Abaixo deixo a tradução do último capítulo do livro "The Doctrine of Awakening", de Julius Evola, traduzido para inglês por H. E. Musson.
Depois de na primeira parte do livro fazer uma resenha do caráter tradicional e ariano do Budismo e de na segunda parte expor as diferentes fases da prática e realização budística, Evola, reitera aqui o caráter guerreiro e heróico da verdadeira ascese indo-europeia, da qual o Budismo é ao mesmo tempo herdeiro e regenerador.
Destaco dois pontos que me parecem fundamentais para o homem ocidental: o budismo não se confunde com uma mero misticismo ou um quietismo perante a vida, mas sim uma aplicação de tudo o que é superior e Olímpico num sentido vertical de ascese superior; as realizações da verdadeira ascese não se esgotam no campo espiritual, já que segundo a Tradição o mundo material é reflexo do mundo espiritual, e vice-versa, pelo que realizações de caráter espiritual terão efeitos tangíveis na Terra, sendo tal cada vez mais importante dados os "tempos últimos" que se vivem.
Como diziam os antigos, dois caminhos cabem ao verdadeiro homem: o guerreiro ou o ascético.
Passa a palavra ao Mestre.
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Neste livro não nos aprontamos a fazer propaganda
budística mas, antes, como dissemos, a indicar os elementos fundamentais de um
sistema completo de ascese: estes elementos podem também ser encontrados
noutras tradições, mas encontram-se com uma claridade especial no ensinamento
Budista, que se presta admiravelmente para o nosso propósito pelas várias
razões que discutimos no início.
Falta agora sugerir o significado que uma ascese
deste tipo pode ter no dia presente.
É desnecessário frisar o facto de o mundo moderno,
mais completamente que talvez qualquer outra civilização, se situa no polo
oposto de uma visão de vida ascética. Não falamos aqui do problema religioso
que, como vimos, não tem relação direta com a alta ascese. Falamos de
orientações fundamentais do espírito.
Seria difícil negar que o “ativismo”, a exaltação e
a prática da ação entendida como força, ímpeto, devir, luta, transformação,
investigação perene, ou movimento ininterrupto, é a palavra-chave do mundo
moderno. O mundo do “ser” aproxima-se do fim, e este declínio tem sido há muito
celebrado com alegria. Não só hoje temos o triunfo do ativismo, mas também uma filosofia
sui generis ao seu serviço; uma
filosofia cujo criticismo sistemático e cujo aparato especulativo serve para justificá-lo
de todas as maneiras, ao mesmo tempo que derrama desprezo e amontoa descrédito
em todos os outros pontos de vista. Interesse no conhecimento puro tem-se
tornado cada vez mais substituído pelo interesse em “viver” e em “fazer” ou, em
qualquer caso, por interesse em áreas do conhecimento que possam ser empregues
em termos de ação ou de realização prática e temporal. Hoje a natureza e as
potencialidades do conhecimento puro, isto é, o conhecimento cujo peculiar
objeto – como na ideia tradicional de todos os períodos - é a realidade supra-individual
e supra-histórica, é praticamente desconhecido. Os nossos contemporâneos
crescem cada vez mais acostumados a desprezar o aspeto do “ser” das coisas e a
concentrarem-se, em vez, no aspeto do “devir”, “vida”, “movimento”,
“desenvolvimento”, ou “história”.
“Historicismo” e o “culto do devir” marcam o ritmo
do ativismo, até no plano cultural. Pragmatismo, voluntarismo, irracionalismo,
variedades da religião da “vida” e “atualismo”, relativismo, evolucionismo, progressismo,
Faustismo, são linhas de especulação que, apesar dos seus diferentes disfarces,
germinam do mesmo motivo. E isto, então, é meramente a tradução em termos de
autoconsciência e de justificação intelectual do motivo central da vida abruta
destes tempos, com o seu tumulto, a sua agitação, o ser fervor pela velocidade,
a sua mecanização devotada a encurtar todos os intervalos do espaço e do tempo,
a sua congestão e ritmo esbaforido que é, particularmente no Novo Mundo, levado
aos seus limites. Aí o tema ativista realmente atinge alturas paroxísticas e
pandémicas e absorve completamente o todo da vida, cujos horizontes, de mais,
estão portanto restringidos à escuridão e à melancolia que são naturais a
realizações totalmente temporais e contingentes.
É também um facto ameaçador que forças de uma
natureza coletivista e portanto sub-pessoal ganham mais e mais poder sobre
seres que não possuem verdadeiro suporte tradicional real e que são exauridos
por uma profunda inquietação. O mundo ativista é também um mundo essencialmente
inexpressivo e plebeu, guiado pelo demónio do coletivismo; ele não é só o
cenário do triunfo do que tem sido designado por “ideal animal”, mas é também
um mundo que é essencialmente “telúrico”, movido por forças que estão ligadas
com os elementos da “massa” e da “quantidade”, cuja ação, força, luta e mesmo
heroísmo e sacrifício se tornam cada vez mais irracionais, desprovidos de luz,
“elementares” e totalmente terrestres.
Aquilo que a antiga sabedoria Indo-Ariana tinha
denotado pelo símbolo da existência samsárica, e cujas correspondentes
tradições Ocidentais tinham denominado “Idade de Ferro”, pode hoje ser dito que
está no auge da sua carreira; e não há falta, tanto no Budismo como em
tradições similares, de textos em que tais características dos tempos por vir
foram previstas com assombrosa precisão. Repetimos, no entanto, que a principal
característica dos nossos tempos não é que a vida tende a exaurir-se ela
própria quase exclusivamente no plano samsárico, mas que a nossa civilização
estimula e exalta este tipo de vida, e considera-o, não tanto como um estado de
facto, mas antes como algo de valor, como algo que deve ser, como algo que é
correto. Deve ser único em toda a história que o samsara deva tornar-se um
objeto de uma espécie de mística ou de religião. As novas filosofias da vida,
do devir, do elan vital, que
florescem nas margens do ativismo prático, têm apenas esta significação e até
vêm a exaltar na existência humana tudo o que é espontaneidade inconsciente,
vitalidade pura, substrato biológico pré-pessoal e que é portanto
essencialmente pré-humano e sub-humano.
Pensar que podemos reagir efetivamente contra tal
estado de coisas, tomado como um todo, seria frívolo e significaria (a não ser
que estejamos simplesmente a tratar de reações intelectuais) ignorar as causas
remotas que levaram gradualmente a tal, as quais não podem ser removidas num
dia. Mas apesar do sucesso numa larga escala, tomando em conta a orientação
geral do mundo moderno, ser no presente muito remota, pode no entanto ser
alcançada localmente num círculo de uma elite, por determinado número de
indivíduos qualificados. Os únicos pontos de referência, aqui, são valores
ascéticos, na significação mais completa, pura e restrita do termo. A afirmação
de uma visão ascética de vida é hoje particularmente necessária em vista da
força inigualável do elemento “telúrico” e samsárico no mundo moderno.
Os preconceitos criados e encorajados por
específicas, anormais e não-arianas formas de ascese já por nós foram removidos.
Que ninguém declare, portanto, que a ascese significa renúncia, fuga do mundo,
inação, quietismo ou mortificação. A afirmação de um plano de pura
transcendência para balançar um mundo que é mais e mais cativo da imanência, é
o primeiro ponto e a primeira tarefa. Mas outro ponto, não menos importante,
relaciona-se de perto com a mesma ação que é tão querida aos nossos
contemporâneos. De fato, um poderia manter que os que desprezam todo o
ascetismo nada sabem o que a verdadeira ação realmente é, e o que eles exaltam
é meramente uma inferior, castrada e passiva forma de ação. O tipo de ativismo
que consiste em febre, impulsividade, identificação, vertigem sem centro,
paixão ou agitação, longe de testemunhar poder, apenas demonstra impotência. O
nosso próprio mundo clássico sabia isto bem: o tema central da oração
ciceroniana Pro Marcello é apenas
este: não existe poder mais elevado que o da mestria sobre o próprio. Apenas
aqueles que possuam esta mestria podem saber o que é a verdadeira ação, o que
os mostra ao mundo exterior, não como aqueles que são atuados, mas como aqueles
que verdadeiramente agem. Relembramos o luminoso dito Búdico: aquele que vai,
mantém-se de pé; o que se mantém de pé, vai. Por esta mesma razão, nas
tradições emanadas da mesma raiz, todo o movimento, atividade, devir ou mudança
eram referidos ao princípio passivo e feminino, enquanto ao princípio positivo,
luminoso e masculino era atribuído as qualidades particulares da imobilidade,
imutabilidade e estabilidade. Podemos, então, afirmar definitivamente a existência
de uma ascese que de modo algum significa quietismo mas que é, antes, o pré-requisito
de um mais elevado e aristocrático ideal de atividade e virilidade.
Este ideal – seja notado – não é de modo algum um
monopólio do Oriente. A ideia básica que aqui estamos a tratar é
tradicionalmente ariana, pelo qual podemos também encontrá-la entre nós. A
mesma ideia foi expressa no plano metafísico por Plotino quando ele falou do
devir que é só “a fuga de seres que são e que não são”, ou por Aristóteles
quando ele discutiu o “Motor Imóvel”, ou, no plano ético, pelos estóicos
romanos com a sua ênfase no elemento sideral e imutável da mente como base de
todo o esforço e dignidade humanos. Aquele que é a causa e mestre efetivo do
movimento, não se movimenta. Ele inspira movimento e direciona a ação, mas ele
próprio não atua, no sentido em que ele não é transportado, ele não é envolto
em ação, ele não é ação, mas é, pelo contrário, uma impassível, completamente
calma e imperativa superioridade, da qual a ação provém e da qual depende. Como
oposto a esta ideia da ação verdadeira e dominada, que só é pensável, no
entanto, como base na purificação do elemento samsárico, aquele que age
enquanto se identifica com a sua ação, impulsivamente, instado pela paixão,
pelo desejo, pelo irracional, por necessidade inquieta ou por interesse vulgar,
tal não age verdadeiramente, mas é atuado. Quanto paradoxal possa parecer, a
sua ação é passiva – ele encontra-se sob o signo, não da virilidade, mas da
feminidade. E sob o signo da feminidade, todo o “telúrico” e ativista mundo
moderno também se encontra. É apenas uma mais baixa, antiaristocrática forma de
ação que aqui predomina. De outro modo, na verdade ele trai aquele meio-desejo
de ensurdecer e distrair, aquela agitação e clamor que revelam pavor ao
silêncio, a isolação interna, o ser absoluto de natureza superior, ou torna-se
uma arma empregue na revolução do homem contra o interno que de facto marca o
limite da “ignorância” samsárica e a intoxicação dos seres caídos.
Tudo isto é geralmente verdadeiro no que toca ao
ascetismo como um todo. Mais particularmente, é até possível demonstrar
historicamente que as antigas formas de ascese Ariano-Oriental são também
capazes desta aplicação. Não podemos esquecer que, se o Oriente, tanto indo-europeu
como asiático, não deu até agora ao homem moderno a impressão, por certos aspetos,
de ser uma civilização ativamente prática, isto não se deve a uma falta de
força, mas ao fato de ter absorvido as suas energias principais na direção
vertical que está para além do devir e da história; poucos dos bem-nascidos nestas
civilizações tiveram, ou têm ainda agora, muito interesse noutras formas de
realização. Mas onde estas realizações, através de circunstâncias externas ou
através do desenvolvimento de vocações especiais, adquiriram um certo poder de
atração sobre o espírito, o Oriente mostrou, no mesmo plano da ação, o que a energia
e a vontade podem atingir quando são moldadas essencialmente pela visão
ascético de vida. Qualquer que objete e apontar, por exemplo, o mais recente
estado político da Índia, esquece que este país, aparte dos seus épicos
originais, teve o seu próprio ciclo imperial sob Chandragupta e sob Asoka, um
soberano que foi profundamente budista. Além disto, não conhecemos nenhum texto
ocidental no qual o heroísmo e a ação guerreira tenham recebido uma
justificação transcendental tão precisa e uma transfiguração tão elevada como
no Bhagavad-Gita; enquanto num outro nível é bem
conhecido que de todas as tropas a Inglaterra juntou no seu império, aqueles
providas pela Índia eram as melhor qualificadas, compostas como eram, não por
“soldados”, mas por guerreiros por raça e vocação. E foi da estirpe guerreira,
como vimos, que procedeu o Príncipe Siddhartha.
Mas
um melhor exemplo é-nos fornecido pelo Japão. Tem sido afirmado que a guerra
Russo-Japonesa, para grande surpresa da maior parte do mundo europeu, mostrou-nos
como a suposta “emasculada imobilidade oriental”, podia propositadamente e
heroicamente lutar, em terra e no mar, a chamada viril mobilidade ocidental. O heroísmo
dos japoneses, educados por um milénio e meio pela doutrina budista,
mostrou-nos sem margem para dúvidas que o Budismo não é o opiato que todos
previamente imaginavam. Aquele que leve os interesses do Ocidente no coração
devia até esperar que o futuro não crie uma mudança de mente nos povos
orientais onde eles são levados a aplicar contra o Ocidente o seu enorme
potencial espiritual; que o poder que foi criado por uma visão ascética de vida
milenar deva ser direcionado ao plano temporal no qual a maior parte da Europa,
tendo-se desligado das suas melhores tradições, decidiu concentrar-se.
Não
foi inteiramente sem intenção que, no final deste livro, tenhamos falado do
Budismo Zen. Esta particular forma esotérica da doutrina Budista foi a mais
congenial à nobreza japonesa guerreira e o Zen foi até designada da “religião
do samurai”. De acordo com o ponto de vista japonês, se um homem é um homem, e
não um animal, ele só pode ser um samurai: corajoso, ereto, confiável, viril, fiel
e cheio de dignidade controlada e pronto para qualquer sacrifício ativo. Mas os
preceitos de virilidade, lealdade, coragem, controlo da mente, instintos, ação
e desdém por uma vida dócil e luxo vazio – todos estes são elementos do
Bushido, as éticas da nobreza guerreira Samurai, encontrados na ascese Zen, que
derivam da Doutrina Budista do Acordar a sua confirmação, integração e também a
sua base transcendental. Era assim que o nobre japonês era capaz de uma muito
especial e incondicionada forma de heroísmo: não “trágica” mas “Olímpica”, o
heroísmo daquele que pode dar a sua vida completa sem lamentações, com uma
visão clara do fim à vista e com um desprezo total pela sua própria pessoa,
porque ele não é vida e não é pessoa, mas já participa do supra-individual e supra-temporal.
Estes
são só exemplos; e não desejamos dar a ideia de que estamos a fazer uma defesa
do Oriente e do Extremo-Oriente. Deixem-nos repetir: estamos aqui a lidar com
visões gerais de vida, uma distinção entre Oeste e Este não entre em discussão
já que a oposição é uma de natureza supra-nacional e supra-continental. A nossa
própria Idade Média também conhecia um heroísmo sagrado, e a sua história
também mostra, em golpes majestosos, como um ciclo heroico – onde a
correspondente vocação esteja presente – pode desenvolver-se sob a influência
de uma visão ascética de vida, mesmo que esta visão apresente desvios, falhas e
limitações de importância consideráveis como acontece no caso do Cristianismo.
Seja como indiferença para além da ação, ou como indiferença na ação e pela
ação, existe aí uma tradição comum. Propositadamente fizemos uso considerável do
termo “Olímpico” para fazer relembrar aqueles que podem esquecer. Do antigo
mundo Olímpico-Mediterrânico, onde a oposição entre a região do ser e da região
do devir, entre o ciclo da geração e o supra-mundo corresponde exatamente à
oposição Indo-Ariana entre samsara e nirvana, nós derivamos a nossa mais
elevada herança, aquela que o mundo moderno esqueceu mas que ainda persistia em
alguma medida entre os elementos germânicos e romanos do melhor da Idade Média.
A visão de vida Olímpica, à qual todo o verdadeiro valor ascético está
intimamente ligado, é o mais elevado, mais original e o mais ariano do
Ocidente. Carrega o símbolo de tudo o que, num sentido superior, pode ser
chamado de clássico e de aristocrático.
Um
retorno aos valores ascéticos pode, então, ser concebido em duas formas e em
dois graus. Uma formação de vida recém-orientada em direção ao elemento
extra-samsárico e sideral pode, no primeiro plano, ensinar o que ação e mestria
verdadeiras são a todos os que conhecem apenas as suas formas mais obscuras e
irracionais. No segundo lugar, a ascese como a afirmação de transcendência
pura, como distanciamento, não só em ação, mas também para além da ação, em direção
ao acordar, pode assegurar que o imóvel não é derrubado pelo mutável, que as
forças de centralidade, forças do mundo do ser estão dispostas contra as forças
do devir. Nem devíamos pensar deste segundo processo como o que tivéssemos que
fazer com convidados de pedra num banquete dos agitados e fanáticos. Para
inspirar e estabelecer, mesmo em seres fragmentados e desconhecidos, forças
extra-samsáricas, pode uma ação cujos efeitos invisíveis, mesmo no plano da
realidade visível e histórica, ser considerada mais importante do que muitos
podem julgar. É um ensinamento budista que os Ariya são capazes de
trabalhar de uma distância, para o bem de muitos, tanto na esfera humana como
na “divina”, e que estas esferas seriam prejudicadas pelas diferenças entre os Ariya.
É doutrina budista que quando os Ariya, na sua consciência
desindividualizada, enchem o mundo com as suas contemplações irradiantes, podem
libertar forças que se espalham nele e que atuam invisivelmente sobre terras e
destinos distantes. Pensamos ser possível que caso o curso da história, apesar
das aparências, não se deteriorar ainda mais, tal se deva, menos aos esforços e
à ação direta de grupos de homens e líderes de homens, do que a influências
provenientes, através dos caminhos do espírito, de realizações secretas de
alguns anónimos e remotos ascetas, no Tibete ou no Monte Athos, entre os Zen,
ou nalgum claustro Trapista ou Cartuxo na Europa. Para um olho acordado, para
um olho capaz de ver com a visão de um que se situa Margem-Além, estas mesmas
realizações apareceriam como as únicas luzes firmes na escuridão, como os
únicos picos emergentes, calmos e soberanos, acima dos mares de nevoeiro abaixo
nos vales. Toda a verdadeira realização ascética inevitavelmente transforma-se
num suporte – invisível, mas para tudo isso não menos real e eficaz – para
aqueles, que, no plano visível, resistem e lutam contra as forças de uma idade
obscura.
Por último, diremos algumas palavras acerca de uma
classe especial de leitor que se interessa por “espiritualismo”. Já advertimos,
no nosso Maschera e volto dello spiritualismo
contemporaneo, tais
leitores contra os erros e as confusões que se criaram por muitas tendências
modernas através de aspirações confusas ao sobrenatural e ao suprassensível. Caso
alguém erroneamente nutra tais aspirações, ele deve tomar cuidadosamente em
conta tais erros e confusões e, acima de tudo, não se enganar ao pensar que a verdadeira
realização do que se encontra para lá da condição humana é possível sem uma
rigorosa preparação e consolidação “ascética”. Dadas as condições na qual o
ocidental agora se encontra e as quais temos frequentemente mencionado, tal
preparação é, hoje mais que nunca, indispensável. Devemos assim estar sem
ilusões sobre a verdadeira natureza do conhecimento ou da disciplina “oculta”, particularmente
quando estamos a lidar com o que os nossos contemporâneos põem à liça. Uma
doutrina, tal como a que temos discutido, dá uma ideia muito boa da
possibilidade de um caminho ariano e aristocrático para além da existência
samsárica. Este caminho não terá necessidade de ajudas “religiosas”, dogmas ou
moralidades triviais, e correspondente genuinamente à vontade pelo
incondicionado. Mas, ao mesmo tempo, esta doutrina mostra não menos claramente
as condições preliminares para a ascese e o desapego que são absolutamente
imperativos para qualquer empresa de natureza transcendente. Também mostra que
o caminho para o acordar - idêntico no seu espirito com toda a verdadeira “iniciação”
– é absolutamente irreconciliável com tudo o que está implicado pelo misticismo
confuso, cultos mediúnicos, o subconsciente, visionarismo, mania pelos fenómeno
e poderes ocultos e contaminações neo-psicoanalíticas. É bem sabido que
círculos interessados – sejam confessionistas ou “iluminados” no sentido
profano e “crítico” – dependem de tais desvios espirituais na tua tentativa de
acrescentar descrédito sobre os ideais e tipos de sabedoria que, de uma forma
ou de outra, foram sempre reconhecidos como o ponto culminante de toda civilização
normal e tradicional. Para alcançar tal, como indicámos, existe conteúdo
parecido no caminho anunciado por uma figura da dignidade e da grandeza do
Príncipe Siddhattha – o Buda – e que este caminho, mesmo se só em reflexões distantes
e variadas, é agora relacionado à fé de mais de quatrocentos milhões de
seguidores, tal perceção deve ser suficiente para prevenir qualquer tentativa
de causar erro e confusão de pensamento por tais indivíduos míopes e
maliciosos.
No
campo oposto, devemos dizer algo em particular em relação a duas correntes:
uma, seguida por aqueles que, apesar de se chamarem orientais, se aplicam a “adotar”
ideias das tradições antigas na sua própria maneira e a popularizá-las no Ocidente;
e a outra, que ambiciona a introduzir o conceito de uma nova “iniciação moderna”.
O
primeiro caso traz à lembrança a parábola hindu do homem que, quando rodeado
por água numa chuvada imensa, fez uma grande esforço para se libertar de um
poço lamacento. No que concerne às tradições orientais, ou antes, às formas
variadas orientais da una tradição, a situação com que temos de lidar é
diferente daquela que existe no Ocidente. Mesmo no caso de sabedoria
transcendental existem textos, na maior parte traduzidos e disponíveis para
todos, onde podemos encontrar, numa forma mais pura e completa, tudo o que tais
pessoas vulgarizariam e reduziriam, no melhor, a um emasculado reflexo do
original. Qualquer que possa deitar a mão aos textos Budistas ou ao Bhagavadgita,
ou aos textos de yoga ou da Vedanta, pode calmamente fechar as portas a esses editores
e comentadores e adaptadores modernos, deixando a si só a tarefa séria de
estudo e realização. Mas, a verdadeira razão para o sucesso de tais exposições
novas é encontrada onde elas são mais acomodatícias, menos rígidas, menos
severas, mais vagas e prontas a encontrarem-se com os preconceitos e as
fraquezas do mundo moderno. Que todos tenham a coragem de buscar no fundo de si
o que realmente procuram.
A
segunda corrente difere da primeira no que não faz tentativa de adaptar ou
espalhar um tipo de sabedoria que é nem antiga nem oriental. Ao contrário ela
mantém que tais formas de conhecimento são inadequadas para o homem de hoje que
requer de modo geral uma forma de “iniciação” moderna. Isto é baseado no
evolucionismo aplicado aos assuntos do espírito. Um desenvolvimento
evolucionário do mundo e da humanidade é assumido, e é como se até o espírito
se devesse conformar a esta lei e seguir o seu desenvolvimento. Não existe
traço de tal ideia nos ensinamentos de qualquer escola de sabedoria. O mundo é
o que é, samsara, diziam os indo-arianos; κύκλος της γενέσεως, um ciclo
eterno de geração, diziam os antigos gregos. E no samsara não existe “evolução”,
não existe início e não existe fim. Ao “ir” um não atinge o “fim do mundo”. A
direção em que poderemos encontrar acordar e libertação, a direção da iniciação,
é vertical e nada tem a ver com o curso da história.
Certamente,
a condição do homem moderno é muito diferente daquela do homem antigo – e no
curso deste estudo temos repetidamente enfatizado tal facto. Uma “queda” ou uma
“descida” teve lugar, o que não é de forma alguma um acontecimento num esquema
evolucionário, designado a produzir um “final feliz”, algo mais elevado do que
tenha existido antes. Se esta queda contém algum significado, é aquele que
demonstra o terrível poder da liberdade do espírito que pode planear e produzir
a sua própria negação. Portanto a única coisa a fazer é admitir que os
ensinamentos antigos não podem ser usados hoje sem a devida consideração e que
o homem moderno deve-se aplicar a uma ingrata tarefa de reintegração: ele deve
fazer-se regressar espiritualmente a um estado de mente que, sempre e em toda a
parte, foi o ponto de partida de uma via que é essencialmente única. Não há
espaço para “iniciação moderna” num sentido específico; por definição tudo o
que é moderno está em contradição com qualquer coisa que tenha a ver com
iniciação.
Se,
quando falamos de “iniciação moderna” desejamos chamar a isso as
características de uma “ciência espiritual”, de uma disciplina que é clara e
exata em relação ao mundo suprassensível e aos instrumentos de desenvolvimento
interno como a ciência moderna é em relação ao seu campo e instrumentos
próprios, então devemos mostrar onde neste respeito ela faz mais do que simplesmente
expor o problema.
É
para doutrinas tradicionais como aquela que expusemos no presente livro que o
leitor que é atraído para a verdadeira espiritualidade se deve voltar, para entender
o que “ciência espiritual” significa verdadeiramente: estas doutrinas irão
ensiná-lo a claridade do puro conhecimento, divorciado de todas as formas de “clarividência”
visionária, acompanhado a uma soberania espiritual e à vontade de quebrar não
só a amarra humana, mas a amarra formada por qualquer outro “mundo”. O homem
moderno não tem só que lutar contra o materialismo, mas tem também de defender-se
dos ardis e dos fascínios do falso supranaturalismo. A sua defesa será firme e
efetiva só se for capaz de voltar às origens, de assimilar as tradições
antigas, e então confiar na ascese para levar a cabo a tarefa de restabelecer a
sua condição interna. Pelo que é através disto que estas tradições revelarão a
ele o seu conteúdo real mais profundo e perene e mostrar-lhe, passo a passo, o
caminho. Em conclusão, gostaríamos de repetir a antiga fórmula augural romana: quod
bonum faustumque sit. Contaríamos como afortunada se esta nossa modesta
contribuição para o entendimento da espiritualidade pré-moderna servisse a
alguém mais que uma simples leitura. Só então repetimos a fórmula do Ariya: katam
karaniyam – “feito foi o que tinha de ser feito”.
* Uma das montanhas mais frequentadas por Buddha e o local onde muitos dos seus discursos ocorreram.