Publicamos
hoje a tradução de um artigo de Antonio Medrano, intitulado ‘O Modo de Vida
Tradicional’, incluído no livro ‘Cuadernos de Formación Tradicional’, editado pelo
Circulo Cultural Imperium.
Este autor
espanhol, pouco conhecido em Portugal, é um dos expoentes máximos no país
vizinho da corrente Sophia Perennis, tendo incluso sido apelidado como o ‘Coomaraswamy
espanhol’. Influenciado ainda jovem pelas obras de Julius Evola e de René
Guénon, aliado à sua vocação individual e familiar pela ação – o seu pai foi
uma das figuras de proa da aviação militar espanhola e herói de guerra e o seu
próprio apelido remonta às proezas da reconquista cristã medieval – sempre
tentou conjugar a via do conhecimento tradicional com a da ação no mundo
moderno, pelo que para além de destacado profissional e universitário, erudito,
homem de leituras e escritor profícuo, com uma biblioteca de mais de quarenta
mil volumes - deixou obra também no campo do ativismo cultural, da formação de
quadros dirigentes não apenas no mundo empresarial como no político, e no mundo desportivo, sempre com esse intuito de não só conhecer mas, especialmente, de viver
a via tradicional diariamente e permitir que outros acedessem a tal mundividência.
Esperamos que
este texto sirva não só para introduzir este autor, que, confessamos, ainda há
pouco tempo desconhecíamos, mas principalmente para dar pistas a quem busque
uma aplicação prática da integração da Tradição na respetiva vivência diária,
seja a externa – no trabalho, em casa, com amigos ou familiares – mas
principalmente na interna. E contra nós falamos quando reconhecemos o logro em
que facilmente se pode cair – especialmente nos tempos que correm por via
constatação dos abismos em que o mundo moderno se afunda – em que se julga
suficiente manter uma atitude totalmente desengajada, na qual o combate se realizar no mero plano ‘intelectual’, esquecendo que a Tradição só se efetiva
por meio de uma atitude viril e nobre, que tendo consequências no modo de
estar, parte de uma transformação da vivência interna, na qual tem palco a ‘Grande Guerra Santa’.
Que este
artigo sirva para relembrar que, como defensores da Ordem, da Virtude e dos
valores que têm validade Eterna, se não colocarmos todos os nossos esforços
para os atualizar no nosso modo de existência e sermos uma incarnação dos
mesmos, na prática pouco nos distinguiremos do homem comum e caído que tão
prontamente denunciamos e do qual nos julgamos distanciar.
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Qual é o modo de vida próprio ao homem da Tradição? Quais são as atitudes
e os estilos existenciais mais conformes à via tradicional? Como temos de
conduzir a nossa vida diária se queremos percorrer o caminho que a Sabedoria
perene nos ensina? Que pauta ou norma de vida podemos seguir para
aproximarmo-nos cada vez mais à sua verdade no meio de um ambiente hostil como
o da atual civilização? São estas algumas das interrogações que colocam de
forma imediata quem pela primeira vez entra em contacto com a doutrina
tradicional, todos aqueles que começam a despertar para o resplendor da respetiva
mensagem luminosa e imorredoura.
Posto que a Tradição ou a Sabedoria é antes de mais
nada vida, uma forma integral de viver, uma realidade para ser vivida em todos
e cada um dos momentos da existência, não poderia formular-se pergunta mais
certeira e oportuna como esta acerca da forma do viver tradicional. Esta é a
primeira pergunta que todos nos deveríamos colocar, não por pura curiosidade
intelectual, senão para dar resposta e proceder em consequência, tratando de
aplicar a dita resposta à nossa própria vida única e uniforme, válida
indiscriminadamente e por igual para todos os seres humanos. Mais que modo de
vida tradicional haveria que falar, em rigor, em modos de vida tradicionais;
pois múltiplas e diversas são as vias existenciais que o mundo da Tradição
apresenta, oferecendo neste campo uma rica gama de possibilidades adaptadas às
diferenças de época e lugar, assim como à diversidade de tipos humanos e de
formulações doutrinais. Em primeiro lugar, o modo de vida diário, em numerosas
questões de detalhe, segundo as tradições. Não é o mesmo o modo de vida de um
muçulmano que o de um hindu, ou o de um cristão e um taoista, como tão pouco
seriam evidentemente idênticas as normas que regiam a vida de um antigo germano
e aquelas às que ajustava a sua existência um egípcio ou um azteca.
E, em segundo lugar, mesmo quando nos situemos
dentro do contexto de uma mesma tradição, o modo de vida diferirá segundo a
inclinação vocacional predominante em cada ‘casta’ ou tipo humano, segundo o
sexo e condição de cada pessoa e segundo a sua capacidade ou nível intelectual.
Assim, por exemplo, não se prescreve a mesma atitude perante a vida a um homem e
a uma mulher, como tão pouco se exigem as mesmas virtudes ou qualidades, nem se
exigem com igual rigor, a um indivíduo com escassos dotes e a um ser
especialmente inteligente, capaz de perceber as coisas com maior claridade e
penetração. De forma semelhante, a norma de vida válida para um monge resulta
inadequada para um pai de família, de igual que não se podem aplicar os mesmos
critérios a um contemplativo e a um homem inclinado à ação. O estilo
existencial da casta sacerdotal há-de ser, por força, diferente do que resulta
característico da casta guerreira ou da mercantil. Contudo, não se pode
desconhecer que essa múltipla e plural constelação de formas de vida tem em
comum um núcleo de princípios fundamentais, que é precisamente o que os faz pertencer
a um mesmo mundo espiritual, apresentando-as como partícipes de um mesmo
arquétipo cultural e como variantes de uma mesma forma de vida: a cultura e a forma de vida tradicionais.
É a coincidência em algumas normas básicas comuns o que, ao mesmo tempo que une
e irmana entre si todas essas formas de vida, tão diversas, por outra parte contrapõem-se
sem paliativos ao modo de vida reinante no mundo moderno, profano e anti-tradicional.
Resulta, pois, legítimo falar de uma forma
tradicional de vida, da qual as diversas variantes a que fizemos alusão não
seriam senão expressões ou modulações particulares. As diversas formas
tradicionais de vida são, com efeito, adaptações da Vida normativa e essencial
da Tradição, do mesmo modo que as distintas tradições se perfilam como
expressões adequadas às diferentes condições humanas da Verdade eterna, una e
única. É este modo de vida normativo e essencial, subjacente a todas as
culturas tradicionais, o que vamos tentar esboçar aqui nas suas linhas mestras
e com uma linguagem o mais acessível e concisa possível, sem tecnicismos,
erudições, nem floreados literários. E fá-lo-emos, claro está, sem nunca perder
de vista que as nossas palavras vão dirigidas a pessoas cuja vida desenvolve-se
preferencialmente ou de forma predominante no mundo da ação, e que nasceram e
cresceram num ambiente refratário às realidades e forças, de natureza
espiritual, que configuram tal modo de vida, como ocorre na moderna civilização
ocidental.
Por uma questão de clareza, procurarei fazê-lo de
uma maneira esquemática, quase telegráfica, destacando vários pontos que me
parecem especialmente importantes, ainda que sejam inevitáveis certas
repetições ou reiterações, dado os entrelaçados que se encontram entre os
diversos aspetos analisados. Estas repetições colocam em evidência até que
ponto a forma tradicional de vida possui coerência e unidade. Como elementos
fundamentais da atitude tradicional perante a vida caberia destacar os
seguintes:
1. Assentar A Vida Em Princípios Autênticos
Guiar-se pela verdade, eleger como base e cimento
da própria vida os princípios imutáveis da Tradição ou Sabedoria universal.
Completo acatamento da doutrina tradicional: ter sempre presentes os seus
ensinamentos e seguir as suas orientações; conformar a totalidade da nossa
existência às suas diretrizes e conselhos. Sujeitar à Norma impessoal da
doutrina – que é o critério da pura objetividade – todos os nossos critérios,
juízos, opiniões, tendências, impulsos e atos, reduzindo à mínima expressão, ou
melhor ainda, erradicando por completo, o capricho e a arbitrariedade, a mania
de originalidade e de independência individual, o afã de protagonismo, o
criticismo racionalista ou sentimental ou qualquer outra manifestação de
individualismo.
A vida do homem
tradicional distingue-se, antes que tudo, da do homem moderno, por este
critério doutrinal, por esta submissão à verdade e aos princípios: enquanto a
vida do primeiro toma inspiração, completamente, numa doutrina que orienta,
ordena e dá sentido a todos os aspetos da sua existência (uma verdadeira
doutrina: sagrada, sapiencial, supra-humana, de origem transcendente, situada
por cima dos critérios e das opiniões individuais), a do último desenrola-se
com independência de qualquer orientação doutrinal, à margem de toda a
doutrina, ignorando inclusive o que esta palavra significa. Carecendo de uma
pauta normativa que guie a vida, o homem moderno vive à sua vontade, faz o que
lhe dá na gana. O homem tradicional, pelo contrário, vive como é devido, faz
não o que lhe apetece ou apraz, mas o que é correto, o que é justo e
necessário. O seu comportamento ajusta-se à Norma, e por isso pode ser
qualificado de normal, na plena e
genuína aceção da palavra. A sua maneira de pensar, de falar e de obrar
desenvolve-se com normalidade, em contraposição à anormalidade do viver
moderno, completamente desorientado e desnorteado na sua radical anomia
(ausência de nomos, de lei ou norma).
Tudo isto supõe, evidentemente, um esforço prévio de conhecimento e de
assimilação do conteúdo doutrinal da Tradição. Uma vez dado este passo, há que
deixar que a sua mensagem transformadora e vivificante penetre de modo natural
as diversas esferas e facetas da nossa vida, de tal modo que vá modelando,
retificando e ajustando a nossa maneira de ser, o nosso modo de ver as coisas e
de nos vermos a nós mesmos, a nossa forma de nos comportar e de reagir perante
os acontecimentos.
2. Sacralizar e Ritualizar a Própria Vida
Fazer que nela se faça presente com a maior
intensidade possível a dimensão ritual e simbólica que constitui um dos
ingredientes principais do mundo tradicional (para o qual se torna
imprescindível enxertar-se numa via tradicional concreta; isto é dizer, abraçar
e seguir algumas das diversas tradições ortodoxas). Rodear-se dos ritos e símbolos
sagrados da Tradição, empapando com a sua influência luminosa o próprio
ambiente existencial: a casa, o local de trabalho, a indumentária, o horário e
o ritmo de vida. Procurar que o próprio existir adquira um perfil e um conteúdo
sacrais, com contornos ritualizados e com sentido simbólico, na medida que o
permitam as condições de vida imperantes na civilização atual e as
circunstâncias pessoas de cada um. Aproveitar, de maneira especial, aqueles
meios e técnicas que a cultura sagrada coloca à nossa disposição para nos abrir
ao mais elevado e plasmar na vida diária os conteúdos do sagrado: oração,
meditação, leitura de textos sagrados, recitação de mantras ou fórmulas sagradas (jaculatórias, invocações), práticas
de mudras ou gestos rituais
(prostrações, genuflexões e reverências, benzer-se, gasho ou saúdo ritual com as mãos unidas), adoção de asanas ou posturas corretas. A
sacralização da própria postura, tanto física como mental, que se tenha a cada
momento. Revestir-se de um hábito ou hálito cultural, litúrgico e sacrificial,
incorporando no próprio viver esse comportamento de culto que é consubstancial
à cultura autêntica (a palavra ‘cultura’ vem de culto e cultivo: o
cultivo da terra efetuado com os ritos adequados, realizando sobre ela um culto
que a consagra e a torna fecunda). Fazer da nossa vida inteira um ato de culto,
um serviço divino.
3. Unidade, Integração e Concentração
Buscar o que nos une, o que nos unifica e
fortalece, o que nos permite superar a desunião, o conflito e o desgarro
interno, e nos torna um ‘reino unido’, para dizê-lo com as palavras de S.
Francisco de Sales. Afiançar a unidade em nós mesmos. Isto – ‘união’, ‘unidade’
– é o que significa a palavra sânscrita Yoga:
toda a disciplina sagrada é, na realidade, um yoga, uma via de unidade. A do homem
tradicional é uma vida inteira, íntegra, unida e bem embalsamada, de uma
peça. É um todo harmónico, perfeitamente trabalhado, em que cada parte ou
parcela se integra orgânica e solidariamente com as demais. E por isso é uma
vida plena de sentido. É a totalidade simbolizada pelo círculo, na que se
encaixam na sua mais estrita significação as palavras ‘integridade’ e
‘inteireza’ (o que se encontra inteiro, o que é ‘redondo’, completo ou
consumado). Tudo o contrário que ocorre ao homem moderno, cuja vida se encontra
desintegrada, fragmentada, descentrada, formando um conglomerado informe e
caótico, sem centro nem freio de unidade.
Há que praticar e cultivar tudo aquilo que nos faça
ganhar em integridade, interioridade, profundidade, elevação, centralidade e
harmonia. Assim, por exemplo: introspeção, reflexão, contemplação, trabalho,
estudo, arte, música, silêncio, exercício físico e mental. Assentar a nossa
vida na ordem, na paz e no sossego, na calma e na quietude criadoras. Afastar,
pelo contrário, o que nos divide e debilita. Eliminar, ou reduzir à sua mínima
expressão, tudo que signifique desintegração, dissociação (entre religião e
vida, entre teoria e prática, entre trabalho e arte, entre o que se diz e o que
se faz), agitação, dispersão, dissipação, distração (o viver distraídos, não a
distração que supõe uma sã distensão do ânimo), superficialidade, frivolidade,
ruído e desordem. Há que procurar estar bem centrado. Articular a própria vida
em torno de um centro inamovível. Ter sempre presentes os princípios que são o
centro da nossa vida. Não estar continuamente mariposeando, indo de um lado
para outro, mudando de ideias, de projetos ou de atividades. Centrar a atenção
numa coisa só, com a duração que faça falta. Não aturdir-se propondo-se fazer
muitas coisas; não pretender abarcar demasiado, para ganhar em qualidade e
intensidade. Aproveitar cada ocasião que se ofereça para concentrar as próprias
energias. Eleger como norma a estabilidade e a firmeza. Cultivar as virtudes da
continuidade, da tensão, da paciência, da tenacidade, e da fidelidade como
meios para habituar-se a concentrar a atenção e o esforço durante tempo
prolongado. Ir ao essencial. Frente à tendência atualmente dominante, em que a
vida se torna superficial, trivial e insubstancial, tornando a vida interior
asfixiada pela agitação externa, dar primazia ao interno sobre o externo e
superficial, priorizar o importante e essencial ao acidental e acessório. ‘Ó
homem, faz-te essencial!’, recomendava Angelus Silesius.
4. Retidão, Nobreza, Autenticidade e Pureza de
Vida
Manter-se sempre em Reto caminho. Viver em
conformidade com a Lei divina, com a Norma eterna, com o Dharma universal. Retitude em palavras, obras e pensamentos; que a
totalidade da própria existência se reja por uma atitude pura, justa e nobre.
Esforçar-se por fazer sempre bem e por fazer tudo bem: atuar com vontade de
perfeição; fazer com primor, esmero e cuidado requintado o que façamos, dando o
melhor de nós mesmos. Comportamento sério e responsável, adequado ao que a
inteligência e a consciência nos ditam, que sopese bem as próprias abordagens
intelectuais e mentais: não deixar-se ludibriar por essa demagogia íntima que
tantas vezes obnubila a razão. Assegurar-se que as nossas ideias estão bem
fundadas, se justificam, não são fruto da arbitrariedade, do capricho ou de um
arrebato momentâneo. Praticar os valores e virtudes que fazem que a vida seja
autenticamente digna de ser vivida: honradez, valentia, fidelidade, lealdade,
prudência, discrição, amabilidade, gratidão, perseverança, diligência,
laboriosidade.
Assentar a respetiva vida no amor e na verdade, na
sinceridade. Evitar a falsidade e a mentira, a duplicidade e a hipocrisia, a
traição à própria norma interior, a colaboração com as forças do caos ou a
rendição às suas incitações. Não enganar-se nem enganar os demais. Que a
verdade guie a nossa ação, procurando não equivocarmo-nos, não cair no erro nem
desviarmo-nos do reto proceder. Que a nossa vida seja íntegra e autêntica,
dando preferência ao ser sobre o aparentar.
Esta linha de alta exigência moral supõe nobreza,
magnanimidade, grandeza de alma: o ideal helénico e a megalopsychia e o indo-ário do mahatma.
Apenas uma alma nobre se sente atraída por tão nobre e excelsa norma de
conduta; só numa alma grande podem entrar e ter cabimento tão elevados
princípios: só uma alma grande e nobre pode responder ao que dela se pede e as
altas exigências que o Caminho reto apresenta. Cultivar esta nobreza é um dos
principais propósitos da disciplina tradicional.
5. Viver em Harmonia com o Ritmo Cósmico
Ajustar a própria vida às leis eternas da Natureza,
expressão da Vontade do Criador. O homem é um cosmos, um microcosmos, e há-de
reger-se pelas mesmas leis que regulam o macrocosmos, o grandioso edifício do
universo. Isto significa levar uma vida sã, natural, ordenada, sensível, sóbria
e equilibrada, abstendo-se de qualquer coisa que seja antinatural, de tudo o que
é frívolo e supérfluo, do que não é necessário ou é prejudicial, do que seja
artifício ou ficção enganosa (assim, por exemplo, a enorme acumulação de
baboseiras, necessidades artificiais e problemas inventados que gera a
civilização consumista). A ordem da própria vida há que refletir a Ordem que
rege a Criação.
Há que ordenar a própria vida em todos os seus
aspetos: a mente, as ideias e os sentimentos, o horário e o calendário, as
atividades que se realizam durante o dia, as coisas que utilizamos e configuram
o nosso ambiente vital. Impõe-se fugir da desordem, das situações caóticas, do
luxo e da extravagância, do excessivamente rebuscado ou complicado. A
naturalidade e a simplicidade são o ideal do modo de vida tradicional, pois só
uma vida simples, austera e sem excessos pode ser uma vida livre e autêntica, uma
em que a verdade se arreigue.
6. Respeito, Cortesia, Atitude Amorosa e
Caritativa
Respeito a nós mesmos e a tudo que nos rodeia.
Consideração reverente à realidade em todas as suas formas de expressão, às
leis da vida e aos seres que compartem connosco a existência. Respeito à ordem
hierárquica, à diversidade e às diferenças qualitativas que configuram a
estrutura do real. Respeito ao que temos por cima, por baixo e ao nosso lado.
Respeito ao próximo, àqueles que connosco convivem: respeito às suas
inclinações e convicções, à sua vocação, ao seu espaço mental e vital, à sua
maneira de ser e de entender a vida (postura esta que exclui o proselitismo,
essa aberração tão característica do Ocidente moderno, que levou a querer impor
a sua civilização ao resto dos povos da terra).
Trato cortês, atento e amável com tudo e com todos.
Não destruir, desprezar nem desperdiçar nenhum bem. Não maltratar nem ofender
nenhuma das coisas que temos perante nós ou que utilizamos na vida diária. Não
prejudicar, não atacar, não danificar nada nem ninguém. Não manchar a nossa
própria dignidade nem a dignidade da Criação. Manter uma atitude de sagrada
veneração perante a Natureza, manifestação da Realidade divina. Tratar com
delicadeza, com a máxima atenção e ternura as pessoas e os objetos (animais,
plantas, coisas inanimadas) que nos acompanham no peregrinar sobre a terra, que
nos servem como bons amigos ou fiéis servidores e nos ajudam a viver.
Comportar-se com tudo que existe com a responsável magnanimidade de um rei e
com o cativante afeto de um irmão. Saber cuidar as coisas que nos foram dadas,
que Deus nos confiou para poder cumprir o nosso destino e missão. Atitude
compreensiva e compassiva para com todos os seres, começando pelo ser que temos
mais próximo, que somos nós mesmos: compreensão e compaixão à minha própria
pessoa; amar-me a mim mesmo como base para poder amar os demais (amar e amar-me,
que significa desejar o bem para mim e para o próximo). O homem tradicional
abraça com o seu amor a totalidade das criaturas, vendo nelas companheiras de
caminho e inclusive irmãos. O universo inteiro cabe no seu abraço cordial e
redentor, nele se reflete o amor com que o Criador observa a sua Criação e que
recebe o nome de ‘caridade cósmica’.
7. Mente Aberta, Flexível E Recetiva
Abertura de ânimo, em atitude de cordialidade,
simpatia e empatia com tudo o que vive. Não fechar-se nem anquilosar-se. Evitar
qualquer forma de rigidez, de fanatismo, de obsessão ou fechamento mental.
Conservar o respetivo espírito sempre virgem, num templo de frescura, brandura
e flexibilidade que o capacite a dar a resposta adequada em cada ocasião e para
adaptar-se ao que dele exigem as circunstâncias. Estar disposto a retificar ou
emendar o que seja necessário da própria maneira de ser e de atuar, ao ritmo
das indicações certeiras que se recebam. Atitude recetiva, acolhedora, de
escuta ativa. Não estar contínua e exclusivamente a ouvir-se a si mesmo,
obcecado com os respetivos problemas e interesses. Viver em contínuo e generoso
intercâmbio com o que nos rodeia. Viver com as janelas do coração abertas à
mensagem que nos chega das pessoas e das coisas. O universo inteiro é uma
revelação: através de todos e de cada um dos feitos da existência são-nos
transmitidas verdades da maior transcendência para a nossa vida espiritual.
Cada momento, cada coisa e cada acontecimento traz-nos algum ensinamento. Há
que colocar-se numa disposição de ânimo que nos permita captar essa mensagem,
essa voz íntima e secreta, prontos sempre a responder e a corresponder como é
devido, e a oferecer ajuda ali onde seja necessário.
Só numa mente aberta pode a Luz da Verdade entrar.
Só um espírito totalmente aberto pode assimilar a doutrina tradicional.
Infelizmente, o homem comum vive encerrado em si mesmo, enclausurado no seu
mundo e com a mente cheia de vacuidades e bagatelas que o impedem de captar o
realmente importante.
8. Centralidade, Equilíbrio e Moderação
O ritmo e a medida são os critérios existenciais do
homem tradicional, cuja vida se via conformada por uma aritmética e geometria
sagradas. Moderação em tudo: no comer, no beber, no dormir e descansar, no
pensar e no falar, no trabalhar e no divertir-se. É o sé stesso misura (‘a moderação mede-se a si mesma’) com que Dante
define o comportamento e estilo do homem de bem (Purgatório. XVII, 98). Vida bem temperada, sem os rigores da
frialdade ou do acaloramento que geralmente atormentam os seres humanos: longe
tanto de frialdades glaciares, que gelam e endurecem o coração, como de ardores
abrasadores, que perturbam a paz interior e arrasam qual violento incêndio os
campos da alma. Temperança e moderação que evitam exageros e desvios danosos,
intransigências violentas, radicalismos e rigidezes, obsessões e manias.
Buscar em cada instante o centro de equilíbrio. O
‘Justo Meio’, equidistante do excesso e do defeito, de que fala a doutrina
zoroástrica; o ‘Caminho do Meio’ da doutrina budista; o ‘Centro áureo’ postulado
por Confúcio e pela tradição chinesa; a senda simbolizada pelo braço central do
Y pitagórico. ‘No centro está a virtude’, afirmam em uníssono tanto os autores
clássicos do mundo greco-romano como os moralistas e místicos cristãos. Impor-se
um método, uma disciplina, uma ascese que, empregando técnicas perfeitamente
medidas, atue como limite criador; uma ascese que não seja demasiado tensa nem
demasiado relaxada, nem excessivamente dura nem excessivamente branda,
distanciada por igual do hedonismo enervante e do ascetismo mortificador ou
masoquista. Guiar-se, nas diversas vicissitudes e circunstâncias do viver
quotidiano, por uma austeridade balançada, por uma frugalidade sã e uma
sobriedade nobre. Reduzir ao máximo os desejos, apetites, aspirações e necessidades.
Cultivar e fomentar tão só as aspirações e os desejos nobres. Descartar tudo
que é degradante, que nos escraviza ao mundo dos sentidos, que acentua o
sentido do ego.
9. Postura de Desapego Radical
A Abgeschiedenheit
(‘distanciamento’, ‘afastamento’ ou ‘isolamento’) de que fala Meister Eckhart,
equivale à ‘pobreza de espírito’ evangélica. Não viver apegado às coisas,
afogados por tarefas e preocupações mundanas. Não estarmos dependentes do que
se passa e como nos correm as coisas; não sermos movidos pela sede de dinheiro,
de fama ou de poder. Desprender-se do afã de possuir e dominar. Não aferrar-se
a nada nem a ninguém, de tal forma que não sintamos a sua perda ou nos
desespere o seu desaparecimento; pois tudo é perecível e o aferrar-se a algo,
como se fosse durar para sempre, não proporciona senão dor e pesar. Ânimo
desprendido, despido, vazio, em radical solidão, com o olhar fixo unicamente no
Eterno. O que Eckhart chama ‘mente solteira’ (lediges Gemüt); a ‘bondade indiferente’ de Tertuliano, a ‘santa
indiferença’ dos místicos espanhóis; o ‘deixar largar’ que ensina o Zen. Ser
pobre no meio das riquezas: possuir as coisas como se não se possuísse; não desejá-las
se não se possuem. Esvaziar-se de tudo: desprendermo-nos dos impedimentos que
nos complicam a vida e descartarmo-nos da bagagem pesada e inútil que
costumamos acumular sobre a nossa alma.
A solidão interior como meio formativo e recurso libertador,
como requisito para a inspiração e como base da comunidade autêntica, não a
solidão negativa, como isolamento individualista e egoísta, como sintoma e
fruto amargo do desamor. Um viver solitário que é ao mesmo tempo radicalmente
solidário, pois é animado pelo amor, nutrindo-se da Fonte de Amor eterno. Só
com este desapego interior pode o homem alcançar a liberdade perfeita; pois graças
a ele consegue libertar-se de si mesmo e de tudo que o rodeia: já não se vê
afetado pelos acontecimentos; os contratempos já não causam entalhe no seu
ânimo, permanece sempre o igual e impassível. Instala-se num estado de
equanimidade, de equidade anímica ou de igualdade de ânimo (‘a santa igualdade
de ânimo’, de que falava S. Francisco de Sales). Sabe comtemplar com um
semblante sereno a boa e a má fortuna, o êxito e o fracasso, o elogio e a
censura.
10. Eliminação do Egoísmo
Extirpar qualquer tendência egocêntrica e egolátrica.
‘O ego é o inferno’, repetem incessantemente os místicos cristãos, hindus,
muçulmanos e budistas. O caminho da liberdade passa pela submissão e
aniquilação do ego. É o caminho da abnegação e do abatimento (o self-naughting da mística inglesa). Ser
nada para ser tudo. Temos de viver num estado de completa submissão à Vontade
divina, oferecendo a Deus tudo quando façamos ou possuamos e aceitando tudo que
ele nos envie. A vontade própria deve eliminar-se para dar prioridade à Vontade
de Deus. Na vida quotidiana há que manter uma postura de desconfiança e
distância em relação ao próprio eu: a tudo o que dele surja (emoções, opiniões,
juízos, apetências, preocupações, dúvidas, temores). O nosso pior inimigo está
dentro de nós: é o nosso ego, o nosso eu. Dele provém todos os nossos
problemas. Este é o adversário que temos de vencer se queremos que desperte e
se afirme a nossa realidade espiritual.
Desprender-se da noção do ‘eu e do meu’, que
frequentemente condiciona a nossa atuação e o nosso pensamento ao longo do dia.
Procurar viver num estado de anonimato, como se não fôssemos nada nem ninguém.
Como passo prévio, já que este nível de anulação total do ego é sumamente
difícil, convirá que o ego adote uma atitude serviçal, colocando-o ao serviço
da Verdade e fazendo que se considere servidor de Deus e do próximo, com o qual
se irá depurando até que chegue a esfumar-se quase por completo. Para
libertarmo-nos do egoísmo dispomos de um antídoto duplo: a humildade e a
generosidade. A humildade faz-nos reconhecer que somos algo muito pequeno, que
estamos cheios de debilidades e limitações, que somos falíveis e corruptíveis,
e que lhe devemos tudo quanto temos. A generosidade leva-nos a reconhecer a
valia e a grandeza fora de nós, a admirar o que nos supera e a ela nos
subordinar, a entregarmo-nos ao grande e ao nobre, a dar com liberalidade (preferindo
dar a receber) e a pensar nos demais antes de nós. Operando conjuntamente, a
humildade e a generosidade impulsionam-nos a buscar por cima de tudo o bem, a
verdade e a beleza, ao mesmo tempo que permitem que nos submetamos com facilidade
e sem problemas ao que por natureza estamos submetidos.
11. Acão Pura e Desinteressada, Realizada com
Sentido Sacrificial
Fazer aquilo que deve ser feito sem preocupar-se
com as consequências que podem acarretar para a nossa pessoa. Cumprir o dever
respetivo, com independência do gosto ou desgosto que nos proporciona a tarefa
a realizar e sem consideração pelo êxito ou fracasso, aos bons ou aos maus
resultados que se podem conseguir, ao aplauso ou à crítica com que sejam
acolhidos o nosso proceder ou obra realizada. Na hora de empreender uma
atividade, não tomar em conta as perspetivas de triunfo ou derrota, de ganho ou
perda, de prémio ou castigo, tão só a retitude e a conveniência da ação a
realizar. É o ideal do Karma Yoga da
tradição hindu: a ação desvinculada dos frutos, efetuada com total
desprendimento e oferecendo-a a Deus, sabendo que ele é o verdadeiro
Realizador, que nós somos apenas seus instrumentos.
Fazer bem as coisas não porque a nossa boa conduta
será premiada, mas por amor ao bem. Abster-se de fazer o mal não porque se vai
ser castigado, mas por negação espontânea e radical do mal como algo contrário
à nossa própria natureza. Viver a ação como sacrifício, na significação
etimológica da palavra: sacer facere =
‘Fazer Sacro’. Imolar o ego ao altar
do dito sacrifício, fazer que se consuma nas chamas desse fogo sagrado. Obrar
com total desapego, sem ego, sem a noção ‘sou eu que faço’, sem pensar que vou
obter isto ou aquilo, que existe um sujeito que vai ser derrotado ou vai sair
vencedor. Realizar conscientemente, inclusive com ilusão e entusiasmo, as
tarefas que nos correspondam, esforçando-nos para que a nossa seja uma obra bem
realizada. Nos combates que haja a empreender, lutar com o maio ímpeto para
alcançar a vitória, mas sem obsessionarmos com ela e sem tão-pouco temer a
derrota. Perder e ganhar com o mesmo bom ânimo, como o bom desportista. Atuar,
trabalhar e combater com espírito desportivo. Atitude lúcida perante a vida,
participando alegremente na Dança no Jogo de Deus, o que os hindus apelidam de Lila divino.
12. Viver em Perpétuo Estado de Alerta Interior
Manter uma permanente atitude de atenção e
vigilância (o sati budista). Estarmos
sempre despertos, atentos ao que se passa dentro e fora de nós. Ser em todo o
momento conscientes do que fazemos, pensamos e dizemos; manter sob atenta
observação os movimentos do nosso corpo, os nossos impulsos e motivações, as
comoções que têm lugar na nossa alma. Dar-se cabalmente conta da realidade em
que vivemos imersos, percebendo com nitidez até os seus detalhes mais ínfimos.
Visão circular capaz de tomar em conta a totalidade da situação para que nada
passe desapercebido.
Não vivermos distraídos, despistados ou atordoados,
adormecidos ou letárgicos, submersos inconscientemente no puro devir
horizontal, como mortos na vida, como zombies ou robôs com aparência humana.
Não permitir que a nossa mente funcione à base de automatismo e de reações
induzidas, como se fôssemos entes teledirigidos manipulados pelos que detêm os
poderosos meios de comunicação da sociedade de massas. Não deixar que a
existência vá decorrendo sem nos apercebermos do profundo mistério que encerra,
mas justamente o contrário: despertar para a vida e estar sempre em guarda,
mantendo a postura erguida e alerta do sentinela que vela o tesouro da cidade
interior. É uma atitude indispensável para o conhecimento de si mesmo e do
mundo. E deste modo a única via possível para conseguir a submissão do ego, em vez
de ser ele que nos submeta e escravize.
13. Vivência do Momento Presente
Entrega íntegra e total à ação do momento.
Concentrar-se no que se faz a cada instante, com completo esquecimento de tudo
o resto. Viver em pleno, limpa e intensamente no ‘aqui e agora’. Não estar
pendente do que foi ou do que será, do que se passou ontem ou do que poderá
passar amanhã. Não deixar que nos invada a preocupação pelo futuro nem o
lamento ou o remorso pelo que aconteceu. Identificar-se com o que há que fazer
agora, fundir-se na tarefa que temos em mãos, seja esta ou a que seja. Colocar
todo nosso ser naquilo que fazemos, seja a comer ou a trabalhar, meditar ou
caminhar, rezar ou descansar, falar com um amigo ou contemplar uma obra de
arte. Consagrarmo-nos a ele de corpo e alma, com todos os nossos sentidos, como
se a nossa vida dele dependesse (que realmente depende), como se do mais vital
e transcendente se tratasse, vivendo-o como algo sagrado. Fundirmo-nos com o
real, com o que é – isto é dizer, com o que perante nós aparece como dado neste
momento – em vez de estar pensando continuamente no que poderia ser ou que
gostaríamos que fosse, lamentando não poder estar neste ou noutro lugar e
sentindo falta desta ou daquela atividade mais gratificante e apetecível que
poderíamos estar agora a fazer. Deste modo a vida ancora-se no Eterno Presente,
no Agora supremo em que resplandece a Presença de Deus.
A vivência do presente exige também não perder
tempo; saber aproveitar cada pequena parcela deste bem tão valioso e irrecuperável
que a Providência coloca à nossa disposição; não permitir que o tempo passe
indolentemente; não deixar que se esfume desaproveitando o despercebido nem um
só minuto do nosso existir quotidiano. Todo o oposto desta atitude que se
resume na locução ‘matar o tempo’. Matar o tempo é matar-se pouco a pouco.
Perder o tempo é perder a vida, suicidar-se lentamente. Apenas quem emprega bem
o seu tempo em boas ações, plenas de conteúdo, salva a sua vida, torna-a
proveitosa e lhe dá sentido.
14. Esforço Heroico e Vontade Combativa
Para viver a vida como é devido faz falta tensão
afirmadora, espírito de luta, energia interior, força e tenacidade, virilidade
espiritual (a virya indo-ária, a virtus romana, a areté helénica). Esforço sustentado com persistência, exigência e
rigor, ação continuamente orientada para a perfeição. Trabalhar e trabalhar-se
sem cessar. Desconfiar de tudo o que seja passividade, abandono, inércia,
ociosidade, sonolência, apatia, preguiça, deixar-se levar. Empenho e resolução
para realizar o respetivo destino, para levar a cabo a missão única e
intransferível que nos foi encomendada nesta vida, para modelarmo-nos e
aperfeiçoarmo-nos, para avançar na via da Libertação e Iluminação. Coragem e
determinação para vencer todas as dificuldades que se interponham no nosso
caminho. E sobretudo tensão e perseverança na consecução do objetivo proposto e
na prática da disciplina eleita. Não desanimar pelas falhas e erros que se
cometam; não render-se perante a constatação da própria debilidade. Luta
implacável contra as potências do caos e das trevas, donde quer que insinuem a
sua presença, e de modo especial no terreno que mais nos concerne e que temos
mais próximo: na sua projeção dentro do nosso próprio ser. Dito por outras
palavras: guerra sem cartel contra o dragão que se oculta na caverna da própria
individualidade. É o que a doutrina tradicional designa com o nome de ‘grande
guerra santa’. A vida há que ser vivida como um combate ao serviço de Deus, como
uma luta sagrada pelo triunfo das forças da ordem e da luz. ‘Milícia é a vida
do homem sobre a terra’, diz a Bíblia.
15. Autodomínio e Senhorio de Si Mesmo
Império sobre a própria individualidade. O que
Lao-Tse chama ‘conquistar e conservar o Império’. Ser dono e senhor do próprio
mundo psíquico e mental, das respetivas reações e emoções. Não deixar-se levar
pelos sentimentos; não permitir que a própria irracionalidade nos manipule e
nos dite a maneira de pensar, de falar e de atuar. Não afastar nem alienar a
nossa vida interior. Viver desde o próprio, e não desde instâncias externas, de
impulsos de origens distantes. Não estar à mercê do que ocorra em nós ou à
nossa volta; não estar sujeito aos vaivéns que a alma pode experimentar.
Dominar as paixões, em vez de deixar que sejam elas que nos dominem. Possuir as
coisas em vez de ser por elas possuído. Que nada possa mandar sobre nós mesmos,
escravizar-nos ou subjugar-nos. Que o próprio mundo pessoal seja semelhante a
um império ou reino bem regido, sem rebeldias nem insubordinações ilegítimas,
obediente à Lei do Céu. Um império forte e poderoso, mas ao mesmo tempo
benigno, suave, humano, flexível. Que a própria vida se organize como uma
comunidade retamente ordenada, articulada com arranjo e justiça e de acordo com
a correta hierarquia, com um princípio dominador firmemente assente no próprio
centro. Qua a realidade espiritual, o Eu superior, mande como rei sobre o plano
físico e psíquico, sobre o eu inferior, efémero e contingente. Apenas sobre
esta base a verdadeira liberdade é possível. Ser livre e dominar-se, ser dono
de si, exercer um controlo inteligente, justo e sereno sobre o próprio ser,
submetendo-o aos ditados da inteligência e da Norma espiritual – submetendo-o,
não tiranizando-o.
16. Claridade, Lucidez, Racionalidade
Comportamento lógico e racional, animado pelo logos ordenador, pela razão
clarificadora e iluminadora das sombras que buscam assenhorar-se da alma.
Manter a todo o instante um estado de claridade mental, de luminosidade
intelectual, de discernimento lúcido. Não tolerar que a respetiva visão se
torne nebulada pelo erro ou pela ignorância (a avidya da doutrina budista e vedântica, a cegueira espiritual).
Impedir que o elemento irracional determine os critérios orientadores da nossa
vida. Mover-se em permanente clima de inteligência e sensatez: que no próprio mundo
psíquico impere a luz e a sanidade.
Manter-se afastado da insensatez, da torpeza física
e mental. Fugir de tudo que seja confusão, ofuscação, ideais pouco claras,
sentimentalismo (predomínio do sentimental, o sentimento como critério e regra
de vida), misticismo obscuro, sugestionamentos coletivos, gregarismo e
fenómenos de massas, manipulação dos estratos subconscientes da nossa psique
(todas elas coisas que estão na ordem do dia nos tempos que correm). Evitar
qualquer tipo de intoxicações, vícios ou espasmos emotivos que ofusquem e assombrem
a nossa mente, que diminuam a nossa consciência, que rebaixem a nossa lucidez
intelectual e a nossa força volitiva. Não consumir drogas, narcóticos ou
produtos alucinogénios, que adormeçam ou inibam a nossa capacidade de ação e
reação, que nos mergulhem na penumbra ou semeiem na nossa alma a preguiça ou a
impotência. Não abusar das substâncias calmantes e estimulantes, nas que o
homem moderno tende a confiar cegamente, delegando nelas o controlo da sua
vida. Evitar tornar-se presa das técnicas de envelhecimento, de condicionamento
da mente e de adestramento coletivo que tão enorme desenvolvimento adquiriram
na civilização moderna. Ao falar da necessidade de evitar as drogas, isto
inclui também aqueles produtos intoxicantes mais subtis, que poderíamos
qualificar de drogas culturais, psíquicas ou mentais, com as quais somos
bombardeados incessantemente e que fazem parte da lavagem de cérebro e de
caráter em que se vê submetido o homem de hoje.
17. Atitude Profundamente Objetiva e Realista
Não desvirtuar, tergiversar, distorcer nem
violentar a realidade. Ver as coisas tais como são, e não pretender vê-las como
queríamos que fossem, projetando sobre elas o nosso subjetivismo deformante.
Conservar uma postura de central imperialidade, de objetividade impessoal, que
exclui não só qualquer atitude partidarista, como também o aferramento
ilegítimo a preferências individuais, o tingir a realidade com a cor dos
próprios desejos ou o enquistamento em enfoques parciais. Normas básicas a ter
em conta são aqui: o não enganar-se com as próprias construções mentais ou
mediante engenhosos malabarismos dialéticos; o aceitar a realidade em toda a
sua desnudez, em vez de sacrificá-la ou subordiná-la aos próprios gostos,
apetências ou manias; saber captar a verdade objetiva, sem deformações interesseiras;
antepor a verdade a qualquer outra consideração e acostumar-se a preferir a
verdade pura e simples a qualquer interpretação adocicada dos factos. É
necessário, sobretudo, manter uma atitude imparcial e neutral ante a nossa
própria vida anímica: perante as nossas alterações emocionais, perante os altos
e baixos que a nossa alma possa experimentar, perante o impacto do prazer ou do
sofrimento, perante as consequências afirmadoras ou negadoras do eu que trazem
consigo os acontecimentos. Só assim poderemos deixar de nos ver abalados pelas
comoções do psiquismo.
18. Aceitação, Confiança e Alegria
Alegre e serena aceitação do que ocorre, de tudo
aquilo que a vida nos traz, vendo nele algo que Deus nos envia para o nosso
próprio aperfeiçoamento. Alegre afirmação da vida, com todos os seus bens e
pesares, considerada como um dom de Deus que há que saber aproveitar para fazer
render os talentos que nos deram. E ao mesmo tempo, tranquila aceitação da morte,
enfrentada cara a cara, sem rejeição nem temor. Confiar na Providência divina,
na Lei sábia e amorosa que rege a ordem cósmica. Conformidade com o próprio destino,
com a própria sorte e condição (o próprio karma),
sabendo que nada é casual, que tudo possui o seu significado, pois descansa
numa profunda lógica e obedece a leis precisas que ultrapassam a nossa
compreensão. Não queixar-se nem cair no pessimismo. Não cair tão pouco num
fanatismo cego, mas atuar com energia quando se trata de emendar uma situação
deplorável ou indesejável. Ver as coisas pelo lado bom e positivo. Saber
extrair o melhor das experiências, como a abelha extrai o mel das flores
amargas.
Fidelidade ao svadharma,
à lei ou norma do próprio ser, à norma que rege a nossa natureza pessoal e nos
assinala o nosso destino. Longe de tornar-se movido pela ambição, pelo afã
competitivo, pela obsessão de progresso e ascensão na escala social (a absurda
mania de ser ou aparentar ser mais que os demais ou, pelo menos, de igualar-se
ao que está por cima), o homem
tradicional não deseja mais que estar no seu próprio posto, aquele que
corresponde à sua própria natureza, à sua mais íntima vocação, às suas
qualidades, aptidões e méritos. Não há nada mais afastado da norma tradicional
que a insatisfação, a agressividade, o descontentamento perpétuo, a inveja e o
ressentimento, atitudes insalubres que são fomentadas e atiçadas pela moderna
civilização do igualitarismo e do comunismo. Uma vez mais, naturalidade, retitude,
autenticidade e sensibilidade. O homem tradicional vive conectado às fontes da
alegria (o Ananda ou Gozo divino). Por
isso é inexequível às potências abissais que obscurecem a existência humana e estendem
sobre ela o negro véu da tristeza, que é o pior veneno da alma. Viver contente
com o que se é e com o que se possui. Não se render jamais à amargura, à
angústia ou à apatia. O seu templo vital caracteriza-se pela simpatia, o
sentido de humor e uma jubilosa ingenuidade. A sabedoria compadece-se mal com
estados de alma como a irritação, a melancolia, a aridez, o desabrimento e o
mau-humor; é risonha e jovial, como o prova o sorriso que resplandece do Homem
divino, sábio e liberto (Cristo, Buddha, Lao-Tse, Ramana Maharshi). Também
neste ponto a sua forma de viver apresenta-se em abismal contraste com a do
homem moderno, cuja vida é triste e angustiada, insípida e monótona, aborrecida
e sombria, ameaçada pela depressão e pela náusea vital, o que o leva a buscar a
evasão em paraísos artificiais, tão lúgubres como penosos e escravizantes.
19. Encher a Vida de Beleza e Poesia
Viver com sentido poético; isto é, com sabedoria e
amor, projetando luz sobre as coisas, descobrindo as profundas riquezas que
encerra a vida. Mover-se e observar o mundo com vocação criadora e
harmonizadora, com uma visão de totalidade, incorporando ano próprio viver a
força renovadora que em si contém a poesia. Fazer da nossa vida uma obra de
arte, uma realidade bela, harmónica e bem formada, na que se realize de forma
efetiva a síntese daquelas três qualidade do Ser – o bem, a verdade e a beleza
– colocadas em relevo pela filosofia platónica. Incorporar a elegância, a
finura e a delicadeza às diversas manifestações que configuram a nossa
existência quotidiana.
A cultura tradicional encontra-se banhada num mar
de poesia e beleza. Tudo nela é belo e encontra-se envolto num delicado alento
poético: desde os textos sagrados à arquitetura dos templos, desde os símbolos
dos utensílios que se são usados na atividade diária, desde o vestuário às
formas de vida. A diferença do que ocorre na moderna civilização industrial,
onde a arte é algo separado da vida quotidiana, reservado a uma minoria de
indivíduos privilegiados e ociosos, na cultura tradicional todo o homem é um artista
e um poeta: tudo o que faz tem um valor poético e artístico; vai criando arte e
poesia à medida que vive. Se a beleza é o resplendor da verdade, uma vida que se
encontra enraizada e inspirada na verdade será uma vida bela, da mesma forma
que quem vira as costas à verdade ou a despreza estará forçosamente condenado a
penar sob o erro e o horror, caindo numa existência feia e disforme. A vida do homem tradicional, que é o mesmo que
dizer do homem normal, encontra-se nos antípodas da vida prosaica do homem
moderno, uma vida cinzenta e opaca, que se vê asfixiada pela fealdade e pela
insustentabilidade, ensombrada por enormes monstruosidades de toda a índole.
20. Encher a Vida de Beleza e Poesia
Exercitar o corpo, para fortalecê-lo, endurecê-lo e
dar-lhe flexibilidade e resistência. Saber aproveitar todas as energias e
desenvolver todas as suas potencialidades, de tal modo que se converta num
firme apoio para a obra de elevação e realização espiritual. Não esquecer nunca
que a meta a alcançar é o desenvolvimento integral, harmónico e equilibrado da
pessoa. A doutrina tradicional – totalmente distante daquelas aberrantes
correntes espiritualistas que creem ver um antagonismo irredutível entre
espírito e matéria, entre alma e corpo, olhando com desprezo este último –
valora com ênfase especial o exercício físico e o cultivo da realidade corporal
do ser humano, atitude que tem o seu fundamento doutrinal na consideração do
ser sensível como manifestação da realidade espiritual e da estreita ligação
existente entre corpo, alma e espírito. Prova dela é a importância que na
cultura tradicional adquirem o trabalho manual, o artesanato, o canto e a
dança, o desporto como ação sagrada (os jogos gregos, as artes marciais
orientais, o Hatha-Yoga). A música e
a ginástica são os dois esteios propostos por Platão para a formação do homem
ideal (estando comprometida na noção grega de ‘música’ também a poesia).
Caberia recordar também o importante papel que nas práticas iniciáticas desempenham
a postura corporal, o respetivo ritmo da respiração ou a concentração em determinadas
zonas do corpo. Na doutrina cristã o corpo humano é concebido como ‘templo vivo
do Espírito Santo’, da mesma forma que o universo revela-se como corpo e templo
de Deus.
Mais importante ainda que a disciplina do corpo é a
disciplina da mente. Somos o que pensamos. Do modo de funcionamento da nossa
mente, depende como se desenrola a nossa vida. A mente é o melhor e o pior que
o homem possui: ou melhor, quando está controlada, quando foi afinada e
depurada; o pior, quando extravasa os seus devidos limites e se agita
desavergonhadamente, sem controlo nem freio algum. Há que submeter e purificar
a mente para que se torne flexível, transparente e permeável à influência do
espírito. Então funcionará de maneira correta, convertendo-se num espelho que
reflete a luz da Mente divina. Na realidade, o adestramento e fortalecimento do
corpo vão cooperar com este labor de catarse mental tal como expressa o velho
adágio latino mens sana in corpore sano.
21. Consciência da Presença Divina
Há que recordar sem cessar, ter viva na mente, como
uma prova da mais palpitante evidência, a ideia de que a Divindade se encontra
presente no centro do nosso ser e no mundo em que vivemos, em tudo quanto nos
rodeia. O Absoluto não é algo estranho e distante, mas uma realidade
omnipresente; presente no universo inteiro e no mais íntimo de nós mesmos.
Ter a consciência da Presença divina significa ser
consciente de que Deus é a própria raiz da nossa vida, que sem ele nada podemos
e que a Ele pertence tudo o que somos, o que temos e o que fazemos. Conservar
sempre vivo no nosso espírito a recordação de Deus e invocar a todo o instante
o seu Nome. Viver com a convicção de que o Ser supremos está mais cerca de nós que
nós mesmos e que a Força divina é o que atua em, por e através de nós. Ver Deus
em todas as coisas e todas as coisas em Deus. Sentir a Divindade em todas as
partes e em todo o momento; pois não há nada que se encontre fora do Espírito,
não sendo a existência senão a manifestação da Realidade absoluta, a expressão
da Verdade última (a Deidade, o Tao,
o Brahman, la Budeidade ou a
Natureza-Buddha, segunda a designação
que recebe o Princípio supremo nas diversas tradições).