Publicamos
abaixo a tradução para português do ensaio de Titus Burckhardt denominada ‘A
Teoria da Evolução’.
A par da
falaciosa e perversa teoria heliocêntrica, o mito moderno da evolução das
espécies é uma das ferramentas tenebrosas da modernidade para operar a subversão
em curso e garantir o cumprimento dos seus objetivos, que podem ser resumidos à
perda de todo o sentido espiritual da existência.
É de notar
como este mito, pelos meios insidiosos com que invadiu o subconsciente humano, permeia
não só o presente meio académico e dito “científico”, mas infelizmente também
ganha cada vez mais terreno no campo religioso e “espiritual”, que, numa ânsia
ignorante de se manter popular, adotou os piores dogmas que afetam o presente
estado da humanidade.
E haverá método
mais efetivo do que aquele que, depois de ter convencido o homem de que ele não
se encontra mais no centro do universo, revela que ele na verdade deriva de outros animais,
nomeadamente de símios, e que estes derivam por sua vez de formas ainda mais
básicas de matéria, cortando assim o último elo de ligação com o Divino?
De recordar
que a investigação da matéria ocorre já desde tempos imemoriais e que a interpretação
que se dá dos dados físicos depende sempre duma conceção metafísica que, quer se
queira quer se não, existe sempre a priori.
Se só no século
XVIII se concebeu olhar para dados físicos que estavam à disposição de seres
humanos há milhões de anos e formular a teoria evolutiva, tal se deve ao facto
de a mente humana ter regredido a tal ponto de não conceber mais a origem
divina do Universo e arrogar-se a ignorar a mais básica metafísica, que foi
sempre o substrato das grandes civilizações que foram habitando a Terra desde tempos
imemoriais.
Cabe
reintegrar a ciência dentro de uma cosmovisão própria e perceber que o seu função
própria e importante num certo contexto, é de uma ordem infinitamente inferior
à verdadeira metafísica e aos ensinamentos das grandes religiões e tradições da
Humanidade.
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O mínimo fenómeno participa em várias continuidades
ou em dimensões cósmicas que são incomensuráveis em relação a cada; portanto, o
gelo é água no que se reporta à sua substância – e neste aspeto é indistinguível
da água líquida ou do vapor aquático – mas no que concerne ao seu estado
pertence à classe dos corpos sólidos. Similarmente, quando uma coisa é
constituída por vários elementos, ela participa nas suas naturezas enquanto é
diferente delas. O cinábrio, por exemplo, é a síntese do sulfúrico e do
mercúrio; é num sentido a soma desses dois elementos, mas ao mesmo tempo possui
qualidades que não são encontráveis em quaisquer dessas duas substâncias. As
quantidades podem ser acrescentadas a um e a outro, mas a qualidade nunca é
meramente a soma de outras qualidades. Ao misturar a cor azul com a amarela, o
verde é obtido; esta terceira cor é portanto a síntese das outras duas, mas não
é o produto da simples adição, por representar ao mesmo tempo uma qualidade
cromática que é nova e única em si mesma.
Existe algo como uma “continuidade descontínua”, a
qual é ainda mais notória na ordem biológica, onde a unidade qualitativa de um
organismo é claramente distinguível da sua composição material. O pássaro que
nasce do ovo é composto dos mesmos elementos do ovo, mas não é o ovo. Do mesmo
modo, a borboleta que emerge da crisálida não é nem a crisálida nem a lagarta
que a produziram. Um parentesco existe entre os vários organismos, uma
continuidade genética, mas eles também demonstram uma descontinuidade
qualitativa, já que entre a lagarta e a borboleta existe algo como uma rutura
de nível.
Em todo o ponto da rede cósmica existe uma urdidura
e um tecido que se intersectam um ao outro, e isto é indicado pelo simbolismo
tradicional da tecelagem, de acordo com a qual as linhas da urdidura, que se
mantém verticais sobre o tear, representam as essências permanentes das coisas
– e portanto também as qualidades essenciais e as formas – enquanto o tecido,
que prende horizontalmente as linhas da urdidura, e ao mesmo tempo cobre-as com
as suas ondas alternantes, corresponde à continuidade substancial ou “material”
do mundo.
A mesma lei é expressa pelo hilomorfismo clássico,
o qual distingue entre “forma” de uma coisa – o selo da sua unidade essencial –
da sua “matéria”, nomeadamente a substância plástica que recebe o selo e a
supre com uma existência concreta e limitada. Nenhuma teoria moderna foi alguma
vez capaz de substituir esta teoria antiga, pelo facto de que reduzir a
plenitude total do real a uma ou outra das suas “dimensões” dificilmente
equivale a uma explicação do mesmo. A ciência moderna é ignorante acima de tudo
de tudo do que os Antigos designavam pelo termo de “forma”, precisamente porque
é aqui uma questão de um aspeto não-quantitativo das coisas, e a sua ignorância
não está desconectada com o facto de as ciências modernas não verem critério na
beleza ou na fealdade de um fenómeno: a beleza de uma coisa é o sinal da sua
unidade interna, da sua conformidade com uma essência indivisível, e portanto
com uma realidade que não se deixará contar ou medir.
É necessário apontar aqui que a noção de “forma”
necessariamente inclui um sentido duplo: por um lado significa a delimitação de
uma coisa, e este é o seu significado mais comum; nesta conexão, a forma está
situada do lado da matéria, ou, de um modo geral, do lado da substância
plástica, a qual limita e separa realidades. Do outro lado, “forma” entendida
no sentido dado pelos filósofos gregos e depois pelos escolásticos, é o
agregado das qualidades relacionadas a um ser ou a uma coisa, e então é a
expressão de um traço da sua essência imutável.
O mundo individual é o mundo “formal” porque é o
domínio daquelas realidades que são constituídas pela conjunção de “forma” e
”matéria”, tanto subtil como corpórea. É apenas em conexão com uma “matéria”,
uma substância plástica, que a “forma” representa a parte de um princípio de
individuação; em si mesma, na sua base oncológica, não é uma realidade
individual mas um arquétipo, e como tal para além de limitações e de mudança.
Portanto uma espécie é um arquétipo, e se é só manifestada pelos indivíduos que
lhe pertencem, é de qualquer dos modos tão real, e até incomparavelmente mais
real, que eles. Quanto à objeção racionalista que tenta provar o absurdo da
doutrina dos arquétipos ao argumentar que uma multiplicação de noções mentais
implicaria uma correspondente multiplicação dos arquétipos – levando à ideia da
ideia da ideia, e daí por diante – falha totalmente o alvo, já que a
multiplicidade não pode de modo algum ser transposta ao nível das raízes
arquetípicas. As últimas são distinguíveis de um modo originário, dentro do Ser
e por virtude do Ser; nesta conexão, o Ser pode ser encarado como um cristal
único e homogéneo, contendo potencialmente todas as formas cristalinas
possíveis. Multiplicidade e quantidade só podem portanto existir ao nível das
reflexões “materiais” dos arquétipos.
Do que foi dito, segue-se que uma espécie é em si
uma “forma” imutável; não pode evoluir e ser transformada noutra espécie,
apesar de poder incluir variantes, que são “projeções” diversas de uma forma
essencial única, da qual não podem nunca ser separadas, não mais do que os
ramos de uma árvore podem ser separados do tronco.
Já foi justamente dito que toda a tese da evolução
das espécies, inaugurada por Darwin, é baseada na confusão entre espécies e
simples variação. Os seus promotores propõem como o “rebento” ou o início de
uma nova espécie o que na realidade não é mais do que uma variação dentro da
estrutura de um determinado tipo específico. Esta assimilação falsa não é, no
entanto, suficiente para preencher as inumeráveis lacunas que ocorrem na
sucessão paleontológica das espécies; não só são as espécies aparentadas
separadas por lacunas profundas, mas não existem ainda quaisquer formas que
indiquem qualquer tipo de ligação entre diferentes ordens como os peixes, répteis,
pássaros e mamíferos. Sem dúvida podem-se encontrar alguns peixes que usam as
suas barbatanas para rastejar para uma margem, mas buscar-se-ia em vão nessas
barbatanas pelo mais pequeno começo daquela articulação que possibilitaria a
formação de um braço ou de uma garra. Do mesmo modo, se existem certas
semelhanças entre répteis e pássaros, os seus respetivos esqueletos são no
entanto de uma estrutura fundamentalmente diferente. Então, por exemplo, a
muito complexa articulação da mandíbula de um pássaro, e a relacionada organização
do seu aparato auditivo, reportam-se a um plano inteiramente diferente do
encontrado nos répteis; é difícil conceber como um possa ter-se desenvolvido do
outro. Quanto ao famoso fóssil pássaro Archaeopteryx,
é justa e precisamente um pássaro, apesar das garras no final das asas, dos
seus dentes e da sua longa cauda.
Em ordem para explicar a ausência de formas
intermédias, os partidários do transformismo argumentam por vezes que estas
formas devem ter desaparecido por causa da sua mesma imperfeição e precaridade;
mas este argumento está em plena contradição com o princípio da seleção que é
suposto ser o fator operativo na evolução das espécies: as formas da prova
deviam ser incomparavelmente mais numerosas que os antepassados que já adquiriram
uma forma definitiva. Ademais, se a evolução das espécies representa, como é
declarado, um processo gradual e contínuo, todos os elos reais na correia –
portanto todos aqueles destinados a serem seguidos – serão tanto pontos de
chegada e intermediários, o que em qualquer dos casos é difícil ver porque uns
serão muito mais precários que os outros.
Os mais conscienciosos entre os biologistas modernos
ou rejeitam a teoria transformista, ou em vez mantêm que ela é uma “hipótese em
trabalho”, sendo incapazes de conceber qualquer génese de espécies que não se
encontre situada na “linha horizontal” de um devir puramente físico e temporal.
Para Jean Rostand,
o mundo postulado pelo transformismo
é um mundo de conto-de-fadas, fantasmagórico, surrealista. O ponto principal,
ao qual sempre se retorna, é o de que nunca estivemos presentes, mesmo de modo
pequeno, num autêntico fenómeno de evolução… mantemos a impressão de que a
natureza hoje nada tem a oferecer que seja capaz de reduzir o nosso embaraço
ante a verdadeira metamorfose orgânica implícita na tese transformista.
Mantemos a impressão de que, no que se relaciona com a génese das espécies
assim como com a génese da vida, as forças que construíram a natureza se
encontram agora ausentes da natureza…
Mesmo assim, este biologista cola-se à teoria
transformista:
Acredito firmemente – porque não vejo
modos de o fazer de outra maneira – que os mamíferos vieram dos lagartos, e os
lagartos dos peixes; mas quando declaro e quando penso em tal coisa, tento não
evitar ver a enormidade indigestível e prefiro deixar vaga a origem destas
escandalosas metamorfoses em vez de acrescentar às suas improbabilidades aquela
de uma interpretação ridícula.
Tudo o que a paleontologia nos prova é que as
várias formas animais, como são mostradas pelos fósseis preservados em
sucessivas camadas terrenas, fizeram a sua aparência numa vaga ordem
ascendente, indo de organismos relativamente indiferenciados – mas não simples
– até formas cada vez mais complexas, sem que esta ascensão represente uma
linha inequívoca e contínua. Parece mover-se por saltos; noutras palavras,
categorias inteiras de animais aparecem de uma vez, sem predecessores reais. O
que é que esta ordem significa? Simplesmente que, no plano material, o simples
e indiferenciado precede sempre o complexo e diferenciado. Toda a “matéria” é
como um espelho que reflete a atividade das essências, enquanto também a
inverte; é por isso que a semente vem antes da árvore e que o botão antes da
flor, enquanto que na ordem principal as “formas” pré-existem. O surgimento
sucessivo de formas animais de acordo com uma ascensão hierárquica portanto em
nada prova a sua génese contínua e cumulativa.
Pelo contrário, o que liga as várias formas animais
umas às outras é algo como um modelo comum, o que se revela mais ou menos
através das suas estruturas e que é mais aparente no caso de animais portadores
de consciência superior como as aves e os mamíferos. Este modelo é patente
especialmente na disposição simétrica do corpo, no número de extremidades e de
órgãos sensórios, e também na forma geral dos principais órgãos internos.
Poderá ser sugerido que o design e o número de certos órgãos, e especialmente dos
sensoriais, correspondem simplesmente aos arredores territoriais; mas este
argumento é reversível, porque esses arredores são precisamente o que os órgãos
sensoriais compreendem e delimitam. De fato, o modelo subjacente a todas as
formas animais estabelece a analogia entre o microcosmos e o macrocosmos.
Contra o fundo deste padrão cósmico comum as diferenças entre espécies e as
lacunas que os separam são ainda mais marcadas.
Em vez de “ligações perdidas”, que os partidários
do transformismo buscam em vão, a natureza oferece-nos, como por ironia, uma
larga variedade de formas animas as quais, sem transgredirem a estrutura
pré-estabelecida de uma espécie, imitam a aparência e os hábitos de uma espécie
ou ordem estranha a ela. Então, por exemplo, as baleias são mamíferos, mas elas
assumem a aparência e o comportamento de peixes; o colibri tem a aparência,
cores iridescentes, voo e modos de alimentação das borboletas; o armadilho está
coberto de escamas como um réptil, apesar de ser um mamífero; e daí por diante.
A maior parte destes animais com formas imitativas são espécies superiores que
adotaram formas de espécies relativamente inferiores, um facto que a priori exclui uma interpretação deles
como ligações intermediárias numa evolução. Quanto à sua interpretação como
formas de adaptação a um dado conjunto de arredores, isto parece mais que
duvidoso, já que o que poderiam ser, por exemplo, as formas intermédias entre
um qualquer mamífero terrestre ou outro e o golfinho? Entre estas formas
“imitativas”, que constituem tantos casos extremos, temos também que incluir o
pássaro fóssil Archaeopteryx acima
mencionado.
Já que cada ordem animal representa um arquétipo
que inclui os arquétipos da correspondente espécie, um deve-se também perguntar
se a existência de formas animais “imitativas” não contradiz a imutabilidade
das formas essenciais; mas isto não corresponde ao caso, já que a existência
destas formas demonstra, pelo contrário, essa mesma imutabilidade por um
esgotamento lógico de todas as possibilidades inerentes num determinado tipo ou
forma essencial. É como se a natureza, depois de ter trazido peixes, répteis,
pássaros e mamíferos, com as suas características distintivas, desejou ainda
mostrar que ela era capaz de produzir um animal como o golfinho que, enquanto
sendo um verdadeiro mamífero, possui ao mesmo tempo quase todas as faculdades
de um peixe, ou uma criatura como a tartaruga, a qual possui um esqueleto
coberto por carne, mas que ao mesmo tempo está coberta numa carapaça exterior
na esteira de certos moluscos. Então a natureza manifesta o seu poder
multiforme, a sua inesgotável capacidade de geração, enquanto se mantém fiel às
suas formas essenciais, as quais nunca são ofuscadas.
Cada forma essencial – ou cada arquétipo – inclui
todos os outros à sua medida, mas sem confusão; é como se um espelho refletisse
outros espelhos, que o refletem por sua vez. No seu significado mais profundo a
mútua reflexão de tipos é uma expressão da homogeneidade metafísica da
Existência, ou da unidade do Ser.
Alguns biologistas, quando confrontados com a
descontinuidade na sucessão paleontológica das espécies, postulam uma evolução
por saltos e, em ordem para tornar esta teoria plausível, referem as repentinas
mutações observadas em algumas espécies vivas. Mas estas mutações nunca excedem
os limites de uma anomalia ou decadência, como por exemplo a aparência súbita
dos albinos, ou de anões ou gigantes; mesmo quando estas características são
hereditárias, elas mantêm-se como anomalias e nunca constituem formas
específicas novas. Para isto acontecer, seria necessário que a substância vital
de uma espécie existente servisse de “material plástico” para uma nova forma
específica manifestada; na prática, isto significa que uma ou várias fêmeas
desta espécie existente carregassem a prole de uma espécie nova. Agora, como o
hermetista Ricardo o Inglês escreve:
Nada pode ser produzido de uma coisa
que não está contida nela; por esta razão, todas as espécies, todas as classes,
e toda ordem natural desenvolve-se dentro dos limites próprios a ela e carrega
os frutos de acordo com o seu tipo próprio e não de acordo com uma ordem
essencialmente diferente; tudo que recebe uma semente deve ser da mesma
semente.
Fundamentalmente, a tese evolucionista é uma
tentativa de substituir, não simplesmente o “milagre da criação”, mas o
processo cosmogónico – maioritariamente supra-sensorial – do qual a narrativa
Bíblica é um símbolo Escritural; evolucionismo, por absurdamente fazer o maior
derivar do menor, é o oposto deste processo, ou desta “emanação”. (Este termo
nada tem a ver com a heresia emanacionista, já que a transcendência e a
imutabilidade do princípio ontológico não são aqui de modo algum postas em
questão.) Numa palavra, o evolucionismo resulta da incapacidade – peculiar à
ciência moderna – de conceber “dimensões” de realidade que não puramente
físicas; para entender a génese “vertical” das espécies, é de recordar o que
René Guénon disse sobre o progressiva solidificação do estado corporal através
das várias idades terrestres. Esta solidificação obviamente não deve ser
interpretada por sugerir que as pedras das primeiras idades fossem moles, já
que isto seria equivalente a dizer que certas qualidades físicas – e em
particular a dureza e a densidade – escasseavam então; o que foi endurecido e
se tornou fixado com o tempo é o estado corporal tomado como um todo, com o
resultado de que ele já não recebe diretamente a impressão das formas subtis.
Seguramente, não se pode tornar destacado do estado subtil, que é a sua raiz
ontológica e que o domina inteiramente, mas a relação entre os dois estados de
existência não mais tem o caráter criativo que possuía na origem; é como quando
um fruto, tendo atingido maturidade, torna-se rodeado por uma película exterior
cada vez mais dura e cessa de absorver a seiva do tronco. Numa fase cíclica na
qual a existência corpórea não tinha ainda atingido este grau de solidificação,
uma nova forma específica podia manifestar-se diretamente deste ponto de
partida da sua primeira “condensação” no estado subtil ou anímico; isto
significa que os diferentes tipos de animais pré-existiram ao nível
imediatamente superior ao mundo corpóreo como formas não-espaciais, mas mesmo assim
enrouparam-se numa determinada “matéria”, nomeadamente aquela do mundo subtil.
Daí estas formas “desceram” ao estado corporal cada vez que este último estava
pronto a recebê-las; esta “descida” teve a natureza de uma coagulação súbita e
portanto também a natureza de uma limitação e fragmentação da forma anímica
original. A cosmologia indo-tibetana descreve esta descida – que é também uma
queda – no caso dos seres humanos sob a forma de um combate mitológico dos devas e dos asuras: os devas tendo
criado o homem com um corpo que era fluido, multiforme, e diáfano – noutras
palavras, numa forma subtil – os asuras
tentaram destrui-lo por uma petrificação progressiva; torna-se opaco, fixo, e o
esqueleto, afetado pela petrificação, é imobilizado. Então os devas, tornando o mal em bem, criam
articulações, depois de terem fraturado as pernas, e também abrem acessos aos
sentidos, ao perfurarem a caveira, que ameaça emprisionar o assento da mente.
Desta maneira o processo de solidificação pára antes de atingir o limite
extremo, e certos órgãos no homem, como o olho, ainda retém algo da natureza
dos estados não-corporais.
Nesta história, a descrição pictórica do mundo
subtil não deve ser mal-entendida. No entanto, é certo que o processo de
materialização, do supra-sensório ao sensório, teve que ser refletida no estado
material ou corporal próprio, para que se possa dizer sem erro, que as
primeiras gerações de uma espécie nova não deixaram marca no grande livro das
camadas terrestres; é portanto em vão procurar na matéria sensível os
antepassados de uma espécie, e especialmente a do homem.
Já que a teoria transformista não é fundada em qualquer
prova real, o seu corolário e conclusão, nomeadamente a teoria da origem
infra-humana do homem, continua suspensa no vácuo. Os factos aduzidos a favor
desta tese estão restringidos a pequenos grupos de esqueletos de cronologia díspar;
acontece que alguns tipos de esqueletos considerados mais “evoluídos”, como o “homem
de Steinheim”, precede outros, de caráter aparentemente mais primitivo, como o “homem
de Neandertal”, apesar de o último não ser tão similar com o orangotango como
nos querem fazer acreditar.
Se, em vez de sempre porem as questões: em que
ponto começou a humanidade, e qual o grau de evolução de tal e tal tipo
considerado como ser pré-humano, nos perguntássemos: de há quanto tempo atrás vem
o macaco, as coisas talvez aparecessem sob uma luz muito diferente, já que um
fragmento de um esqueleto, mesmo um relacionado com o do homem, dificilmente
será suficiente para estabelecer a presença daquilo que constitui o homem,
nomeadamente a razão, enquanto é possível conceber uma grande variedade de
macacos antropoides cujas anatomias são mais ou menos parecidas com a do homem.
Quanto paradoxal isto possa parecer, a semelhança
anatómica entre o homem e os símios antropoides é explicável precisamente pela
diferença – não gradual, mas essencial – que separa o homem dos outros animais.
Já que a forma antropoide é capaz de existir sem o elemento “central” que
caracteriza o homem – este elemento “central” manifestando-se anatomicamente
por esta posição vertical, entre outras coisas – a forma antropoide tem de
existir; por outras palavras, não pode não ser encontrada ao nível puramente
animal, a forma que realiza da sua própria maneira – isto é dizer, de acordo
com as leis do seu nível próprio – o próprio plano da anatomia humana; o macaco
é uma prefiguração do homem, não no sentido de uma fase evolutiva, mas em
virtude da lei que decreta que a todos os níveis de existência podem ser
encontradas possibilidades análogas.
Uma questão posterior surge no caso dos fósseis atribuídos
ao homem primitivo: alguns destes fósseis pertencem aos homens que podemos
olhar como sendo antepassados dos homens atuais, ou eles são testemunho de grupos
que sobreviveram ao cataclismo no final de uma era terrestre, só para
desaparecer por sua vez antes do início da nossa humanidade atual? Em vez de
homens primitivos, pode bem ser o caso de homens degenerados, os quais
existiram ou não juntamente com os nossos reais antepassados. Sabemos que o
folclore da maior parte dos povos fala de gigantes e de duendes que viveram
muito tempo atrás, em países remotos; hoje, entre os esqueletos, vários casos
de gigantismo podem sem encontrados.
Finalmente, deixe que se relembre uma vez mais que
os corpos dos homens mais antigos não deixaram necessariamente traços sólidos,
ou porque os seus corpos não estavam naquele momento materializados ou “solidificados”,
ou porque o estado espiritual destes homens, juntamente com as condições
cósmicas desse tempo, tornaram possível a reabsorção do corpo físico no ”corpo”
subtil no momento da morte.
Devemos agora dizer algumas palavras sobre a tese, hoje
muito em voga, que reclama ser algo como uma reintegração espiritual da
paleontologia, mas que na realidade não é mais que uma mera sublimação mental
do mais cru materialismo, com todos os preconceitos que este contém, desde a
crença no indefinido progresso da humanidade a um nivelamento e a um
coletivismo totalitário, sem esquecer o culto da máquina que é o centro de tudo
isso; tornar-se-á aparente que nos estamos a referir aqui ao evolucionismo teilhardiano.
De acordo com Teilhard de Chardin, que não se deixa preocupar com as lacunas
inerentes no sistema evolucionista e que confia no clima criado pela
popularização prematura das teses transformistas, o próprio homem representa
apenas um estado intermédio na evolução que se inicia com organismo
unicelulares e que termina numa espécie de entidade cósmica global, unida a
Deus. A mania de tentar trazer tudo a uma única linha genética inequívoca e
ininterrupta aqui excede o plano material e lança-se freneticamente numa “mentalização”
irresponsável e ávida caracterizada por uma roupagem abstrata em imagens
artificiais cujo seu autor acaba por tomar literalmente, come se estivéssemos a
lidar com realidades concretas. Já mencionámos a imaginária árvore genológica
das espécies, cuja suposta unidade não é mais que uma cilada, sendo composta pela
conjunção hipotética de muitos elementos desarticulados. Teilhard amplifica
esta noção para seu próprio contentamento, de uma maneira que é puramente
gráfica, ao complementar os seus ramos – ou “escalas”, como ele gosta de lhes
chamar – e por construir um pináculo na direção que a humanidade é suposta
estar situada. Por uma descida de pensamento similar do abstrato ao concreto,
do metafórico ao supostamente real, ele aglutina, nos mesmos dislates pseudocientíficos,
as mas diversas realidades, como as leis mecânicas, forças vitais, elementos
psíquicos, e entidades espirituais. Vamos citar uma passagem característica:
O que explica a revolução biológica
causada pelo surgimento do Homem, é uma explosão de consciência; e o que, por
sua vez, explica esta explosão de consciência é simplesmente a passagem de um raio
privilegiado de “corpusculização”, por outras palavras, de um filo zoológico,
através da superfície, até aqui impermeável, separando a zona do Psiquismo direto
daquela do Psiquismo refletivo. Tendo chegado, seguindo este raio particular, a
um ponto crítico de disposição (ou, como dizemos aqui, de registo), a Vida
torna-se híper-centrada em si, ao ponto de se tornar capaz de previdência e invenção...
Então, a “corpusculização” (que é um processo
físico) teria como seu efeito que um “filo zoológico” (o que não é mais que uma
figura) deveria passar através da superfície (puramente hipotética) separando
as duas zonas psíquicas… Mas não devemos ser surpreendidos pela ausência de distinguos no pensamento de Teilhard, já
que, de acordo com a sua própria teoria, a mente não é mais do que uma metamorfose
da matéria!
Sem nos determos para discutir a estranha teologia
deste autor, para quem Deus próprio evolui com a matéria, e sem nos atrevermos
a definir o que ele pensa dos profetas e sábios da antiguidade e outros seres “subdesenvolvidos”
deste tipo, diremos o seguinte: se o homem, no que respeita tanto à sua
natureza física como à sua natureza espiritual, não fosse realmente nada mas
apenas uma fase na evolução, indo da ameba ao super-homem, como poderia ele saber
objetivamente onde se encontra hoje? Vamos supor que esta alegada evolução
forma uma curva, ou uma espiral. O homem que não é mais do que um fragmento – e
que não fique esquecido que um “fragmento” de um movimento não é mais do que
uma fase desse movimento – pode esse homem retirar-se do mesmo e dizer para si
próprio: eu sou o fragmento de uma espiral que se desenvolve desta e daquela
maneira? Agora é certo – e ademais Teilhard de Chardin reconhece ele mesmo –
que o homem é capaz de julgar o seu próprio estado. Na verdade, ele sabe a seu
própria categoria entre as outras criaturas terrestres, e ele é até o único que
se conhece objetivamente a si e o mundo. Longe de ser uma mera fase numa
evolução indefinida, o homem representa essencialmente uma possibilidade central,
e uma que é portanto única, insubstituível, e definitiva. Se a espécie humana
tivesse de evoluir em direção a outra forma mais perfeita e mais “espiritual”,
o homem não seria já o “ponto de interseção” do Espírito Divino com o plano
terrestre; ele não seria nem capaz de salvação, nem capaz de superar
intelectualmente o fluxo do devir. Para expressar estes pensamentos de acordo
com a perspetiva dos Evangelhos: teria Deus tornando-se homem se a forma do
homem não fosse já virtualmente a de “deus na terra”, por outras palavras, qualitativa
e também definitivamente central no que concerne ao seu próprio nível cósmico?
Como um sintoma do nosso tempo, o teilhardismo é
comparável a uma daquelas fissuras que se devem à mesma solidificação da
carapaça mental, e que não abrem para cima, em direção aos céus de unidade real
e transcendente, mas para baixo em direção ao campo do psiquismo mais baixo.
Fatigado da sua própria visão descontínua do mundo, a mente materialista
empresta-se a arrastar-se em direção a uma falsa continuidade ou unidade, em direção
a uma intoxicação pseudo-espiritual, da qual esta fé falsificada e materializada
– ou este materialismo sublimado – que acabamos de descrever marca uma fase de
particular significância.
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