Segue-se a
tradução do inglês do ensaio do Mestre da Tradição Frithjof Schuon, originalmente
dado à estampa em 1966 no jornal ‘Études Traditionelles’ e em 1986 traduzido
para inglês e incluído como um capítulo do ‘Survey of Metaphysics and Esoterism’,
intitulado ‘A Impostura Psicológica’.
Parece-nos de
importância maior deixar aos nossos leitores este pequeno texto que delineia as
críticas fundamentais à moderna psicanálise nas suas várias vertentes.
Esta funciona
como real instrumento subversivo que, como outros, é sintoma e causa do ataque
á verdadeira espiritualidade e grilhão do encurralamento do homem moderno em
conceções mentais que garantem a sua vegetação nas possibilidades mais vis do
seu ser.
Dos vários
argumentos lançados pelo Mestre, destacamos dois: o da falsidade da psicanálise
se debruçar sobre assuntos novos que os antigos desconheciam; o da psicanálise
servir, não para elevar o homem na sua componente divina, mas para procurar
soluções ‘práticas’ que lhe permitam sobreviver no horizonte rebaixado e
limitativo que é representado pela mundividência moderna, que concebe o ser
humano ao nível da mera realidade biológica.
Sendo o
moderno culto da psicanálise e da psiquiatria um dos que mais permeiam, direta
e indiretamente, ativa e passivamente, a mentalidade coeva no mundo ocidental,
incluindo uma grande parte da respetiva esfera religiosa, e principalmente pelos
efeitos perversos que tal acarreta, contamos em breve deixar mais textos que
expõe a crítica tradicional a tais conceções, cuja refutação liminar é condição
sine qua non do despertar futuro.
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O que cunhamos por ‘psicologismo’ é a tendência
para reduzir tudo a fatores psicológicos e colocar em questão não apenas o que
é intelectual ou espiritual – o primeiro relacionado com a verdade e o segundo
com a vida na e pela verdade – mas também o espírito humano como tal, e com ele
a sua capacidade de adequação e, ainda de forma mais evidente, a sua interior
ilimitação e transcendência. Esta mesma tendência depreciativa e verdadeiramente
subversiva invadiu todos os domínios que o ‘cientismo’ reclama abarcar, mas a
sua expressão mais aguda é encontrada sem dúvida na psicanálise. A psicanálise
é ao mesmo tempo um ponto de chegada e uma causa, como é sempre o caso com as
ideologias profanas, como o materialismo e o evolucionismo, das quais é
realmente uma ramificação lógica e fatal e um aliado natural.
A psicanálise merece ser
classificada como uma impostura duplamente, primeiro porque finge ter
descoberto factos que sempre foram conhecidos e nunca poderia ter sido senão conhecidos,
e segundo - e principalmente – porque arroga para si funções que na realidade
são espirituais, e portanto assume praticamente o papel de uma religião. O que
é chamado de ‘exame de consciência’ ou, pelos muçulmanos, de ‘ciência dos humores’
(‘ilm al-khawātir), ou ‘investigação’ (vichara) pelos hindus – com uma
significação ligeiramente diferente em cada caso – não é outra coisa que não uma
análise objetiva das causas próximas e distantes dos nossos modos de atuar e de
reagir que repetimos automaticamente sem estarmos conscientes dos seus motivos
reais, ou sem discernir o caráter real desses motivos. Pode acontecer que um
homem habitualmente, ou cegamente, comete os mesmos erros nas mesmas
circunstâncias, porque carrega consigo, no seu subconsciente, traumas, ou erros
fundados na autoestima. Para ser curado, ele deve detetar estes complexos e
traduzi-los em fórmulas claras; ele deve portanto tornar-se consciente dos erros
subconscientes e neutralizá-los por via de afirmações contrárias; se ele
sucede, as suas virtudes tornar-se-ão mais lúcidas. É neste sentido que Lao-Tzu
disse: ‘Sentir uma enfermidade é não mais possuí-la’; e a Lei de Manu diz: ‘Não
existe água purificadora que se compare com o conhecimento’, isto é, com a
objetificação pela inteligência.
O que é novo na psicanálise, e o
que lhe dá uma originalidade sinistra, é a sua determinação em atribuir cada reflexo
e cada disposição da alma a causas triviais e em excluir fatores espirituais,
daí a sua notória tendência para ver saúde no que é lugar-comum e vulgar, e neurose
no que é nobre e profundo. O homem não consegue escapar neste mundo de provas e
tentações; a sua alma é então marcada com algum tipo de tumulto, a menos que
seja de uma serenidade angélica – o que ocorre em arredores altamente
religiosos – ou, pelo contrário, a menos que seja de uma inércia inamovível,
que por todo o lado ocorre. Mas os psicanalistas, em vez de permitirem que o
homem faça o melhor do seu desequilíbrio natural, e em certo sentido
providencial – e o melhor é tudo aquilo que seja vantajoso para o seu destino
final – tende pelo contrário a trazê-lo de volta a um equilíbrio amorfo, como se
alguém desejasse poupar um jovem pássaro às agonias da aprendizagem ao
cortar-lhe as asas. Falando analogamente: se um homem se sente angustiado por
uma enchente e procura um meio de se lhe escapar, os psicanalistas removeriam a
angústia e deixariam o paciente afundar-se; ou de novo, em vez de abolir o
pecado, abolem o sentimento de culpa, permitindo portanto que o paciente se
encaminhe serenamente para o inferno. Isto não é dizer que nunca acontece um
psicanalista descobrir e dissolver um complexo perigoso sem ao mesmo tempo
arruinar o paciente; mas estamos aqui preocupados com o princípio, no qual os perigos
e os erros envolvidos sobrepesam sobremaneira as vantagens contingentes e as
verdades fragmentárias.
Como resultado, para um
psicanalista médio um complexo é mau por ser um complexo; ele recusa-se a ver
que existem complexos que honram o homem ou que lhe são naturais por virtude da
sua deiformidade, e consequentemente que existem desequilíbrios que são necessários,
e que devem ser resolvidos por cima de nós e não por baixo.1 Existe
um outro erro que é fundamentalmente o mesmo: é o de considerar um equilíbrio
bom por ser um equilíbrio, como se não existissem equilíbrios feitos de
insensibilidade ou de perversão. O nosso próprio estado humano é um desequilíbrio,
já que estamos existencialmente suspensos entre contingências terrestres e os chamamentos
inatos do Absoluto; ver-se livre de um nó psíquico não é o todo da questão, deve
também saber-se como e porque é que se deve livrar-se dele. Não somos
substâncias amorfas, somos movimentos que são no princípio ascensionais; a
nossa felicidade deve ser proporcionada à nossa natureza total, sob pena de nos
rebaixarmos à animalidade, pois uma felicidade sem Deus é precisamente o que o
homem não consegue aguentar sem se sentir perdido. E tal é a razão de um médico
da alma dever ser um pontifex, e portanto
um mestre espiritual, no devido e tradicional sentido da palavra, um profissional
profano não tem nem a capacidade de ser nem, consequentemente, o direito de
interferir com a alma para além de tais dificuldades elementares cujo simples
senso comum pode resolver.
O crime espiritual e social da
psicanálise é então a sua usurpação do lugar da religião ou da sabedoria que é
a sabedoria de Deus, e a eliminação dos seus procedimentos de todas as considerações
do nosso destino último; é como se, sendo incapaz de lutar contra Deus, se
atacasse a alma humana que Lhe pertence e que Lhe está destinada, ao rebaixar a
imagem divina em vez do seu Protótipo. Como qualquer solução que evade o
sobrenatural, a psicanálise substitui à sua própria maneira o que abole: o
vazio que produz pelas suas destruições intencionais e não-intencionais
expande-o, e condena-a a postular um infinito falso ou a funcionar como uma
pseudo-religião.
Em ordem a desenvolver-se, a psicanálise
necessitava de um solo favorável, não apenas do ponto de vista das ideias, mas também
do ponto de vista do fenómeno psicológico: isto significa que os europeus, que
sempre foram de um tipo cerebral, tornaram-se infinitamente mais aproximadamente
nos últimos dois séculos; hoje, esta concentração de toda a inteligência na cabeça
é algo excessivo e anormal, e as hipertrofias a que dá origem não constituem
uma superioridade, apesar da sua eficiência em certos domínios.
Normalmente a inteligência
deveria residir, não apenas na mente, mas também no coração, e dever-se-ia
também espalhar pelo corpo, com é especialmente o caso dos homens que são apelidados
de ‘primitivos’ mas que são inegavelmente superiores em certos aspetos em
relação aos ultra-civilizados; seja como for, o ponto que desejamos fazer é o
de que a psicanálise é em larga mediada o resultado de um desequilíbrio mental geralmente
mais ou menos prevalente num mundo onde a máquina dita ao homem o ritmo da sua
vida, e, o que é ainda mais sério, o que a sua alma e o seu espírito devem ser.
* * *
A psicanálise efetivou uma entrada
mais ou menos oficial no mundo dos ‘crentes’, o que é de facto um sinal dos
tempos; isto levou à introdução na auto-intitulada ‘espiritualidade’ de um
método totalmente incompatível com a dignidade humana, e ao mesmo tempo
estranhamente contradizendo as pretensões de ser ‘adulto’ ou ‘emancipado’. As
pessoas brincam a serem semi-deuses e ao mesmo tempo consideram-se irresponsáveis;
à mínima depressão, causada tanto por uma vivência demasiadamente agitada, ou
por um modo de vida demasiado contrário ao senso comum, as pessoas correm para
o psiquiatra, cujo trabalho consistirá em insinuar nelas algum falso otimismo
ou em recomendar algum pecado ‘libertador’. Ninguém parece ter nem um vago
pressentimento do facto de que existe apenas um equilíbrio, designadamente
aquele que nos fixa no nosso centro verdadeiro e em Deus.
Um dos efeitos mais odiosos da
adoção do método psicanalítico pelos ‘crentes’ é como o culto da Virgem Maria
caiu em desfavor; só uma mentalidade bárbara que quer ser ‘adulta’ a todos os
custos e já não crê em nada que não seja trivial embaraçar-se-ia por este
culto. A resposta à censura de ‘ginecolatria’ ou de ‘complexo de Édipo’ é a de
que, como todos os outros argumentos psicanalíticos, evita o problema; pois a
verdadeira questão não é o que a acondicionação psicológica de uma atitude possa
ser, mas pelo contrário, quais são os seus resultados. Quando por exemplo se é
dito que alguém escolheu a metafísica como um ‘escape’ ou como uma ‘sublimação’
e por causa de um ‘complexo de inferioridade’ ou de uma ‘repressão’ tudo isto
não é de qualquer importância, pois abençoado seja o complexo que é a causa
ocasional de uma aceitação da verdade e do bom! Mas há também isto: os
modernos; cansados que estão da suavidade artificial com que a sua cultura e a
sua religiosidade é levada desde o período barroco, estendem a sua aversão –
como é seu hábito – a toda a doçura e sensibilidade legítima, e portanto
fecham-se, seja de uma dimensão inteiramente espiritual, se são ‘crentes’, ou
até de toda a genuína humanidade, como é demonstrado por um determinado culto
infantil da vileza e do barulho.
Além disso, não é suficiente perguntar
qual a particular devoção apropriada em almas particulares, deve-se também
perguntar o que se lhe deve substituir; pois o lugar de uma devoção suprimida
nunca se mantem vazio.
* * *
‘Conhece-te a ti mesmo’
(Helenismo) diz a Tradição, e também ‘Aquele que conhece a sua alma conhece o
seu Senhor’ (Islão). O modelo tradicional do que a psicanálise deve ser, ou proclama
ser, é a ciência das virtudes e dos vícios; a virtude fundamental é a sinceridade
e coincide com a humildade; quem se aprofunda na busca da verdade e da retitude
na sua alma acaba por detetar os nós mais subtis do inconsciente. É
desnecessário procurar curar a alma sem curar o espírito: o que conta em
primeiro lugar é aclarar a inteligência dos erros que a pervertem, e então
criar uma fundação com vista ao retorno da alma ao equilíbrio; não apenas
qualquer equilíbrio, mas ao equilíbrio cujo princípio a alma carrega consigo.
São Bernardo disse que a alma arrebatada
é uma ‘coisa abjeta’ e Mestre Eckhart exorta-nos a ‘detestá-la’. Isto significa
que o grande remédio para todas as nossas misérias interiores é a objetividade
em direção a nós mesmos; agora a fonte, ou o ponto de partida, desta
objetividade encontra-se situado acima de nós, em Deus. Aquilo que está em Deus
é por essa razão refletido no nosso centro transpessoal que é o puro Intelecto;
isso é, a Verdade que nos salva é parte da nossa substância mais íntima e real.
Erro, ou impiedade, é a recusa de ser o que se é.
1. ‘…porque
te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo
lançado no inferno.’ (Mateus,
V,29).
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