Na esteira dos acontecimentos geopolíticos pós-11 de
Setembro, tanto os círculos intelectuais dominantes, bem como a esmagadora
maioria da população ocidental, consideram que o atual grande vetor de
confrontação mundial é representado pelo binómio mundo ocidentalizado/mundo
islâmico.
Fala-se cada vez com maior intensidade da ameaça que o
Islão representa para os valores ocidentais, originando esta tanto dos sectores
radicais da “ideologia islâmica”, bem como dos representantes moderados da
mesma, que toleram no seu seio o crescimento do ódio ao Ocidente e que, no
fundo, por ações e omissões, pactuam com o mesmo objetivo: a destruição do Ocidente.
Segundo a opinião mais ou menos generalizada, o famoso
ataque de Bin Laden às Torres Gémeas e ao Pentágono foi o primeiro salvo numa
luta civilizacional que perdurará até à vitória decisiva do Bem contra o Mal: aquele
representado pelos valores democráticos e humanistas, este representado pelas
forças retrógradas que usam uma interpretação fanática do Islão para manterem
subjugadas grandes partes da população mundial.
Mesmo não havendo consenso sobre os meios táticos a
empregar nesta luta (confrontação militar, democratização do Islão, assimilação
populacional, fomentação de divisões internas no seio inimigo, bombardeamentos
nucleares, pacifismo, controles migratórios, etc.), todo o atual espectro
político no Oeste - de liberais, a socialistas, sociais-democratas, anárquicos,
monárquicos, feministas, conservadores religiosos, comunistas, libertários, ou
elementos da direita radical moderna – junta-se em uníssono na asserção que o
mundo islâmico representa um retrocesso em relação ao ideário moderno (seja
este o atual ou o idealizado).
Neste contexto, uma das questões que amiúde vem a
debate é o da permissão do uso da burka ou do chamado véu islâmico (hijab) em
espaços públicos na Europa. Não sem gozo constato que na oposição mais
vociférica ao uso daqueles trajes unem-se, aos expectáveis elementos laicos mais
ou menos radicais - feministas, comunistas, libertários, liberais económicos,
etc. - a chamada “direita dos valores”: na Europa, incluímos nesta designação
todos os conservadores sociais/religiosos, bem como partidos de tendências
autoritárias e monarquistas; nos EUA, os chamados “value voters” e os mais
recentes movimentos “Tea Party” e “Alt-Right”, representam um bloco paralelo.
Uma palavra aqui para o “apoio” que alguns sectores da
esquerda e, incluso, grupos feministas, fazem do uso da burka ou do véu
islâmico – tal acontece apenas por razões táticas de combate à sociedade
ocidental atual, que, na sua ótica, não é radical o suficiente e que ainda é
dominada por estruturas de poder social e económico que continuam a oprimir,
entre outros, a mulher, as raças não brancas e as classes desfavorecidas. O uso
da burka é, então, um instrumento da mulher islâmica oprimida pelo Ocidente -
na maior parte dos casos, ela é “de côr” e provém de estratos sociais mais
desfavorecidos - de usar a sua feminidade e liberdade de escolha de traje e
assim atacar as estruturas de poder brancas e patriarcais. Basta contrastar a
tolerância que esta esquerda (normalmente caviar) mostra para com a mulher
islâmica tradicional, com o desdém e ódio que nutre por uma freira católica,
para perceber as suas verdadeiras motivações.
A busca desapaixonada do corrente uso da burka não
pode ser dissociada do papel que o vestuário, em geral, ocupava nas sociedades
antigas tradicionais, algumas que ainda hoje perduram, se bem que num modo cada
vez menos puro.
Se no Ocidente de hoje, o vestuário representa a visão
utilitária que o moderno tem da vida, uma expressão da sua pretensa
individualidade e liberdade, quando não um instrumento para o progresso destes
valores (basta atentar no efeito libertador/desagregador que o bikini ou a
mini-saia tiveram na sociedade do séc. XX), no mundo tradicional, no qual
incluímos a civilização islâmica ou, por exemplo, a Europa da Idade Média, a
roupa e o modo de vestir, tanto nos espaços públicos e privados, é o reflexo da
mundividência sobrenatural dessa sociedade, que não é ordenada com base na mera
agregação de vontades individuais, mas com base em valores absolutos de caráter
espiritual/religioso, que permeiam a sociedade do cimo até à sua base.
Não cabendo aqui dissecar estes valores absolutos ou
explicar em detalhe como estas sociedades não foram formadas por uma vontade
meramente humana, é importante reter que toda a legislação, estratificação e
costumes destas viam no absoluto a sua origem e tinham como função servi-lo,
pelo que não subsistiam por si mesmas. O esquecimento ou violação daqueles
preceitos acarretaria consequências gravíssimas que afetariam não só a própria
ordenação social como também – e mais importante –a tensão espiritual da mesma,
pela infiltração de forças de espírito subversivo.
Ao vestuário - modo como os cidadãos se apresentam
para com os outros membros da sociedade no exercício das suas funções públicas
e privadas - assistia uma importância enorme, que completamente escapa ao
cidadão moderno. Por exemplo, a um membro da classe mercantil caberia um tipo
de vestimenta que um artífice manual não teria; ou a um lavrador nunca lhe
passaria pela cabeça vestir-se como um nobre e vice-versa, mesmo que tivesse
meios para tal.
Ainda de maior importância era a acentuação da
diferenciação de indumentárias entre membros dos 2 sexos, já que a atribuição
do género sexual não era um acaso (ou uma mera construção social, como alguma
intelectualidade esquerdista em voga hoje afirma), mas sim algo divino que
caberia acentuar para manter a tensão espiritual acima referida e cumprir a respetiva
função individual na Terra.
Referindo-nos em particular à indumentária feminina,
cabe mencionar que, especialmente com o advento das religiões abraâmicas -
surgidas já em plena etapa da história humana em que o Conhecimento Primordial
se tinha evaporada na mente dos homens (a chamada Idade de Ferro), uma ainda
maior atenção foi dada, entre outros aspetos sociais, à limitação da
feminilidade afrodisíaca no seio dessas sociedades. O homem, considerado então como
caído e irremediavelmente perdido, já não possuía em si a força espiritual para
combater as chamadas forças diabólicas que controlavam a Terra, pelo que se lhe
impuseram os mais duros controlos externos – diríamos mesmo desesperados – para
manter no seio da humanidade a tensão espiritual que permitisse ainda um
contacto, por muito ténue que fosse, com o sagrado.
Essa acentuação dos controlos sociais passaram por uma
ainda maior atenção dada à cobertura do corpo da mulher, tanto em espaços
públicos, como privados, onde, para além dos órgãos sexuais, se prestou atenção
a elementos do corpo feminino considerados mais afrodisíacos, como os cabelos,
pescoço, ombros ou pés, que teriam de estar cobertos ou fora de vista por parte
de membros do sexo masculino não autorizados (à feminilidade afrodisíaca e
sensualista cabia também uma função reconhecida e estruturada, sobre a qual não
nos debruçaremos aqui a fundo).
Se o homem moderno já não consegue conceber tais
membros como sexuais - exceto por via do que hoje se chamam fetiches e taras,
que, tendo uma natureza desviante, não são fruto do acaso - tal é
essencialmente um sintoma da sua atual grosseria e dessensibilização para o
verdadeiro sensualismo feminino, cujos antigos compreendiam de forma muito mais
aguda e perspicaz (basta para tal comparar a sabedoria contida em tratados
sexuais do mundo antigo, como o Kama Sutra ou rituais de copulação no mundo
islâmico, com o mecanicismo sexual moderno).
A não exposição da carne e respetiva cobertura de
órgãos femininos acima referidos, assim como a exaltação da discrição e
sobriedade, o não porte de enfeites e acessórios, ou o uso de roupas sem cores,
era considerado fundamental para a não acentuação das características sensuais
da mulher, principalmente na praça pública, cujo efeitos “diabólicos” eram
justificados por razões da teologia coeva, mas principalmente pela perceção dos
respetivos efeitos espirituais no mundo terreno, conhecimento esse que tinha
origens muito anteriores e que sempre presidiram, em menor ou maior grau, à
configuração das sociedades tradicionais de todo o mundo, da América do Norte
ao Japão, e cujos vestígios ainda perduram.
Em Portugal, como é sabido, especialmente em zonas
rurais, são frequentes os casos de mulheres que cobrem o corpo e a cabeça de
negro na via pública, desde o momento da viuvez até à morte, ou de senhoras que
cobrem a cabelo com um véu aquando da ida à missa. A estes exemplos, poderíamos
adicionar centenas de outros usos que, em maior ou menor grau e por todo o
mundo, se mantém e demonstram a universalidade de uma mesma conceção do papel
da mulher na sociedade.
O exemplo mais flagrante nos dias que correm e o que
mais choca o ocidental, exatamente pelo fosso que mostra entre as conceções
modernistas e tradicionais, é o do uso do véu islâmico e da burka nas grandes
cidades europeias. Os recentes movimentos migratórios de massa vincaram estas
diferenças e não é de estranhar que só no Ocidente, onde os ventos modernistas
mais se expandiram, tal uso é questionado e censurado.
Como o moderno não tem a mínima ideia das bases da
verdadeira Tradição, da qual o mundo islâmico ainda mantém vestígios, a
imposição do modo de vestir – que também existe para o homem islâmico – é só
entendido em termos de dominação económica ou de ‘construções’ socias de poder,
próprias de sociedades não “evoluídas”. Como a visão utilitária do homem moderno
só admite uma limitação de comportamentos por via legal ou democrática, este
não concebe que existam grupos humanos que rejam o seu comportamento individual
e coletivo por princípios não individualísticos e sagrados. Mesmo que tais
comportamentos estejam legislados em documentos antiquíssimos, ele é rápido a
desprezá-los como anacrónicos ou meras invenções humanas.
O que mais espanta nesta questão é o facto de, na
presença de um comportamento social, derivado de princípios religiosos e
tradicionais de base imemorial, este ser violentamente atacado pelos chamados
conservadores ocidentais; especialmente quando são estes os primeiros a
denunciar os comportamentos amorais dos seus concidadãos e a quebra de valores
não individualísticos que afetam as antigas instituições societárias.
É fácil de notar a razão: os chamados conservadores,
no fundo, não estão menos infetados pelo vírus progressista que os seus “opositores”
de esquerda, dos quais copiam os mesmos tiques e muito raramente divergem em
questões verdadeiramente fraturantes ou civilizacionais.
Se se queixam, com razão, de vivermos numa sociedade
de matriz essencialmente feminina, onde a virilidade e a verdadeira
masculinidade não têm meios de expressão e escape, tal muito se deve ao não
freio do sensualismo feminino, em casa, no trabalho e, principalmente, no
espaço público.
A população masculina, sem referências e instrumentos
de o contrariar ou de saber como utilizá-lo com vista a realizações superiores,
vê-se instrumentalizado pelo mesmo. Tanto o crescimento do homossexualismo e da
feminização do homem, como a busca desenfreada de sexo com base num cortejo da
mulher em que o homem se remete essencialmente a artifícios sensualistas e não
viris, são sintomas da causa acima descrita (poderíamos descrever outros
fenómenos que são sintomas da mesma dominação feminina, como a atual
publicidade com base sexual, pornografia, etc., mas tal mereceria um texto à
parte).
Criticar a burka e o véu islâmico, e neste aspeto
qualquer vestimenta tradicional, é um ataque aos valores da verdadeira
feminidade e de tudo que neste momento o mundo ocidental perdeu.
Mais, sendo este um dos mais poderosos símbolos
tradicionais ainda visíveis no mundo moderno, entre todos os símbolos
modernistas que poluem a nossas sociedades, pode ter uma função de reavivar uma
consciencialização do cidadão comum, que pressente o abismo que se avizinha. A
burka, e com ela tudo o que esta representa em termos da função e
hierarquização dos sexos, da importância dos valores não materiais e o que
comporta conduzir uma vida com verdadeiro significado, pode reavivar o anseio
pelo sagrado que todo o homem, mesmo inconscientemente, busca.
Se a Europa quer voltar aos valores viris e a uma base
tradicional, verdadeiramente Ocidental, terá que retirar lições do que ainda se
pode salvar das sociedades mais orientais, donde se inclui necessariamente o
mundo islâmico, por muito que doa aos chamadas conservadores, que, parece,
foram levados pela propaganda subversiva a também entender que o Ocidente está
em guerra com o mundo islâmico. Não, agora e sempre o modernismo está em guerra
com o tradicionalismo - se o verdadeiro Ocidente quer renascer, parece óbvio
que lado escolher!
Excelente texto. Nem um ponto a acrescentar. Parabéns.
ReplyDeleteMeu caro, agradecido pelo elogio e contando vê-lo aqui frequentemente.
ReplyDelete