Friday, December 29, 2017

O Reacionário Autêntico




Deixamos aos nossos leitores a tradução de um dos mais brilhantes textos sobre o espírito reacionário e a sua intemporalidade, intitulado 'O Reacionário Autêntico', da autoria de Nicolás Gómez Dávila.

Este autor colombiano do século XX de obra extensa, cujo legado intelectual, sobretudo na forma aforística, ainda era desconhecido do grande público há poucas décadas. Contámos com esta tradução começar a preencher a lacuna da falta divulgação da sua obra junto do público português.


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A existência do reacionário autêntico tende a escandalizar o progressista. A sua presença incomoda-o vagamente. Ante a atitude reacionária, o progressista sente um pequeno desprezo, acompanhado de surpresa e inquietação.

Para apaziguar as suas dúvidas, o progressista costuma interpretar essa atitude intempestiva e chocante como um disfarce de interesses ou como um sintoma de estupidez; mas sozinhos, o jornalista, o político e o tolo não se surpreendem, secretamente, com a tenacidade com que as inteligências superiores do Ocidente, desde há cento e cinquenta anos, acumulam objeções contra o mundo moderno. Um desdém complacente não parece, com efeito, a resposta adequada a uma atitude em que um Goethe pode irmanar-se com um Dostoiévski.

Mas se todas as teses do reacionário surpreendem o progressista, a mera postura reacionária desconcerta-o. Que o reacionário proteste contra a sociedade progressista, que a julgue e que a condene, mas que se resigne, sem embargo, ao seu atual monopólio da história, parece-lhe uma posição extravagante.

O progressista radical, por um lado, não compreende como o reacionário condena um facto que admite, e o progressista liberal, por outro lado, não entende como ele admite um facto que condena.

O primeiro exige-lhe que renuncie a condenar se reconhece que o facto é necessário, e o segundo que não se limite a abster-se se confessa que o facto é reprovável. Aquele condena-o a render-se, este a atuar. Ambos censuram sua lealdade passiva face à derrota.

O progressista radical e o progressista liberal, com efeito, repreendem o reacionário de forma diferente, porque um sustenta que a necessidade é razão, enquanto o outro afirma que a razão é liberdade. Uma distinta visão da história condiciona as suas críticas.

Para o progressista radical, necessidade e razão são sinônimos: a razão é a substância da necessidade, e a necessidade o processo em que a razão se realiza. Ambas são uma só corrente de existências.

A história do progressista radical não é a soma do meramente acontecido, senão uma epifania da razão. Ainda que ensine que o conflito é o mecanismo vetor da história, toda a superação resulta de um ato necessário, e a série descontínua dos atos é o caminho que traçam, ao avançar sobre a carne vencida, os passos da razão indeclinável.

O progressista radical apenas adere à ideia que a história cauciona, porque a o perfil da necessidade revela os rasgos do motivo nascente. Do curso próprio da história emerge a norma ideal que o nimba.

Convencido da racionalidade da história, o progressista radical atribui-se o dever de colaborar com o seu êxito. A raiz da obrigação ética jaz, para ele, na nossa possibilidade de impulsionar a história para os seus próprios fins. O progressista radical inclina-se sobre o facto iminente para favorecer o seu advento, porque ao atuar no sentido da história a razão individual coincide com a razão do mundo.
                                                       
Para o progressista radical, então, condenar a história não é tão só uma empresa vã, mas também uma empresa estulta. Empresa vã porque a história é necessidade; empresa estulta porque a história é razão.

O progressista liberal, por outro lado, instala-se numa contingência pura. A liberdade, para ele, é substância da razão, e a história é o processo em que o homem realiza a sua liberdade.

A história para o progressista liberal não é um processo necessário, mas a ascensão da liberdade humana até à plena posse de si mesma. O homem forja a sua história imputando à natureza as falhas do seu livre-arbítrio.

Se o ódio e a ganância arrastam o homem por entre labirintos sangrentos, a luta realiza-se entre liberdades pervertidas e liberdades retas. A necessidade é, meramente, o peso opaco de nossa própria inércia e o progressista liberal acredita que a boa vontade pode resgatar o homem, em qualquer instante, das servidões que o oprimem.

O progressista liberal exige que a história se comporte de acordo com o que a sua razão postula, posto que a liberdade cria-a; e como a sua liberdade também engendra as causas que ele defende, nenhum facto pode prevalecer sobre o direito que a liberdade estabelece.

O ato revolucionário condensa o obrigação ética do progressista liberal, porque quebrar o que a estorva é o ato essencial da liberdade que se realiza. A história é uma matéria inerte que lavra uma vontade soberana.

Para o progressista liberal, então, resignar-se à história é uma atitude imoral e estulta. É estulta porque a história é liberdade; imoral porque a liberdade é a nossa essência.

O reacionário, no entanto, é o estulto que assume a vaidade de condenar a história, e a imoralidade de resignar-se a ela.

Progressismo radical e progressismo liberal elaboram visões parciais. A história não é necessidade, nem liberdade, mas a sua integração flexível.

A história, com efeito, não é um monstro divino. A poeira humana não parece levantar-se sob o sopro de uma besta sagrada; os tempos não parecem ordenar-se como estádios na embriogénese de um animal metafísico; os feitos não se sobrepõem uns com os outros como escamas de um peixe celestial.

Mas se a história não é um sistema abstrato que germina sob leis implacáveis, tão pouco é o alimento dócil da loucura humana. O vontade caprichosa e gratuita do homem não é o seu reitor supremo. Os factos não se moldam, como uma pasta viscosa e plástica, entre dedos ansiosos.

Com efeito, a história não resulta de uma necessidade impessoal, nem do capricho humano, mas de uma dialética da vontade onde o livre-arbítrio se desenrola em consequências necessárias.

A história não se desenvolve como um processo dialético único e autónomo, que prolonga em dialética vital a dialética da natureza inanimada, mas num pluralismo dos processos dialéticos, numerosos como os atos livres e vinculados à diversidade dos seus terrenos carnais.

Se a liberdade é o ato criador de história, se cada ato livre engendra um história nova, o ato criador livre é projetado sobre o mundo num processo irrevogável. A liberdade segrega a história como uma aranha metafísica a geometria da sua teia.

A liberdade, de facto, aliena-se no mesmo gesto em que se assume, porque o ato livre possui uma estrutura coerente, uma organização interna, uma proliferação normal de sequelas. O ato desenrola-se, dilata-se, expande-se em consequências necessárias, de forma concorde ao seu caráter íntimo e à sua natureza inteligível. Cada ato submete uma parte do mundo a uma configuração específica.

A história, portanto, é um vínculo de liberdades endurecidas em processos dialéticos. Quanto mais profundo for o estrato donde brota o ato livre, mais variadas são as áreas de atividade que o processo determina, e maior a sua duração. O ato superficial e periférico esgota-se em episódios biográficos, enquanto o ato central e profundo pode criar uma época para uma sociedade inteira.

A história articula-se, assim, em momentos e em épocas: em atos livres e em processos dialéticos. Os instantes são a sua alma fugidia, as épocas o seu corpo tangível. As épocas estendem-se como trechos entre dois instantes: o seu momento germinal e o momento do encerramento do ato incoativo de um nova vida. Sobre dobradiças de liberdade movem-se portas de bronze.

As épocas não têm uma duração irrevogável: o encontro com processos emergentes de maior profundidade pode interrompê-las, a inércia da vontade pode prolongá-las. A conversão é possível, a passividade familiar. A história é uma necessidade que a liberdade engendra e a casualidade destrói.

As épocas coletivas são resultado de uma comunhão ativa numa decisão idêntica, ou de contaminação passiva das vontades inertes; mas enquanto dura o processo dialético em que as liberdades se verteram, a liberdade do inconformado retorce-se numa rebeldia ineficaz. A liberdade social não é opção permanente, senão brandura repentina na conjuntura das coisas.

O exercício da liberdade supõe uma inteligência sensível à história, porque ante a liberdade alienada de uma sociedade inteira o homem só pode perseguir o ruído da necessidade que se quebra. Todo o propósito se frustra se não se insere nos entalhes cardiais de uma vida.

Face à história, apenas surge a obrigação ética de agir quando a consciência aprova o propósito que momentaneamente impera ou quando as circunstâncias culminam numa conjuntura propícia à nossa liberdade.

O homem que o destino coloca numa época sem fim previsível, e cujo caráter fere os mais fundos nervos do seu ser, não pode sacrificar, atropeladamente, a sua repugnância ao seu espírito, nem a sua inteligência à sua vaidade. O gesto espetacular e vazio merece o aplauso público e o desdém daqueles aos quais a meditação reclama. Nos lugares sombrios da história, o homem deve resignar-se a olhar com paciência as soberbas humanas.

O homem pode, assim, condenar a necessidade sem se contradizer, ainda que não possa agir senão quando a necessidade colapsa.

Se o reacionário admite a esterilidade atual dos seus princípios e da inutilidade das suas censuras, não é porque lhe baste o espetáculo das confusões humanas. O reacionário não se abstém de atuar porque o risco o assuste, mas porque ele estima que atualmente as forças sociais lançam-se furiosas para a meta que desdenha. Dentro do processo atual, as forças sociais cavaram o seu leito na rocha, e nada mudará o seu curso enquanto não desemboquem no raso de uma planície incerta. A gesticulação dos náufragos só faz fluir os seus corpos paralelamente a uma margem distinta.

Mas se o reacionário é impotente no nosso tempo, a sua condição obriga-o a testemunhar a sua náusea. Liberdade, para o reacionário, significa submissão a um mandato.

Na verdade, mesmo quando não seja nem necessidade, nem capricho, a história, para o reacionário, não é, no entanto, dialética da vontade imanente, mas a aventura temporal entre o homem e o que o transcende. As suas obras são traços; sobre a areia revolta, o corpo do homem e o corpo do anjo. A história do reacionário é uma tira, rasgada pela liberdade do homem, que oscila ao sopro do destino.

O reacionário não pode ficar em silêncio, porque a sua liberdade não é meramente o asilo onde o homem escapa do tráfego que o atormenta, e onde se refugia para se assumir a si mesmo. No ato livre, o reacionário não toma, somente, posse da sua essência.

A liberdade não é uma possibilidade abstrata de escolher entre bens conhecidos, mas a concreta condição dentro da qual nos é outorgada a possessão da sua essência.

A liberdade não é uma possibilidade abstrata de escolher entre bens conhecidos, mas a condição concreta dentro da qual nos é outorgada a posse de novos bens. A liberdade não é uma instância que decide pleitos entre instintos, mas a montanha da qual o homem contempla a ascensão de novas estrelas, entre o pó luminoso do céu estrelado.

A liberdade coloca o homem entre proibições que não são físicas e imperativos que não são vitais. O momento livre dissipa a vã claridade do dia, para que se erga, no horizonte da alma, o universo imóvel que desliza as suas luzes transientes sobre o tremor da nossa carne.

Se o progressista inclina-se em direção ao futuro, e o conservador em direção ao passado, o reacionário não mede os seus desejos com a história de ontem ou com a história de amanhã. O reacionário não aclama o que o próximo amanhecer há de trazer, nem se apega às últimas sombras da noite. A sua habitação ergue-se nesse espaço luminoso onde as essências interpelaram-no com as suas presenças imortais.

O reacionário escapa à servidão da história, porque persegue na selva humana a pegada dos passos divinos. Os homens e os factos são, para o reacionário, a carne servil e mortal que alimentam sopros tramontanos.

Ser reacionário é defender causas que não se movem sobre o tabuleiro da história, causas que não importa perder.

Ser reacionário é saber que só descobrimos o que pensamos inventar; é admitir que nossa imaginação não cria, mas que desnuda os corpos suaves.

Ser reacionário não é abraçar determinadas causas nem advogar determinados fins, mas submeter a nossa vontade à necessidade que não constringe, fazer render a nossa liberdade à exigência que não compele; é encontrar as evidências que nos guiam adormecidas até a borda de lagoas milenárias.

O reacionário não é o sonhador nostálgico de passados ​​abolidos, mas o caçador de sombras sagradas nas colinas eternas.

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