Abaixo, deixamos um pequeno excerto do livro "Alquimia", de Titus Burckhardt, onde o autor se debruça sobre as interpretações tradicionais da cosmovisão geocêntrica e heliocêntrica.
Ao contrário das falsidades espalhadas pelas frentes de subversão universal, o mundo antigo e, nomeadamente, o medieval conheceram tanto a concepção geocêntrica como a heliocêntrica, se bem que, como explica o autor, o âmbito deste conhecimento- diremos melhor, entendimento - não se limitava à rudeza da mera observação dos dados materiais, mas desenrolava-se num plano subtil e espiritual e, portanto, nunca contraditório.
O que era ambicionado era um conhecimento unitário do cosmos, faculdade ao alcance do ser humano que, participante tanto do mundo material e espiritual, fazia parte daquele, em ato ou em potência.
A arrogância da moderna teoria heliocêntrica em decretar o Cosmos como mera matéria inteligível apenas por mediação dos órgão sensoriais, negando a dimensão metafísica do mesmo, é um dos marcos mais horríficos da história da humanidade, cujas tenebrosas ramificações se ampliam dia a dia; ademais, como nota o autor, sob a guisa da razão, que o cientismo proclamou como o único método válido do conhecimento, o homem foi desde então conduzido ao niilismo desesperado por não ser mais do que mero átomo acidental e perdido num universo que é dito ser infinito - tal no fundo mostra que o cientismo moderno, por detrás dos pretensos métodos ditos científicos e imparciais, esconde um muito concreto plano diabólico, cujo objetivo é a inversão de todos os valores espirituais.
Este concepção de viragem na história da humanidade é uma das mais fulcrais para perceber o atual abismo em que ela vegeta e cuja negação completa, do ponto de vista metafísico, é fator essencial para qualquer restauração que se queira Tradicional.
------------------------------------------------------------------------------
O esquema do Universo com o Sol ao centro, em torno
do qual giram todos os astros móveis, Terra incluída, não é uma descoberta
renascentista. Com efeito, Copérnico mais não fez que voltar a uma ideia já
antes exposta na Antiguidade, ideia que as suas observações permitiram
consolidar. Visto enquanto símbolo, o esquema heliocêntrico do Universo é o
complemento indispensável do sistema geocêntrico. Isto porque a origem divina
do Universo – ou do Espírito através do qual Deus criou o mundo – tanto pode
conceber-se como o espaço infinito que tudo envolve e no qual tudo se contém,
quanto como o centro irradiante de toda as manifestações. Precisamente por a
origem divina se achar para além de toda a diferenciação, existe um complemento
de sinal inverso relativamente a cada uma das suas analogias. Contudo, o
esquema heliocêntrico foi usado pelo pensamento racionalista enquanto prova de
que o antigo sistema geocêntrico, com todo o peso da sua significação
espiritual, não passava de um erro grosseiro. Ora, tal facto dá origem a um
autêntico paradoxo, pois uma ideologia que pretende transformar a razão na
unidade de toda a realidade acaba por traçar um esquema astronómico do mundo em
que o homem surge cada vez mais como um simples grão de poeira entre muitos
outros grãos de poeira, como um simples acidente de um qualquer processo
cósmico. Em contrapartida, o conceito medieval, que não se baseava na razão
humana, antes assentava na revelação e na inspiração, vinha a situar os homens
no próprio centro do universo. Apesar disso, contudo, esta aparente contradição
é facilmente explicável: com efeito, acontece que a tese racionalista esquece
por completo que tudo quanto possa afirmar sobre o Universo continua a ser
fruto do conhecimento humano, além de que o homem, precisamente por poder
contemplar a sua existência material a partir de um ponto de observação mais
elevado, quase como se não achasse preso a esta Terra, acaba por se manifestar
como o próprio centro discernidor do mundo. Ora, precisamente por o homem ser o
depositário do espírito e poder, por isso mesmo, discernir fundamentalmente
tudo quanto existe, a ideologia fiel à tradição situa-o no centro do mundo
visível, tal como este se lhe torna patente, apreendido que é pelas perceções
sensoriais imediatas. Nesta mesma óptica, ou seja, na de uma cosmologia fiel à
tradição, o esquema heliocêntrico do universo, no qual o homem se distancia do
Sol, apenas pode ter um significado esotérico, aquele que Dante apresenta na
sua descrição “teocêntrica” do mundo dos anjos. Com efeito, encarado a partir
de Deus, o homem não se situa no centro, antes na orla exterior da própria
existência.
Se é certo que o esquema heliocêntrico do Universo
se revela correto do pondo de vista físico-matemático, isso só sucede porque
este encerra em si algo de “extra-humano”, pois, ao cingir-se exclusivamente ao
campo material e quantitativo, distancia-se assim do homem considerado enquanto
entidade composta de espírito, alma e corpo, atitude em função da qual acaba
por se erigir como contraponto à visão em que o homem surge sub especie aeternitatis.
Na verdade, nenhum esquema do universo pode ser
absolutamente correto, uma vez que a realidade em que a observação se vem a
centrar é relativa, dependente e infinitamente múltipla.
A crença no esquema heliocêntrico do Universo, a
par da sua aceitação incondicional, veio a criar um grande vazio espiritual,
pois, vendo-se despojado da sua dignidade cósmica, vendo-se degradado ao nível
de um insignificante grão de poeira perdido em meio à infinidade de grãos de
poeira que giram à volta do Sol, o homem foi incapaz de forjar uma visão
passível de libertar o seu espírito. O pensamento cristão, baseado no princípio
de que Deus se fez homem, não estava preparado para tal: assim, ao ver o homem
transformado numa mera insignificância vogando no espaço e, ao mesmo tempo, considerá-lo
como o centro discernidor e simbólico do Universo, sem cair por isso nem no
desespero, nem na vaidade, é algo que excede as faculdades espirituais da
grande maioria.
Com a incorporação do Sol numa multitude de
milhares de milhões de outros sóis, porventura igualmente rodeados por planetas
e situados a milhares ou a milhões de anos-luz, todos os esquemas do Universo
de despedaçaram de pronto, isso no sentido mais literal da expressão. Com
efeito, deixara de ser possível imaginar qual a disposição do mundo, de modo
que o homem perdeu a sensação de ser parte integrante de um todo logicamente
ordenado. Nos países do Ocidente, pelo menos, foi este o efeito que, de um modo
geral, o moderno conceito astronómico do mundo acabou realmente por causar.
Quanto ao pensamento budista, que sempre considerou o mundo como terreno
movediço, talvez possa responder de outro modo a esta mesma apreciação
científica.
Se o conhecimento científico andasse a par de uma
interpretação espiritual das aparências, talvez fosse então possível ver, na
progressiva dissolução de todos os sistemas antes considerados indiscutíveis, a
prova de que toda e qualquer visão do mundo mais não é do que uma alegoria e
que toda a alegoria é relativa. Sem dúvida que o Sol, para este mundo que
apreendemos na base da simples visão, constitui a essência da luz e a
representação natural da origem divina pois é ele que ilumina todas as coisas e
é em torno de si que tudo gira. Mas, ao mesmo tempo, acontece que não passa de
um astro, pelo que, enquanto tal, não é único, mas sim apenas um entre muitos
outros da mesma espécie.
Não é este o momento para demonstrar de que modo é
que cada novo esquema acaba por ser promovido não tanto pela observação
científica quanto pela óbvia unilateralidade do esquema anterior. E isto pode
igualmente aplicar-se ao mais recente conceito do espaço. Assim, enquanto a
Cosmologia medieval concebia a totalidade do espaço como uma imensa esfera
rodeada espiritualmente pelo céu exterior, a filosofia racionalista, por seu
lado, afirmava que o espaço era infinito. Contudo, dado que, muito embora seja
sem dúvida imenso se considerado enquanto extensão relativa, a verdade é que
não pode ser infinito em sentido absoluto, acontece que um novo passo da
Ciência acaba por nos levar ao conceito já quase inimaginável de um espaço que
se retorce e revolve sobre si mesmo.
A absoluta homogeneidade do espaço e do tempo é
rebatida pelas Matemáticas modernas, tendo vindo a ser substituída por uma
relação permanente entre espaço e tempo. Contudo, se o espaço é aquilo que
envolve tudo quanto se apreende simultaneamente, sendo o tempo aquilo que a
sucessão das perceções vem a representar, daí resulta que as estrelas fixas já
não estão “distantes” de nós muitíssimos anos-luz, antes se encontram mesmo
ali, no ponto preciso em que o espaço, dada a simultaneidade de que comunga,
tem o seu limite. Com semelhante paradoxo, apenas pretendemos fazer notar que,
em última análise, todo o esquema científico do Universo acaba inevitavelmente
por se contradizer a si mesmo, ao passo que o significado espiritual que, de
uma forma ou de outra, se vem a manifestar nas coisas visíveis, revelando-se de
modo tanto mais convincente quanto mais próximo estiver das origens e quanto
mais o esquema do Universo se achar à medida do homem, jamais conhece variação
alguma. Porém, note-se que, ao falar de significado, não estamos a referir a
nada de ideológico. Muito simplesmente, utilizamos a expressão “significado”
por pura necessidade, buscando assim designar, à semelhança dos escritos fiéis
à tradição, o conteúdo imutável das coisas, conteúdo que só por meio do
espírito é possível apreciar.
Com as observações precedentes sobre o esquema astronómico
do Universo, talvez tenhamos conseguido fazer notar que existem duas formas
diametralmente opostas entre si de contemplar o mundo ou a natureza no sentido
mais amplo do termo. Assim, enquanto uma delas, impelida pela curiosidade
científica, se afadiga em estudar a inesgotável multiplicidade dos fenómenos e,
à medida que se vai acumulando experiências, tende a tornar-se heterogénea e,
finalmente, a decompor-se, a outra orienta-se no sentido do centro espiritual,
centro esse que é ao mesmo tempo centro do homem e centro das coisas, e isto
porque assenta no caráter simbólico das aparências a fim de intuir e contemplar
as realidades imutáveis que o espírito contém em si. Esta última visão tende a
simplificar, não aquilo que apreende em termos de um escalonamento múltiplo e
progressivo, antes aquilo que vem a reter de essencial. Com efeito, a visão
mais completa que o homem pode alcançar é sempre necessariamente simples, isto
no sentido de que a sua riqueza interior não permite signos distintivos.
No comments:
Post a Comment