O psicólogo
habita os subúrbios da alma, como o sociólogo a periferia da sociedade (Nicolás Gómez
Dávila, ‘Escolios A Un Texto Implícito’)
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Desde o iluminismo renascentista os principais
pensadores ocidentais acreditaram que por intermédio da reflexão dita racional,
o homem, sem necessitar de apelar a quaisquer outras muletas humanas ou
divinas, poderia alcançar conclusões tendencialmente perfeitas que lhe
permitiriam atingir a realização plena na vida individual e comunitária.
A razão, já então força motriz das ciências
naturais e das técnicas de produção e transformação, foi elevada à categoria de
guia único também das decisões individualísticas,
da moralidade, dos sistemas espirituais e de todas as ideologias políticas e
filosóficas nascidas no pós Revolução Francesa.
E se, no processo, os resultados do exercício da
mesma não corresponderam ao desejado, tal se deveu, dizem os racionalistas, ao
facto da razão ainda não ter sido estabelecida na sua plenitude, pois, ora a
execução da mesma foi imperfeita e obedeceu ainda a critérios irracionais, ou
ainda subsistem nos homens farrapos civilizacionais do tipo arcaico e supersticioso
que precludem a implementação do Jerusalém racional.
Mesmo após centenas de anos da sua implementação progressiva
- descontando a circunstância da razão ter servido de base à criação dos
sistemas mais opressores que o homem conheceu - nas sociedades autoproclamadas livres
de hoje, onde a razão é propagada com mais alarde, parece claro que a
felicidade humana e o bem-estar ainda estão longe de serem alcançados e tais
objetivos aparecem cada vez mais aos respetivos cidadãos como quimeras fátuas.
É de realçar que é nestas sociedades humanas que cada
vez mais se interioriza a impressão de que tal felicidade e respetiva busca de
sentido pela razão são desideratos fúteis e, se não impossíveis, no fundo nem
merecedoras de uma consecução séria face ao absurdo da vida – conclusão também
racional, por paradoxal que à primeira vista tal pareça. Não admira que a atual
subsistência vegetal do moderno, baseada no consumismo e na busca de felicidades
e êxtases temporários, esteja encimada nesta conceção niilista da vida onde a
existência terrena terá de ser gozada ao máximo, pois não possui qualquer
significado de outra ordem.
É digno notar que a sacrossanta razão é-nos
apresentada como um dado de facto; algo que existe por si, que deve ser almejada
pelo aventureiro-homem que busca a perfeição. Pois desconstruamo-la. E desde já
avisamos o leitor donde vimos: a razão, como os modernos a entendem, é, em si,
um mito. Ela pura e simplesmente não existe. Existem os pensamentos, existe o cérebro,
existem os cálculos e as elucubrações mentais, existem juízos de valor, existe a
análise do meio natural em que o homem se insere – não existe razão entendida
como ente moral autónomo.
Teceremos algumas considerações que alumiarão o
caminho. Só o facto de podermos pensar a razão e percebermos que pode ser usada
como instrumento, permite-nos colocar fora do seu âmbito - a razão não é um fim
em si mesmo. O homem utiliza a dita nos seus desideratos práticos de tentar
compreender o meio-ambiente, externo e interno, apenas e tão-só. Para qualquer
outro tipo de considerações de categoria eticamente superior, como por exemplo
o estabelecimento de um modo de vida ou a razão da existência, obedecer-se-á sempre
a considerações éticas, de natureza variada - claro está - que a razão, por sua
vez, permitirá explicitar e compreender - ou julgar compreender.
Não é pois de admirar que pessoas das mais elevadas
inteligências tenham conceções de vida e de significado da existência as mais
díspares. Vejam-se os exemplos de um Trotsky e de um C. S. Lewis, no século XX.
O primeiro usou a razão para fundamentar a sociedade comunista ateística
mundial; o segundo, para fundamentar a existência de Cristo e o propósito da
Igreja Católica Romana. Em ambos os casos, houve considerações de ordem
extra-racional que serviram de base ao posterior uso da razão. Tanto Trotsky
como Lewis não podiam, como ninguém pode, demonstrar racionalmente a existência
ou a ausência de Deus. Estas são conceções a-priori cujo ‘racionalismo’ vai depois
justificar e elaborar. A razão é tão só o método da elaboração interior –
primeiro, por via do pensamento – e exterior – posteriormente, por via da fala,
gestos, escrita, etc. – de conceções que o indivíduo sente possuir no momento
ou que intui. Portanto, haverá considerações externas à razão que determinarão
indelevelmente as posteriores considerações racionais, mesmo que aquelas sejam
falsas.
Tomemos o exemplo das ideologias modernas. Todas
elas - capitalismo, socialismo, anarquismo, social-democracia, comunismo,
libertarianismo, etc., têm uma coisa em comum – arrogam-se de serem racionais. Todas,
teoricamente, ordenam o homem racionalmente e tomam o próprio ser humano como ente
racional e atómico cuja existência é governada por decisões ditadas pela razão,
sejam estas egoístas ou altruístas. Nestas ideologias, por muito que tal custe
a alguns, não existem quaisquer injunções de tipo moral ou espiritual. Mesmo
admitindo a conceção de que o homem não contém em si dimensões de ordem espiritual
e que se reduz à sua natureza biológica, é por demais evidente, após alguma
reflexão, que tais ideologias aplicam-se a um ser que não existe em parte alguma
e que nada tem em comum com os homens terrestres.
Expliquemos. Partir do princípio que os homens se
comportam racionalmente é considerar que a humanidade se encontra num estado
perfeito de racionalidade. Assume, primeiro, que o homem é guiado apenas pela
razão e, segundo, coarta à partida outras dimensões do homem, sejam elas as
divinas – suprarracionais – sejam as mais rudes – as infra-racionais – onde
incluímos aqui tudo o que são desejos, atavismos, espasmos físicos e mentais,
irrequietações, superstições, necessidades biológicas, ambições, sonhos, medos,
etc. Mais, assume apenas o estado mental do homem quando este se encontra acordado,
e não reporta ao estado humano dormente ou ao sonambúlico, que são esquecidos ou
considerados dispensáveis de qualquer atenção, o que não é de espantar já que
estes são estados em que o homem não utiliza a razão como ela é hoje entendida,
pese, grosso modo, ocuparem pelo menos um terço da nossa existência.
Basta olhar para os nossos hábitos diários para
percebermos que a nossa vida apenas muito superficialmente é governada por
fenómenos ditos racionais; se de todo, no limite. Ante-se aos tiques que a
maioria dos nossos conhecidos mantêm quando os encontramos, seja o bater
constante da perna, o nervosismo revelado nas expressões faciais ou o uso de
reações e esgares nervosos que traem a fachada original. Note-se o constante
correr dos pensamentos, preocupações e imagens que povoam o nosso cérebro no
dia-a-dia quando não nos focamos seriamente num qualquer exercício mental ou
físico que exija a nossa concentração total, que só a custo conseguimos manter durante
períodos prolongados. Retenha-se como a nossa atenção divaga quase
automaticamente e salta de assunto em assunto, de pensamento em pensamento,
involuntariamente, quando estamos ‘distraídos’. Para não falar dos nossos modos
de comportamento, que rapidamente adaptamos de acordo com a pessoa que fala
connosco ou da circunstância particular, quase inelutavelmente, ou dos humores
variados que experimentamos durante o dia, onde momentos de serenidade são
facilmente entremeados por angústias e estados de preocupação, que temem em
aparecer mesmo em circunstâncias que julgamos conducentes ao nosso bem-estar. E
que dizer das reações instintivas que temos quando nos assustamos ou
experimentamos situações limite de existência, que traem o que jaz de mais
irracional e subterrâneo no nosso substrato vital. Se nos começamos a aperceber
do que boia no nosso fundo existencial, rapidamente notaremos que a maior parte
das nossas ações internas e externas - por muito que tal choque o cidadão médio
ocidental que julga viver na era iluminada racionalista - são ditadas por
fatores irracionais, cuja propalada razão é, na maior parte dos casos, mero subproduto.
A própria constatação de que gastamos grande parte da nossa existência em
atividades supérfluas, quando não contraproducentes e nefastas para o nosso
bem-estar, demonstra claramente que o nosso comportamento raras vezes é
determinado por ela.
E não se pense que tal se limita a atos individuais
da nossa vida íntima. Na decisão de comprar determinado bem qual a percentagem
que devemos alocar a considerações meramente ‘racionais’, em comparação com
outras influências, a maior parte das quais nem temos consciência, ou das quais
possuímos tão-só o mais leve dos pressentimentos? Se formos sinceros,
perceberemos que a aparência do objeto desejado, a moda do momento, a astúcia e
a simpatia do vendedor, a pressão da altura, o estado de ânimo, a vaidade e um
sem número de outras considerações inconfessáveis, mais ou menos intuídas,
contribuem numa proporção tão preponderante que o pretenso racionalismo
praticamente se dilui e aparece mais como um fator pós-facto de
‘racionalização’ para os outros e, inclusive, para o próprio. Mais, a própria
decisão de adquirir determinado bem, como todas as outras decisões da vida, partilhará
igualmente de um conjunto de componentes éticas e sub-racionais superiores ao
que gostaríamos de admitir. Se tal não fosse o caso, duas pessoas, partilhando
exatamente as mesmas componentes materiais, biológicas e circunstanciais,
escolheriam sempre o mesmo bem. Tal só acontece por acaso, como é óbvio, já que
as razões das nossas decisões contêm no substrato um imensa cadeia de fatores,
cuja impenetrabilidade é mastodôntica.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser transplantado a
montante para as organizações coletivas onde a cadeia de fatores e de correlações
conducentes às respetivas decisões e ações é exponencialmente mais complexa.
Pensar que instituições comunitárias, empresas e governos possuem uma qualidade
autónoma racional é mais uma das ilusões sob a qual vive o homem ‘racionalizado’.
O que constitui a ação externa destas organizações não é em menor grau o
reflexo dos apetites e dos instintos dos respetivos componentes humanos acima
mencionados.
Portanto, mesmo a racionalidade de uma decisão ou
pensamento, quaisquer sejam, é sempre o produto final - e o mais exterior - de
todo um processo, que, mais uma vez, se apenas nos limitarmos às circunstâncias
terrestres, não constituirá mais que o culminar de toda uma teia
emanharadísssima de fatores, a esmagadora maioria dos quais, infelizmente, não estamos
conscientes. Perceber que estes fatores estão fora do nosso controlo e só muito
a custo, alguns, poderem ser compreendidos, é suficiente para intuir as amarras
que constringem o ser humano e as suas ações, o como somos sempre ‘atuados’ de
algum modo e o quão fátuo é falar da independência e da liberdade racional de
cada indivíduo.
O esquecimento de tal não pode senão ter efeitos
perversos na conduta individual e social, como é flagrantemente o caso nos
tempos que vivemos. Não é de espantar que a elevação da razão humana a guia
supremo - e, cada vez mais, único - da mundividência moderna coincide com o
período em que observamos os instintos mais básicos a guiarem as ações do homem;
sempre, como é óbvio, enroupados nos slogans
do racionalismo, do livre-arbítrio e da liberdade individual. A razão humana é
o artifício onde campeia a exploração do homem pelo homem, onde as relações
humanas mais são ditadas pelos instintos de domínio animalesco e primitivo, onde
os apetites mais inconfessáveis se propagam.
As antigas normativas comunitárias, vistas pelos
modernos como fardos escravizantes impostos pelo forte ao fraco, mais do que limitadores
da individualidade, eram vistas como necessárias e desejáveis, tendo em vista não
a exploração do homem oprimido, como hoje nos é ensinado, mas a salvaguardar o
homem de si próprio, ou do que nele subsistia de irracional. Elas tinham a sua
razão de ser numa conceção muito mais realista e profunda da natureza humana, que
sabia que o homem verdadeiramente livre era a exceção, não se encontrando tal
fora de uma seleta elite de espírito ou de vocação. O líder, antes de poder
exercer a sua soberania e autoridade sobre os respetivos sujeitos, teria que exercê-la
sobre si próprio, não de modo meramente exterior, mas de um modo absoluto,
ontológico mesmo. E mesmo que tal não acontecesse ou não fosse já possível, tal
era a justificação longínqua da sua autoridade.
Deste ponto de vista, não choca que antigamente
todas as relações sociais se baseassem nos mais estritos códigos e formalismos,
desde os círculos institucionais e sociais até aos familiares e íntimos. O
controlo da postura, a importância dos rituais, os formalismos requeridos no
dia-a-dia, o desprezo pelo livre-pensamento e pelas divagações de tipo individualista
sempre estiveram presentes em todas as grandes civilizações antigas – de cujas
hoje apenas herdamos alguns ‘hábitos’ e ‘costumes’, entendidos cada vez mais
como anacrónicos - que viam nestas injunções os meios necessários para a
elevação humana e libertação da condição animalista do homem, que,
deixado aos seus meios - incluindo à sua racionalidade - não conseguiria ‘salvar-se’
de si próprio.
Esquecidas que estão as causas de tais modos de
existência, vemos hoje o ser humano, diminuído à sua condição de mero ser
pensante, racional, subsistir cada vez mais prenhe dos seus apetites, medos e
ambições. As relações humanas, que dantes se estabeleciam num quadro de
formalismo, são hoje exercidas como instrumento dos seus instintos rebaixados,
onde o homem estabelece contacto com outros seres por via da ambição ou dos
instintos egoístas, quando não da auto-preservação. Ninguém nota a coincidência
de, numa altura em que racionalmente nos afirmarmos todos iguais e merecedores
do mesmo respeito e dignidade, os homens e as mulheres se juntarem com base na
aparência física e no mero desejo sexual, ou que as relações sociais se baseiem
no interesse egoísta, comum e individual? Ou das organizações humanas serem
usadas por homens ambiciosos que, antes de servir, procuram servir-se delas? Onde
os seres formam camarilhas de poder em que os mais astutos e manipuladores
regem outros que a eles se submetem e dos quais dependem do ponto de vista material
e financeiro? Como também é uma coincidência que os horizontes humanos se
tenham limitado cada vez mais a ver no mundo apenas um local temporário de
diversão, no fundo, sem muita diferenciação para com o jardim zoológico onde um
grupo de macacos habita? Em que tudo o que antigamente servia para elevar o
homem e afastá-lo da sua natureza animal é visto como retrógrado e obscuro?
Tudo isto racionalmente!
A avaliar pelos resultados, fica claro que o
objetivo profundo do estabelecimento do discernimento racional como critério
único da decisão humana não é um fim em si mesmo, mas, como acima referimos,
possui uma componente ética e mesmo espiritual prévia, que consiste
primariamente na revolta contra o pensamento antigo que estabelecia o divino
como base, não só da existência, como da respetiva conduta. E sendo o
pensamento racional, como acima afirmamos, neutro em si mesmo, estabelecem-se
assim, consciente ou inconscientemente, vias de conduta para o surgimento de
influências que, não sendo guiadas de cima, sê-lo-ão necessariamente de baixo.
Não nos iludamos ao pensar que os acasos existem. O
destino da humanidade é algo muito sério e importante para ser deixado ao livre-arbítrio
ou ao acaso; tal nunca aconteceu nem nunca acontecerá. Vemos com grande
preocupação o atual estado para o qual a humanidade se precipita, pois não
estando consciente que se encontra sob o domínio de um mito falso – o da razão
– mais facilmente será guiada para propósitos obscuros por mais altas
inteligências, hoje soberanas.
De facto, é interessante considerar a "sacrossanta" razão como meio/instrumento, ao invés, de um fim em si mesma. O ordenamento racional está à vista de todos, nas dimensões várias da nossa vida, basta sermos capazes de retirar tais conclusões.
ReplyDeleteO tema do mito da razão, embora complexo e intangível qb, pode no entanto, do meu ponto de vista, colidir com a acepção - quase dogma - do ser humano tido enquanto ser eminentemente social (que, no limite, é um produto daquela) pois as decisões, as organizaçoes colectivas, ou até os hábitos e costumes, são quase sempre implementados num contexto socialmente aceite, i.e., determinados pela "maioria da razão".
Abr,
Jc