Recentemente,
por razões pessoais, tenho gozado de um período de pausa com termo indefinido
nas minhas tarefas profissionais.
Apesar de
esta paragem ser voluntária, contra a expectativa inicial de iniciar um período
de maior contemplação e de distância do remoinho diário da rotina profissional
sobre o qual a minha vida se centrava, tenho-me visto amiúde assaltado por
estados de ansiedade e de depressão quanto ao meu futuro, modo de sustentação
financeiro e preocupações relacionadas com a perceção deste estado junto de
família, amigos e antigos colegas profissionais.
A
observação destes estados emocionais e a troca de impressões com outras pessoas
relativa à minha situação atual, promoveu reflexões mais profundas sobre a
natureza do trabalho vigente no chamado Mundo Ocidental.
Sendo este um tema vastíssimo, limitar-me-ei
em baixo em condensar algumas observações, sem quaisquer pretensões“
científicas” ou académicas:
1. O Trabalho como sentido de vida:
Os Antigos consideravam o trabalho, no pior dos casos, indigno e vulgar, algo a ser arcado pelas classes mais baixas, algo que denigre o Homem; no melhor dos casos, um fardo inevitável que terá de ser suportado mas minimizado o mais possível, fruto da queda do Paraíso original e parte da eterna condenação a que o Homem está sujeito. Em ambos os casos, o trabalho é visto como algo acessório, cujo exercício de modo algum pode preencher o ser humano de forma completa, sendo visto como empecilho às realizações que o Homem verdadeiramente livre estaria destinado nesta etapa terrestre.
Com o
advento da modernidade, esta visão é totalmente rechaçada e o oposto é visto
como dogma nas sociedades encubados no ideário da Revolução Francesa: o trabalho
é visto, no mínimo, como um direito e dever cívico de todos (capitalismo,
social-democracia); em versões musculadas do ideal democrático com tendências
messiânicas, como um dever cuja falha implicaria traição ao respetivo ideário e
acarretaria as mais nefastas consequências (consulte-se as leis laborais da
URSS ou de qualquer regime de tendências comunistas do séc. XX).
Se a frase
“o trabalho liberta” está ligada ao regime nazi, bem poderia ser confundido
pelo slogan de qualquer outro sistema político moderno, incluído, claro está, o
atual sistema democrático, tanto nas suas vertentes liberal e socializante,
cujos tentáculos se apropriam a passos cada vez mais acelarados da totalidade
da raça humana.
Liberto o
Homem dos chamados dogmas religiosos, modos de organização e outros costumes de
antanho, vistos como atávicos (que, na verdade, já eram então cada vez menos
compreendidos e credores de defesa convicta), a sociedade organizou-se desde
então tendencialmente com fins puramente utilitários e pragmáticos, estando
agora apetrechada para fornecer ao maior número de homens possível o novo
paraíso neste pedaço de terra do sistema solar.
Infelizmente, se no regime moderno os direitos de alguns se democratizaram de forma massiva (acesso ao voto, propriedade, liberdade, etc.), o mesmo se passou com os deveres para com a sociedade. Destes, haverá algum que se possa ter universalizado tanto como o trabalho?
Não é de admirar que numa sociedade totalmente democratizada e cujos valores da maioria são os que predominam, o dever que é mais comum - tanto no sentido quantitativo como qualitativo - é aquele próprio do que definia a classe escrava – o Trabalho. Não olharão os Antigos de cima para o mundo atual com ironia e gozo ao ver as consequências das boas intenções humanas?
E não se pense que ao mencionar-se trabalho me refiro apenas ao labor manual: o trabalho aqui engloba todas as atividades manuais e mentais que têm a matéria física e psíquica como objeto, englobando tanto o administrador público que regista um ato governativo, o empresário que discute preços e fecha negócios, o químico que analisa e regista os dados observados num laboratório privado, o soldado que termina a sua comissão numa missão de paz no Médio Oriente, ao professor universitário que disserta a sua tese relativa à dinâmica dos buracos negros no sistema solar, atá ao político que realiza um comício público em vésperas de eleição.
Se há algo que é transversal à modernidade é a captação progressiva de toda a atividade humana pelo trabalho (cada vez mais assalariado), havendo menos e menos redutos de ação humana verdadeiramente independentemente, onde o Homem exerce a sua ação de forma soberana e independente, constituindo um centro em si mesmo.
Se na Antiguidade tal era o apanágio da função Real e subsidiariamente das classes guerreiras e religiosas, hoje é fácil notar o quão invertida a equação se encontra ao constatarmos que o próprio representante máximo de uma qualquer república ocidentalizada é um assalariado do próprio Estado (o mesmo razoamento se aplicará às monarquias fantoche europeias).
Se na antiguidade havia centros de independência e sociedades humanas e familiares constituídas por homens verdadeiramente livres dentro de uma organização política, há de se notar que, nos dias que correm, o que dantes era uma elite se converteu hoje numa exceção, ou, melhor ainda, um resquício do passado cujo progresso histórico de libertação do homem se encarregará de retificar, segundo nos asseguram as mentes mais progressistas.
Hoje, a realidade é infelizmente outra. Um ser humano que recebe um salário ou cuja condição depende da produção material, nunca foi nem nunca será verdadeiramente livre, se tivermos em conta uma definição de homem cujas possibilidades não se esgotam na produção de matéria ou num mero centro de consumo.
Notámos tal em todos os estratos profissionais e socioeconómicos, inclusive nos grandes chefes de empresas, alguns com fortunas bilionárias, como são por exemplo os grandes diretivos e titãs de Wall Street – acontece que a única verdadeira diferença que têm para com o canalizador da mesma empresa é somente a quantidade e o modo de pagamento do salário, já que aqueles reportam também aos donos da empresa, mais concretamente, diretamente a um conselho de administração.
Pensar-se-ia
que uma exceção se poderia fazer quanto aos donos dos meios de produção e do
capital. É de notar que estes, mesmo quando não tenham iniciado as suas
carreiras como simples assalariados, partilham do mesmo “ethos” do trabalhador
comum. O seu papel de empresários (negociantes) é levado a cabo à exaustão e
preenche a vida destes homens muito mais que a vida do cidadão médio no papel
de trabalhador assalariado, tanto na intensidade da função, como no número de
horas dedicados à mesma.
Não é de
estranhar que estes homens, hipnotizados pelo lucro, devotem, com raras
exceções, a maioria do seu tempo e energia a aumentar as suas fortunas e
stocks, sem qualquer intenção de gastar o mesmo numa vida de retiro e
despreocupações. Pelo que muitas vezes, a perda da sua riqueza ou parte dela é
seguida de tentativas furiosas de recuperá-la e superar os patamares
anteriores, uma atitude não sem semelhanças ao jogador compulsivo que arrisca
as últimas fichas numa derradeira aposta de casino.
As razões
deste acumular desmedido de riqueza que nunca se conseguirá gastar ou da
natureza compulsiva de fazer o “último grande negócio” nunca são
verdadeiramente explicadas por estes, já que dar uma razão de fundo implicaria
expor o carácter patológico destas atividades, reveladores, na verdade, de um
espírito limitado por compulsões sub-racionais.
Por certo
estes homens estão infinitamente mais próximos em termos de mentalidade e
atitude do varredor de lixo que mal garante sustento para si e para os seus ou
de um mendigo de rua, que da atividade contemplativa do eremita Tibetano que
habita sem sustento uma gruta de montanha ou do samurai japonês que rege a sua
via por um estrito código de ética e honra.
Interessante
notar que na sua autobiografia, o atual presidente americano se gabava de dormir
apenas 5 horas diárias e que fazer negócios preenchia até à sua eleição o
restante das demais horas diárias e que, inclusive, nunca tirava férias ou
tinha tempo para ver a mulher e filhos. Admitia ainda que todas as suas
relações sociais ou de amizade eram motivadas por presentes ou futuras
oportunidades de negócio.
Que este
homem seja a quinta-essência do tão propagado “sonho americano”, é tudo menos
motivo de admiração. Haverá assim tanta diferença entre a atitude ética de um
Donald J. Trump com a do antigo trabalhador modelo na URSS que devotava todas
as suas atividades fabris e familiares à causa comunista?
As mesmas
considerações podem, grosso modo, ser estendidas a todas as camadas sociais
modernas.
Relativamente
ao atual cidadão médio, o seu trabalho, para além da componente patológica,
representa acima de tudo um meio para atingir um nível de sustento que lhe
garanta, pelo menos, a manutenção do agregado familiar (cada vez mais reduzido)
no corrente estrato socioeconómico.
Com a
crescente falta de referências culturais próprias da comunidade, aliada à concomitante
erosão de certos constrangimentos religiosos que timidamente ainda se vão
mantendo, este ser quase puramente económico só tem como referentes de
comparação a situação económica da sua família de origem com o mundo que o
rodeia (seja na sua comunidade mais alargada, seja cada vez mais com os estilos
de vida divulgados pelos mass media digitais que consome).
Como o
material é tanto ponto de partida, veículo e destino deste homem cada vez mais
desenraizado, a sua escolha de trabalho vai depender menos da sua vocação do
que da função que melhor granjeie as suas ambições socioeconómicas (mais sobre
as vocações abaixo).
O caminho
mais seguro será o de assegurar o mais bem pago trabalho assalariado
disponível, cuja componente de estabilidade irá também ter preponderância já
que neste ser predomina a submissividade e a superficialidade que caracteriza o
“homus urbanus”, que ambiciona acima de tudo poder frequentar os locais da
moda, vestir para impressionar e decorar a casa com as últimas tecnologias.
Para tal, o que representa o sacrifício da quase totalidade dos seus dias úteis
de vida num trabalho em que passa a maior parte do tempo em frente ao ecrã a
digitar dados no teclado, a estar presente em reuniões em que finge estar
interessado e a mostrar serviço ao seu chefe direto, que discretamente despreza
mas cuja boa relação é chave para garantir a próxima promoção?
Nada! Este
trabalho é fundamental não só para sustento seu e da sua família, como, ainda
mais importante, para a projeção do seu estatuto social junto da mesma, do
círculo de amigos e daqueles grupos a que ambiciona pertencer. É o trabalho que
lhe permite manter as aparências para adquirir o último modelo do carro da
moda, o mais moderno sistema de
tecnologia móvel que pode passear na rua, como lhe vai permitir atingir o
estilo de vida que lhe foi impingido durante os consumos incessantes de
publicidade de que é vítima nos anúncios ou séries de tv.
Ao
contrário do grande empresário, o estilo de vida dele está intimamente ligado
ao número de horas que passa no escritório que comparte com centenas de outros
“colaboradores”, com quem mantém conversas de ocasião sobre o tempo e o último
jogo de futebol.
Ele sabe
que o seu estilo de vida está dependente da sua situação laboral mas,
infelizmente, esta depende não só da sua produtividade individual, como da da
empresa, da conjetura da indústria em que está inserido e também da economia em
geral, sem esquecer dos humores e caprichos do seu superior hierárquico.
Ele acorda
todos os dias para ir trabalhar com a noção que irá mais uma vez passar uma
jornada a repetir atos de forma mecânica, num trabalho massificado em que a sua
influência em termos concretos é muito limitada, vendo-se como uma peça no
mecanismo que não controla. Quaisquer semelhanças entre ele e um operário
fabril numa linha de montagem fordista serão pura coincidência! Obviamente não veste
fato-macaco pois a farda nos dias de hoje consiste no fato e gravata…
2. O Trabalho como fim da Educação:
Desde o berço, atravessando todo o
ensino até à entrada no mundo profissional, a atividade profissional, é
apresentada às futuras gerações adultas como o grande desiderato de vida, ao
qual todas as outras atividades paralelas ou extracurriculares se devem
subordinar.
Um emprego seguro e com grau de
sucesso medido proporcionalmente à crescente contrapartida financeira é o pano
de fundo que rege a educação de todas as crianças no mundo ocidental e ao qual
são devotadas a maior parte das energias das classes educadoras.
A este altar são imoladas todas as
energias dos jovens alunos que vêm nesta meta a chave para uma vida de sucesso,
no torno da qual irão encontrar parceiro para a vida, constituir família e
atingir os respetivos desejos (melhor dito – necessidades) materiais.
Os jovens que, por via de instintos
menos adestrados, se mostram menos propensos a encaixar neste molde, são vistos
com preocupação por pais e educadores, que irão tomar medidas preventivas e
repressivas para corrigir os comportamentos delinquentes: desde chamar a
atenção para a “preguiça” daqueles, até envolver a classe médica na
diagnosticação do problema, o que envolve cada vez mais a prescrição ao menor
de medicação conducente a aumentar os níveis de atenção e robotização do
pequeno, tanto na sala de aula como nos períodos de convivência com colegas e
família.
Os sintomas do efeito totalitário
que o trabalho exerce na vida escolar são vistos de forma cada vez mais aguda
na competição selvagem que já existe nos estados escolares universitários e
pré-universitários (últimas fases de seriação dos lugares de entrada mais
apetecíveis do mundo de trabalho), e que já avançam rampantes adentro do ensino
básico e primário, onde a menor variação da nota final - único critério,
abstrato e quantitativo, admitido pela sociedade de massas para selecionar as
vocações estudantis – pode decidir a entrada ou não no curso almejado e assim o
futuro profissional do jovem aplicante. Será por acaso que o Japão - um dos
países ocidentalizados e com um dos sistemas de educação mais exigentes, onde o
culto do trabalho é fortíssimo - lidera as taxas de suicídio infantil e
juvenil?
É reveladora a descoberta que a
totalitarização do culto do trabalho no mundo profissional e escolar é
acompanhada pelo proporcional decréscimo da verdadeira cultura vocacional, na
qual a escolha e atribuição de determinada carreira a um jovem dependeriam de
outros fatores que não só uma nota académica universalizada a toda a comunidade
estudantil, mas outras considerações qualitativas, hoje tomadas cada vez mais
como inadmissíveis e arcaicas, sejam estas, por exemplo, indicações de
orientadores, tendências interiores do jovem, passado familiar, testes de
aptidão não académicos, etc.).
A nova mundivisão é facilmente
confirmada pela constatação que a esmagadora maioria dos jovens com melhores
notas de acesso ao mercado universitário escolhem desproporcionadamente os
cursos que lhe permitirão aceder às indústrias profissionais que, em cada País,
oferecem o melhor rácio compensação financeira/segurança no acesso ao trabalho
(exemplos: em Portugal, a maioria esmagadora de alunos com média escolar mais
elevada escolhe o curso universitário de medicina, cujas vagas de emprego
artificialmente baixas e ligadas a hospitais públicos, garantem salários
exorbitantemente elevados para a realidade do País, aliado à segurança provida
pelo carácter público da profissão; nos EUA, os melhores alunos escolhem universidades
de negócios, que lhes darão vantagem em aceder aos melhores empregos em Wall
Street ou Silicon Valley), demonstrando claramente que razões puramente
utilitárias e financeiras permeiam as escolhas vocacionais. Já que se tem de
trabalhar para o resto da vida, porque não fazê-lo ao melhor preço?
As consequências do pensamento
acima descrito são contribuidoras para uma classe trabalhadora que se encontra
presentemente totalmente desmoralizada e só raramente se sente preenchida pela
sua atividade diária, que vê nela não mais que um modo de ganhar sustento (não
é de estranhar todos os artifícios que os empregadores modernos têm de
encontrar para manter os níveis de produtividade, sinal de que reconhecem que
as motivações dos seus subordinados são totalmente temporárias e superficiais,
as quais não correspondem de modo algum ao seu estado interior).
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