeva, mas principalmente pela perceção dos respetivos efeitos espirituais no mundo terreno, conhecimento esse que tinha origens muito anteriores e que sempre presidiram, em menor ou maior grau, à configuração das sociedades tradicionais de todo o mundo, da América do Norte ao Japão, e cujos vestígios ainda perduram.

Em Portugal, como é sabido, especialmente em zonas rurais, são frequentes os casos de mulheres que cobrem o corpo e a cabeça de negro na via pública, desde o momento da viuvez até à morte, ou de senhoras que cobrem a cabelo com um véu aquando da ida à missa. A estes exemplos, poderíamos adicionar centenas de outros usos que, em maior ou menor grau e por todo o mundo, se mantém e demonstram a universalidade de uma mesma conceção do papel da mulher na sociedade.

O exemplo mais flagrante nos dias que correm e o que mais choca o ocidental, exatamente pelo fosso que mostra entre as conceções modernistas e tradicionais, é o do uso do véu islâmico e da burka nas grandes cidades europeias. Os recentes movimentos migratórios de massa vincaram estas diferenças e não é de estranhar que só no Ocidente, onde os ventos modernistas mais se expandiram, tal uso é questionado e censurado.

Como o moderno não tem a mínima ideia das bases da verdadeira Tradição, da qual o mundo islâmico ainda mantém vestígios, a imposição do modo de vestir – que também existe para o homem islâmico – é só entendido em termos de dominação económica ou de ‘construções’ socias de poder, próprias de sociedades não “evoluídas”. Como a visão utilitária do homem moderno só admite uma limitação de comportamentos por via legal ou democrática, este não concebe que existam grupos humanos que rejam o seu comportamento individual e coletivo por princípios não individualísticos e sagrados. Mesmo que tais comportamentos estejam legislados em documentos antiquíssimos, ele é rápido a desprezá-los como anacrónicos ou meras invenções humanas.

O que mais espanta nesta questão é o facto de, na presença de um comportamento social, derivado de princípios religiosos e tradicionais de base imemorial, este ser violentamente atacado pelos chamados conservadores ocidentais; especialmente quando são estes os primeiros a denunciar os comportamentos amorais dos seus concidadãos e a quebra de valores não individualísticos que afetam as antigas instituições societárias.

É fácil de notar a razão: os chamados conservadores, no fundo, não estão menos infetados pelo vírus progressista que os seus “opositores” de esquerda, dos quais copiam os mesmos tiques e muito raramente divergem em questões verdadeiramente fraturantes ou civilizacionais.

Se se queixam, com razão, de vivermos numa sociedade de matriz essencialmente feminina, onde a virilidade e a verdadeira masculinidade não têm meios de expressão e escape, tal muito se deve ao não freio do sensualismo feminino, em casa, no trabalho e, principalmente, no espaço público.

A população masculina, sem referências e instrumentos de o contrariar ou de saber como utilizá-lo com vista a realizações superiores, vê-se instrumentalizado pelo mesmo. Tanto o crescimento do homossexualismo e da feminização do homem, como a busca desenfreada de sexo com base num cortejo da mulher em que o homem se remete essencialmente a artifícios sensualistas e não viris, são sintomas da causa acima descrita (poderíamos descrever outros fenómenos que são sintomas da mesma dominação feminina, como a atual publicidade com base sexual, pornografia, etc., mas tal mereceria um texto à parte).

Criticar a burka e o véu islâmico, e neste aspeto qualquer vestimenta tradicional, é um ataque aos valores da verdadeira feminidade e de tudo que neste momento o mundo ocidental perdeu.

Mais, sendo este um dos mais poderosos símbolos tradicionais ainda visíveis no mundo moderno, entre todos os símbolos modernistas que poluem a nossas sociedades, pode ter uma função de reavivar uma consciencialização do cidadão comum, que pressente o abismo que se avizinha. A burka, e com ela tudo o que esta representa em termos da função e hierarquização dos sexos, da importância dos valores não materiais e o que comporta conduzir uma vida com verdadeiro significado, pode reavivar o anseio pelo sagrado que todo o homem, mesmo inconscientemente, busca.


Se a Europa quer voltar aos valores viris e a uma base tradicional, verdadeiramente Ocidental, terá que retirar lições do que ainda se pode salvar das sociedades mais orientais, donde se inclui necessariamente o mundo islâmico, por muito que doa aos chamadas conservadores, que, parece, foram levados pela propaganda subversiva a também entender que o Ocidente está em guerra com o mundo islâmico. Não, agora e sempre o modernismo está em guerra com o tradicionalismo - se o verdadeiro Ocidente quer renascer, parece óbvio que lado escolher!

2 comments:

  1. Excelente texto. Nem um ponto a acrescentar. Parabéns.

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  2. Meu caro, agradecido pelo elogio e contando vê-lo aqui frequentemente.

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