Thursday, October 26, 2017

A Cidade Antiga - Noções Sobre a Alma e a Morte




Em baixo deixamos a tradução do primeiro capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘Noções sobre a Alma e a Morte’.


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Até aos últimos tempos na história da Grécia e de Roma encontramos o povo a agarrar-se a pensamentos e usos que certamente datam de um passado muito distante e que nos permitem descobrir noções que o homem tinha de início acerca da sua própria natureza, da sua alma e do mistério da morte.

Viajando tanto atrás quanto possamos na história da raça indo-europeia, da qual os gregos e os italianos são ramos, não encontramos que esta raça alguma vez tenha pensado que depois desta curta vida tudo se encontrasse terminado para o homem. As gerações mais antigas, muito antes de aparecerem filósofos, acreditavam numa segunda existência depois da presente. Eles olhavam a morte não como uma dissolução do nosso ser, mas simplesmente como uma mudança de vida.

Mas em que local, e de que modo, existia esta segunda existência? Acreditavam eles que o espírito imortal, uma vez escapado de um corpo, iria animar outro? Não; a doutrina da metempsicose [transmigração das almas] nunca foi capaz de criar raízes nas mentes dos greco-italianos; nem era a crença mais antiga dos Arianos do Leste; já os hinos dos Vedas ensinam outra doutrina. Acreditavam eles que o espírito ascendia em direção ao céu, na direção das luzes? Não, de todo; os pensamentos de que as almas libertas entram numa casa celestial é relativamente recente no Ocidente; encontramo-la expressa pela primeira vez pelo poeta Focílides. A morada celestial nunca foi considerada como algo mais que a recompensa de uns poucos grandes homens e dos benfeitores da humanidade. De acordo com as mais antigas crenças dos italianos e dos gregos, a alma não ia para um mundo estranho para passar à sua segunda existência; mantinha-se perto dos homens e continuava a viver no subsolo.

Eles até acreditavam por muito tempo que, nesta segunda existência, a alma mantinha-se associada ao corpo; nascidos juntos, eles não eram separados pela morte e juntos eram enterrados na sepultura.

Antiga que seja esta crença, vestígios autênticos delas mantém-se entre nós. Estes vestígios são os ritos da sepultura, que em muito sobreviveram esta crença primitiva, mas que certamente começou com ela e que nos permite entendê-la.

Os ritos de sepultura mostram claramente que quando um corpo era enterrado, esses povos antigos acreditavam que enterravam algo que estava vivo. Virgílio, que sempre descreve cerimónias religiosas com tanto cuidado e precisão, conclui a descrição do funeral de Polidoro com estas palavras: “Fechamos a alma no sepulcro.” A mesma expressão é encontrada em Ovídio e em Plínio, o Jovem; tal não correspondia às ideias que estes escritores tinham da alma, mas que tinha sido perpetuada desde tempos imemoriais na linguagem, atestando uma antiguidade e uma crença comum.

Era costume, no final da cerimónia funerária, chamar a alma do falecido três vezes pelo mesmo nome que tinha mantido. Desejavam que ele pudesse viver ditosamente debaixo do solo. Três vezes diziam-lhe “Que passes bem”. Acrescentavam, “Que a terra te seja leve.” Portanto eles acreditavam firmemente que a pessoa continuaria a viver debaixo do solo e que preservaria um senso de contentamentos e de sofrimento. Escreviam no túmulo que o homem aí repousava – uma expressão que sobreviveu esta crença e que atravessou tantos séculos até ao nosso tempo. Ainda a empregamos, apesar de certamente hoje ninguém pensar que um ser imortal jaz na tumba. Mas naqueles dias antigos eles acreditavam em tal tão firmemente que um homem ali habitava que eles nunca deixavam de enterrar junto dele os objetos que eles acreditavam que ele precisava – roupas, utensílios e armas. Eles derramavam vinho sobre a tumba para saciar a sua sede e colocavam comida para satisfazer a sua fome. Sacrificavam cavalos e escravos com a ideia de que estes seres, enterrados com o morto, servi-lo-iam no túmulo, como o tinham feito durante a sua vida. Depois da tomada de Troia, os gregos retornam ao seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles, que está morto, também exige uma escrava, e entregam-lhe Polixena.

Um verso de Píndaro guardou-nos um curioso vestígio dos pensamentos daquelas antigas gerações. Frixos tinha sido compelido a deixar a Grécia e tinha fugido até Cólquida. Ele tinha falecido nesse país; mas, morto como estava, desejava voltar à Grécia. Ele então apareceu a Pélias e comandou-o a ir à Cólquida e trazer de volta a sua alma. Sem dúvida, esta alma sentia nostalgia do solo do seu país nativo e do túmulo da sua família; mas estando ligado aos seus restos corporais, não poderia deixar a Cólquida sem eles.

Desta crença primitiva veio a necessidade do enterro. Em ordem para que a alma possa estar confinada ao seu refúgio subterrâneo, o apropriado para a sua segunda vida, era necessário que o corpo ao qual se mantivesse ligada fosse coberto com terra. A alma que não tivesse túmulo não tinha morada. Era um espírito errante. Em vão aspirava ao repouso que naturalmente desejava depois da agitação e do trabalho desta vida; deve deambular para todo o sempre sob a forma larval, a de um fantasma, sem nunca parar, sem nunca receber as oferendas e a comida que necessitava. Infelizmente, em breve tornar-se-ia um espírito malévolo; atormentava os vivos; trazia doenças sobre eles, arrasava as suas colheitas e assustava-os nas suas sombrias aparições, para avisá-los para dar sepultura ao seu corpo e a si própria. Daqui vieram as crenças em fantasmas. Toda a antiguidade foi convencida de que sem enterro a alma se tornava miserável, e de que pelo enterro se tornaria eternamente feliz. Não era para demonstrar a sua angústia que eles praticavam a cerimónia funerária, era para o descanso e felicidade do morto.

Devemos salientar, no entanto, que o colocar o corpo sob o solo não era suficiente. Certos ritos tradicionais tinham igualmente de ser seguidos e certas fórmulas estabelecidas serem pronunciadas. Encontramos em Plauto uma descrição de um fantasma; era uma alma que era compelida a divagar porque o seu corpo tinha sido enterrado sem prestar atenção aos ritos próprios. Suetónio relata que quando o corpo de Calígula foi colocado sob a terra sem a própria observação das cerimónias funerárias, a sua alma não estava em paz e continuou a aparecer aos vivos até que foi decidido desenterrar o corpo e dar-lhe um enterro de acordo com as regras. Estes dois exemplos mostram claramente quais os efeitos atribuídos aos ritos e às fórmulas da cerimónia funerária. Já que sem eles as almas continuam a vaguear e a aparecer aos vivos, deve ser por causa deles que as almas se fixam e se fecham nas suas tombas; e como existiam fórmulas que tinham esta virtude, outras existiam que tinham a virtude contrária – aquela de evocar almas e fazê-las sair por algum tempo do sepulcro.

Podemos observar em escritores antigos como o homem estava atormentado pelo medo de que depois da sua morte os ritos não lhe fossem observados. Era uma fonte de inquietude constante. Os homens temiam a morte menos que a privação de um enterro, já que o descanso e a felicidade eternas estavam em jogo. Não nos devemos surpreender em demasia ao ver que os atenienses sentenciavam à morte os generais que, depois de uma vitória naval, negligenciavam enterrar os mortos. Estes generais, discípulos de filósofos, distinguiam claramente entre a alma e o corpo, e como não acreditavam que o destino de um estava ligado ao destino do outro, parecia-lhes de pouca consequência se um corpo se decompunha na terra ou na água. Portanto eles não enfrentavam a tempestade pela formalidade vã de recolher e de enterrar os seus mortos. Mas a multidão que, mesmo em Atenas, ainda se agarrava às antigas doutrinas, acusava estes generais de impiedade e condenava-os à morte. Pela sua vitória tinham salvado Atenas; mas pela sua impiedade tinham condenado milhares de almas. Os familiares dos mortos, pensando no grande sofrimento que estas almas tinham de aguentar, apareciam no tribunal vestidos de luto e pediam por vingança. Nas cidades antigas a lei condenava aqueles culpados de grandes crimes com uma punição terrível – a privação de enterro. Deste modo eles puniam a própria alma e infligiam-lhe uma punição quase eterna.

Devemos observar que existia entre os antigos outra opinião em relação ao lugar do morto. Eles imaginavam uma região, também subterrânea, mas infinitamente mais vasta que o túmulo, onde todas as almas, longe dos seus corpos, viviam juntas e onde prémios e punições eram distribuídos de acordo com as vidas que os homens tinham vivido neste mundo. Mas os ritos de enterro, tais como os descrevemos, discordavam manifestamente desta crença – uma prova certa de que, à época em que estes ritos foram estabelecidos, os homens ainda não acreditavam no Tártaro ou nos Campos Elísios. A mais primitiva opinião destas antigas gerações era que o homem vivia na tomba, que a alma não deixava o corpo e que se mantinha fixa a essa porção de terra onde os ossos se encontravam enterrados. Além disso, o homem não tinha contas a prestar da sua vida passada. Uma vez colocado na tomba, não tinha nem prémios nem castigos que esperar. Esta é seguramente uma opinião muito crua, mas é o início da noção de uma vida futura.

O ser que habitava debaixo do solo não era suficientemente livre das fragilidades humanas para não ter necessidade de comida; e, portanto, em certos dias do ano, uma refeição era levada a cada túmulo. Ovídio e Virgílio deram-nos uma descrição desta cerimónia. A observância continuou sem modificação até aos seus dias, apesar das crenças religiosas já terem passado por grandes alterações. De acordo com estes escritores, o sepulcro era rodeado com grandes ramos de ervas e flores, e bolos, frutas e flores eram colocadas sobre ele; leite, vinho e por vezes o sangue de uma vítima eram acrescentados.

Muito nos enganamos se pensássemos que estes repastos funerários não mais eram que uma espécie de celebração. A comida que a família trazia era realmente para o falecido – exclusivamente para ele. E isso concluímos pelo seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo; um buraco era cavado para que o alimento sólido pudesse chegar ao defunto; que, se eles tivessem sacrificado uma vítima, toda a sua carne era queimada, para que os vivos dela não participassem; que eles pronunciavam certas fórmulas consagradas para convidar os mortos a comer e a beber; que se a família inteira estivesse presente à refeição, ninguém tocava na comida; que, finalmente, quando se fossem embora, tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e uns poucos de bolos em vasos; e que era considerada grossa impiedade para qualquer pessoa viva tocar nesta pequena provisão destinada às necessidades do morto.

Estes usos eram atestados do modo mais formal: “Derramo sobre esta terra da tomba,” diz Ifigénia em Eurípides, “leite, mel e vinho, pois é com estes que regozijamos os mortos.” Entre os gregos encontrava-se em frente de todos os túmulos um local destinado à imolação da vítima e para o assar das suas carnes. A tomba romana também continha a sua culina, uma espécie de cozinha, de um tipo particular, e inteiramente para o uso dos mortos. Plutarco relata que, depois da batalha de Plateias, aos assassinados, tendo sido enterrados sob o campo de batalha, os Plateus ofereceriam um repasto funerário todos os anos. Consequentemente, em cada aniversário, eles iam em grande procissão, conduzidos pelos seus primeiros magistrados à colina sob a qual jaziam os mortos. Eles ofereciam aos idos leite, vinho, óleo e perfumes, e sacrificavam uma vítima. Quando as provisões eram colocadas sobre a tomba, os Plateus pronunciavam a fórmula pela qual chamavam os mortos a vir e participar deste repasto. Esta cerimónia era ainda realizada no tempo de Plutarco, que foi permitido testemunhar o sexto centenário dessa comemoração. Um pouco mais tarde, Luciano, ridicularizando estas opiniões e usos, mostra o quão profundamente enraizadas se encontravam na mente comum. “Os mortos”, diz ele, “são alimentadas pelas provisões que colocamos nos seus túmulos, e bebem o vinho que ali derramamos; pois que um morto a quem nada é oferecido é condenado a fome perpétua.”


Estas são antiquíssimas formas de crença, e parecem bastante sem fundamento e ridículas; e, no entanto, elas exerceram império sobre o homem durante um grande número de gerações. Elas governaram as mentes humanas; devemos também observar que elas até governaram sociedades e que a maior parte das instituições domésticas e sociais dos antigos foi derivada desta fonte.

3 comments:

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  2. Quando visitei o cemitério Pére Láchaise, onde estão enterrados, entre outros, algumas ilustres personalidades, visitei o túmulo de Jim Morrison e não vi leite e bolos mas lá estavam flores e uma garrafa de Jack Daniels para alimentar a alma do defunto.
    JCordeiro

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  3. JCordeiro, com certeza foram lá colocadas por uma conscenciosa mente indo-europeia! E ainda dizem que as tradições não mais são respeitadas :)

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