Em baixo
tradução do capítulo “O Centro Supremo Oculto Durante o Kali-Yuga”, do Livro “O
Rei do Mundo”, de René Guénon.
O autor,
nesta obra, debruça-se sobre o mito da existência de um ser ou local que, no
planeta terra, representaram ou ainda representam o ponto de contacto com a
Tradição Primordial e com o Princípio Universal, o qual é referenciado em
lendas e mitos tradicionais das mais diversas épocas e geografias, como por
exemplo o do Rei Artur, que intui a uma conhecimento esotérico ligado a um
centro a ser atingido por um ser eleito dotado de poderes sobrenaturais, ou de
Melquisedeque, da qual Jesus Cristo teria sido um Sumo Sacerdote da sua Ordem (Epístola
aos Hebreus, 5,10).
Neste curto
capítulo, o autor reflecte sobre as possibilidades de existência no Ocidente da
manutenção de centros iniciáticos que permitam a transmissão própria deste
princípio a quem assim esteja disposto e capacitado, especialmente dadas as
presentes condições da humanidade, que desde há milénios se encontra mergulhada
na dita “Idade de Ferro”; quem foram os seus legítimos portadores e os
processos que levaram ao seu desaparecimento para outras paragens terrestres.
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Agarttha,
é dito, nem sempre existiu de forma subterrânea, e não subsistirá assim para
sempre. Um dia virá quando, de acordo com Ossendowski, “o povo de Agharti irá sair das grutas e
reaparecerá à superfície da terra1”. Antes da sua desaparição do
mundo visível, o centro tinha um outro nome já que “Agarttha”, que significa “inalcançável” ou “intangível” (e também
“inviolável” assim como é também Salem, “a morada da paz”), ainda não se tinha
tornado apropriado. Ossendowski data a sua retirada subterrânea desde há “mais
de seis mil anos atrás”, o que corresponde, numa aproximação razoável, ao
início do Kali-Yuga, ou a “Idade
Negra”, “a Idade de Ferro” do antigo Ocidente, que é o último dos quatros
períodos em que o Manvatara está
dividido2. O seu reaparecimento deverá portanto coincidir com o fim
do mesmo período.
Referência já foi feita a algo que está perdido ou
escondido, comunicado em todas as tradições, e a qual é representada por
diferentes símbolos; num sentido geral esta perda bate exactamente com as
condições da humanidade durante a Kali-Yuga.
O período corrente é um de obscurecimento e de confusão3, as suas
condições são tais que o conhecimento iniciático deve permanecer escondido enquanto
este perdure, o que explica a natureza dos “Mistérios” da antiguidade histórica
(a qual não data sequer do início do nosso período)4 e as sociedades
secretas de todos os povos. Tais organizações fornecem uma iniciação efectiva
apenas onde ainda existe uma autêntica doutrina tradicional, oferecendo apenas
uma sombra quando o espírito da doutrina já não vivifica os símbolos que são
meramente as suas representações exteriores; isto acontece quando, por diversas
razões, a ligação consciente com o supremo centro espiritual do mundo é
ultimamente quebrada. Esta perda de uma ligação direta e efectiva com o centro
supremo é o aspecto mais significativo da perda de uma tradição, a qual afeta
particularmente os centros secundários e dependentes.
É importante compreender que deveríamos estar a
falar de algo que se encontra escondido em vez de estar verdadeiramente
perdido, porque não se encontra perdido para todos mas é ainda possuído na sua
plenitude, apesar de o ser por uns poucos. Isto conduz à possibilidade de alguns
a redescobrirem, desde que a busquem da maneira própria, o que significa que a
sua intenção deve estar direcionada de tal modo que, através das vibrações
harmoniosas que desperta, permite que uma comunicação espiritual efectiva seja
feita com o Centro Supremo,5 através da lei das “acções e reações
concordantes”.6 Em todas as formas tradicionais a correta intenção é
sempre geralmente representada simbolicamente por uma orientação ritual,
propriamente direcionada em direcção a algum centro espiritual que – seja qual
for – é sempre uma reflexão do verdadeiro “Centro do Mundo”.7 No
entanto, à medida que o Kali-Yuga
progride, mais difícil se torna alcançar a unidade com este centro, que por sua
vez se torna cada vez mais fechado e oculto; ao mesmo tempo esses centros
secundários que o representam externamente tornam-se mais raros;8 no
entanto quando este período terminar a tradição irá necessariamente de novo manifestar-se
na sua totalidade, já que o início de cada Manvantara
coincide com o fim do seu predecessor, implicando então o retorno inevitável do
“estado primordial” para a humanidade na terra.9
Na Europa, toda a ligação conscientemente
estabelecida com o centro através da mediação de organizações ortodoxas
encontra-se agora quebrada, como tem estado desde há vários séculos. Esta
separação foi gradual, completada em várias etapas sucessivas em lugar de uma
só vez.10 A primeira destas quebras ocorreu no início do século
catorze, quando uma das principais funções das Ordens de Cavalaria era o de
realizar a ligação direta entre o Oriente e o Ocidente. A importância de tal
ligação será rapidamente entendida quando é relembrado que o centro tem desde
sempre, pelo menos desde os tempos “históricos”, sido descrito como estando
localizado no Oriente. Depois da destruição da Ordem dos Templários, a ligação
foi mantida de uma forma menos aberta pelos Rosacruzes, ou por aqueles aos
quais esse nome foi depois atribuído.11 A Renascença e a Reforma
marcaram outra fase crítica, depois da qual, como Saint-Yves parece sugerir, a
ruptura completa e final coincidiu com os tratados de Vestefália que acabaram
com a Guerra dos Trinta Anos em 1648. É um facto notável, que vários escritores
concordam, que os verdadeiros Rosacruzes deixaram a Europa pouco tempo depois
da Guerra dos Trinta Anos para se refugiarem na Ásia: será recordado que os
adeptos Rosacruzes eram doze, assim como os membros do círculo íntimo de Agarttha: ambos cumpriam, portanto, com
a constituição comum a tantos outros centros espirituais formados à imagem do
centro supremo.
Desde este último período, o acervo de conhecimento
iniciático efectivo não tem sido devidamente mantido por qualquer civilização
ocidental. De acordo com Swedenborg, o “Mundo perdido” deve portanto ser
procurado entre os Sábios do Tibete e da Tartária, onde o misterioso “Monte dos
Profetas” da visão de Anne-Catherine Emmerich também se localiza. A informação
fragmentária que a Senhora Blavatsky conseguiu juntar nesta matéria sem a
perceber na sua verdadeira acepção – deu nascimento à sua concepção da “Grande
Loja Branca”, à qual não deveríamos chamar uma imagem de Agarttha, mas simplesmente uma caricatura ou uma paródia imaginária
da mesma.12
1 Estas são as últimas palavras de
uma profecia que o “Rei do Mundo” é suposto ter feito em 1890, quando apareceu
num mosteiro em Narabanchi.
2 O Manvantara, ou a era de um Manu,
também designado por Maha-Yuga, é
composto por quatro Yugas ou idades
secundárias: Krita-Yuga (ou Satya-Yuga), Treta-Yuga, Dwapara-Yuga
e Kali-Yuga, as quais são
identificáveis com a “idade do ouro”, “idade de prata”, “idade de bronze” e “idade
de ferro”, da antiguidade greco-latina, respetivamente. Na sucessão destes
períodos existe um tipo de materialização progressiva resultante de um
distanciamento gradual do Princípio que acompanha o desenvolvimento do ciclo de
manifestação no mundo corpóreo, desde o “estado primordial”.
3 O início desta idade está, no
simbolismo bíblico, representado pela Torre de Babel e pela “confusão das
línguas”. Podia-se logicamente pensar que a queda e o dilúvio correspondem ao
fim das duas primeiras idades; mas, na realidade, o ponto de partida da
tradição hebraica não corresponde ao início do Manvantara. Não deve ser esquecido que as leis cíclicas aplicam-se
em diversos graus, para períodos de extensão desigual, os quais que por sua vez
por vezes se sobrepõem; portanto, as complicações que, à primeira vista,
parecem inextrincáveis e que podem com efeito ser resolvidas apenas por
considerar a ordem de subordinação hierárquica dos correspondentes centros
tradicionais.
4 Parece que nunca houve
reconhecimento do facto de que os historiadores acham praticamente impossível
em todas as culturas estabelecerem uma cronologia inquestionável para tudo o
que é anterior ao século sexto antes da era Cristã.
5 O que dissemos permite-nos
interpretar as seguintes palavras do Evangelho de um modo muito preciso: “procurem,
e hão-de encontrar; batam à porta, e ela há-de abrir-se, pois o que pede,
recebe; o que procura, encontra; e a quem bate, a porta se abrirá.” Aqui
deve-se naturalmente referir as indicações que já demos relativo à “boa intenção”
e à “boa vontade”; a explicação da expressão Pax in terra hominibus bonae voluntatis [Paz na Terra aos homens de
boa vontade] é facilmente compreendida neste contexto.
6 Esta expressão foi emprestada da
doutrina Taoista; além disso, entendemos aqui a palavra “intenção” no exato
mesmo sentido que o niyah arábico, o
qual é assim usualmente traduzido, para além de isto se conformar à etimologia
latina (de in-tendere, “tender a”).
7 No Islão, esta orientação (qiblah) é como se fosse a materialização,
se podemos utilizar a expressão, da intenção (niyah). A orientação das igrejas Cristãs é outro caso particular
que está essencialmente ligado a esta ideia.
8 Apenas uma relativa materialização
é, claro está, pretendida, já que estes centros secundários têm eles mesmo sido
mais ou menos estritamente fechados desde o início do Kali-Yuga.
9 Esta é a manifestação da celestial
Jerusalém, que é, em conexão com o ciclo que está a terminar, a mesma coisa que
o Paraíso Terrestre em conexão com o ciclo que está a começar, como explicado
no livro L´Esoterisme de Dante.
10 Do mesmo modo, de um ponto de
vista mais alargado, existem graus para a humanidade nos distantes confins
desde o centro primordial, e é a estes graus que a distinção dos diferentes Yugas corresponde.
11 Aqui de novo nos referimos ao
nosso estudo L´Esoterisme de Dante,
onde fornecemos toda a necessária informação de suporte.
12 Aqueles que entendem todas as
considerações aqui expostas irão ver como consequência clara porque não podemos
tomar seriamente as muitas pseudo-organizações iniciáticas nascidas no Ocidente
contemporâneo: nenhuma delas, se sujeita a um exame rigoroso, poderia provar a
menor prova de “regularidade”.
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