Monday, October 30, 2017

A Cidade Antiga - O Fogo Sagrado



Em baixo deixamos a tradução do terceiro capítulo da obra ‘A Cidade Antiga’, de Fustel de Coulanges, intitulado, ‘O Fogo Sagrado’.

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Na casa de cada grego e romano encontrava-se instalado um altar; neste alter existia sempre uma pequena quantidade de cinzas e uns poucos carvões. Era uma obrigação sagrada para o mestre de todas as casas a de manter o foco aceso noite e dia. Desgraça caía na casa em que o fogo se extinguisse. Todas as noites eles cobriam os carvões com as cinzas para prevenir que estes fossem inteiramente consumidos. De manhã, o primeiro cuidado era o de reavivar o fogo com alguns ramos. O fogo só deixava de brilhar no altar quando a família inteira tivesse desaparecido; uma terra extinguida, uma família extinguida, eram expressões sinónimas entre os antigos.

É evidente que este uso de manter o fogo constantemente no altar estava relacionado com uma crença antiga. As regras e os ritos que eles observavam em relação a isto mostram que não era um costume insignificante. Não era permitido alimentar o fogo com qualquer tipo de madeira; a religião distinguia entre as árvores que podiam ser empregues para este uso daquelas com as quais era impiedade fazer uso delas.

Era também um preceito religioso que o fogo se mantivesse sempre puro, o que significava, literalmente, que nenhum objeto sujo fosse colocado sobre ele e, metaforicamente, que nenhum ato condenável fosse praticado na sua presença. Existia um dia no ano – entre os romanos era o primeiro de Março – quando era o dever de cada família o de apagar o fogo sagrado e imediatamente acender outro. Mas para reacender este novo fogo, certos ritos tinham de ser escrupulosamente observados. Especialmente deviam evitar usar pedra e ferro para este propósito. Os únicos processos permitidos eram os de concentrar os raios solares num foco ou de esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinado tipo. Estas diferentes regras provam suficientemente que, na opinião dos antigos, não era uma questão de procurar um elemento útil ou agradável; estes homens viam algo diferente no fogo que era queimado nos seus altares.

Este fogo era algo divino; eles adoravam-no, e ofereciam-lhe um culto real. Faziam-lhe oferendas de quaisquer coisas que julgavam ser agradáveis a um deus – flores, frutas, incenso, vinho e vítimas. Acreditavam que tinham poder e pediam-lhe a sua proteção. Dirigiam preces ferventes a ele, para obter aqueles objetos eternos do desejo humano – saúde, riqueza e felicidade. Uma destas preces, que foi preservada na coleção dos Hinos Órficos, seguia assim: “Torna-nos para sempre prósperos, sempre felizes, Ò Fogo; Vós que sois eterno, belo, sempre jovem; Vós que alimentais, Vós que sois rico, recebais favoravelmente estas nossas oferendas e de volta dai-nos felicidade e doce saúde.”

Então eles viam no fogo um deus beneficente, que mantinha a vida do homem, um deus rico, que o nutria com prendas; um deus poderoso, que protegia a sua casa e família. Na presença de perigo eles deviam procurar refúgio perto deste fogo. Quando o palácio de Priam é destruído, Hécuba traz o velho homem para junto da terra. “As vossas armas não podem proteger”, diz ela; “mas este altar a todos protegerá.”

Veja-se Alceste, que está prestes a morrer, dando a sua vida para salvar o seu marido. Ela aproxima-se do fogo e invoca-o nestes termos: “Ò divindade, ama desta casa, pela última vez me prostro diante de Vós, e dirijo as minhas preces, pois vou descender para o seio dos mortos. Cuidai dos meus filhos, que não terão mãe; dai ao meu filho uma mulher afetuosa, e à minha rapariga, um nobre marido. Não os deixais, como a mim, morrer antes do tempo; mas deixai-os aproveitar uma longa vida no seio da felicidade. ”

Na desfortuna o homem recorreu ao fogo sagrado e a ele lançou censuras; na boa fortuna devolveu-lhe graças. O soldado que retornava da guerra agradecia-lhe por lhe ter permitido escapar aos perigos. Ésquilo descreve Agamemmon a regressar de Troia, feliz, coberto de glória. O seu primeiro ato não é de agradecer a Júpiter; ele não se desloca ao templo para descarregar a sua alegria e gratidão, mas faz um sacrifício de boas-graças ao fogo na sua própria casa. Um homem nunca saía da sua habitação sem endereçar uma prece ao fogo; no seu retorno, antes de ver a sua mulher e abraçar os seus filhos, ele deve prostra-se diante do fogo, e invoca-o.

O fogo sagrado era a Providência da família. O culto era muito simples. A primeira regra era que deviam sempre existir uns poucos carvões vivos no altar; pois se o fogo se extingue um deus deixa de existir. Em certos momentos do dia eles colocavam sobre o fogo ervas secas e madeira; então o deus manifestava-se numa chama brilhante. Eles ofereciam-lhe sacrifícios; e a essência de todo o sacrifício era o de suster e reanimar o fogo sagrado; alimentar e desenvolver o corpo do deus. Esta era a razão por que lhe davam madeira antes de qualquer outra coisa; pela mesma razão depois deitavam vinho sobre o altar – o inflamável vinho da Grécia – óleo, incenso e a gordura das vítimas. O deus recebia estas oferendas e devorava-as; radiante com satisfação, ele levantava-se acima do altar e iluminava o adorador com a sua luminosidade. Então era o momento de invocá-lo; e o hino da oração saía do coração do homem.

Especificamente eram as refeições familiares atos religiosos. O deus aí presidia. Ele tinha cozinhado o pão e preparado a comida; a oração, portanto, era devida no início e no final do repasto. Antes de comer, eles colocavam sobre o altar os primeiros frutos da comida; antes de beber, eles deitavam uma libação de vinho. Esta era a porção do deus. Ninguém duvidava que ele se encontrava presente, que ele comia e bebia; pois não viam eles que a chama aumentava como se tivesse sido alimentada pelas provisões oferecidas? Portanto a refeição estava dividida entre o homem e o deus. Era uma cerimónia sagrada, pela qual eles estabeleciam comunhão um com o outro. Esta é uma crença antiga, a qual no decurso do tempo, desapareceu das mentes dos homens, mas que deixou atrás, durante muitas eras, ritos, usos e formas de linguagem das quais até os incrédulos não se conseguiam libertar. Horácio, Ovídio e Petrónio ainda ceavam diante dos seus fogos, providenciavam libações e dirigiam-lhes preces.

Este culto do fogo sagrado não pertenceu exclusivamente às populações da Grécia e Itália. Encontramo-lo no Oriente. As Leis de Manu, como chegaram até nós, mostram-nos a religião de Brahma completamente estabelecida, e inclusive no início do seu declínio; mas eles preservaram vestígios e relíquias de uma religião ainda mais ancestral – a do fogo sagrado – a qual a adoração de Brahma tinha reduzia a um patamar secundário, mas que não a conseguiu destruir. O brahmin tem de manter o seu fogo dia e noite; todas as manhãs e todas as noites ele alimenta-o com madeira; mas, como com os gregos, esta deve ser madeira proveniente de certas árvores. Como os gregos e os italianos lhe oferecem vinho, o hindu despeja sobre ele um licor fermentado, ao qual chama de soma. As refeições, também, são atos religiosos, e os ritos estão escrupulosamente descritos nas Leis de Manu. Eles dirigem preces ao fogo, como na Grécia; oferecem-lhe os primeiros frutos do arroz, manteiga e mel. Lemos que “o brahmin não devia comer arroz da nova colheita sem ter oferecido os seus primeiros frutos ao fogo sagrado; pois o fogo sagrado é sedento de sementes, e quando não é honrado, devorará a existência do brahmin negligente.” Os hindus, como os gregos e os romanos, concebiam os deuses como insaciáveis não só de honras e respeito, mas de comida e bebida. O homem acreditava-se compelido a satisfazer a sua fome e sede, se desejava evitar a sua fúria.

Entre os hindus a divindade do fogo é chamado Agni. O Rigveda contém um grande número de hinos dirigidos a este deus. Num é dito, “Ò Agni, vós sois vida, vós sois protetor do homem… Como recompensa dos nossos louvores, concede ao pai de família que implora pela vossa glória e riquezas… Agni, vós sois um prudente defensor e um pai; a vós devemos a vida; nós somos a vossa família. ” Portanto o fogo desta terra é, como na Grécia, um poder tutelar. O homem pede pela sua abundância: “Fazei a terra mais pródiga para nós.” Ele pediu-lhe saúde: “Garanti que eu desfrute de uma longa vida, e que eu possa chegar a uma idade avançada, como o sol poente.” Ele inclusive roga-lhe sabedoria: “Ò Agni, vós que colocais sobre o bom trilho o homem que vagueou pelo caminho ímpio… Se tivermos cometido uma falta, se fomos para longe de Ti, perdoai-nos.” Este fogo da terra era, como na Grécia, essencialmente puro: o brahmin estava proibido de atirar-lhe algo sujo, ou inclusive de aquecer os seus pés nele. Como na Grécia, o homem culpado não podia aproximar-se da sua terra antes de se ter purificado.

É uma forte prova da antiguidade desta crença, e daquelas práticas, encontrá-las ao mesmo período dos homens das margens do Mediterrâneo a e daqueles da Península da Índia. Seguramente os gregos não tomaram esta religião emprestada dos hindus, nem os hindus dos gregos. Mas os gregos, os italianos e os hindus pertenciam à mesma raça; os seus antepassados, num passado muito distante, viveram juntos na Ásia Central. Ali desde cedo originaram e estes ritos foram estabelecidos. A religião do fogo sagrado data, portanto, da distante e obscura época onde ainda não existiam gregos, italianos ou hindus; onde só existiam arianos. Quando as tribos se separaram, eles levaram este culto com elas, algumas para as margens do Ganges, outras para as costas do Mediterrâneo. Mais tarde, quando estas tribos não tinham interação umas com as outras, algumas adoravam Brahma, outras Zeus, outras ainda Jano; cada grupo escolheu os seus próprios deuses; mas todas preservaram, como um legado antiquíssimo, a primeira religião que tinham conhecido e praticado no berço comum da sua raça.

Se da existência deste culto entre todas as nações indo-europeias não foi suficientemente demonstrada a sua elevada antiguidade, podemos encontrar outras provas da mesma nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos. Em todos os sacrifícios, até naqueles oferecidos a Zeus ou a Atena, a primeira invocação era sempre dirigida ao fogo. Toda a oração para qualquer deus devia iniciar e finalizar com uma prece ao fogo. Em Olímpia, o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia foi para a terra-fogo, o segundo era para Zeus. Então, também, em Roma, a primeira adoração era sempre dirigida a Vesta, que era não outra que a divindade do fogo. Ovídio diz desta deusa que ela ocupava o primeiro lugar nas práticas religiosas dos homens. Também lemos nos hinos do Rigveda, “Agni tem de ser invocado antes de todos os outros deuses. Devemos pronunciar o seu venerável nome antes de todos os outros imortais. Ò Agni, qualquer outro deus que honremos com o nosso sacrifício, o holocausto é sempre a Vós oferecido.” É certo, portanto, que em Roma no tempo de Ovídio, e na Índia no tempo dos brahmins, o fogo sagrado tomava precedência sobre todos os outros deuses; não que Júpiter e Brahma não tivessem adquirido uma maior importância na religião dos homens, mas era relembrado que o fogo sagrado era muito mais antigo que esses deuses. Por muitos séculos ele tinha mantido o primeiro lugar no culto religioso e os novos e maiores deuses não o puderam destronar.

Os símbolos desta religião modificaram-se ao longo dos tempos. Quando os povos da Grécia e de Itália começaram a representar os seus deuses por pessoas, e a dar a cada um nome próprio e uma forma humana, o antigo culto do fogo sagrado submeteu-se à lei comum que a inteligência humana, nesse período, impôs a todas as religiões. O altar do fogo sagrado tornou-se personificado. Chamavam-no de estía, Vesta; o nome era o mesmo em latim e em grego, e era o mesmo que na linguagem comum e primitiva designava um altar. Por processo muito frequente, um nome comum tornou-se um nome próprio. Aos poucos surgiu uma lenda. Representou-se esta divindade sob uma forma feminina, porque a palavra usada para altar era do género feminino. Eles foram ao ponto de representar esta deusa em estátuas. Não conseguiram no entanto obscurecer a crença primitiva, de acordo com a qual esta divindade era simplesmente o fogo sobre o altar; e o próprio Ovídio foi forçado a admitir que Vesta não mais era que uma “chama viva.”

Se compararmos este culto do fogo sagrado com o culto dos mortos, do qual já falámos, percebemos uma relação próxima entre eles.

Note-se, em primeiro lugar, que este fogo, que se mantinha a arder na lareira, não era, nos pensamentos dos homens, o fogo da natureza material. O que eles viam não era o elemento puramente físico que aquece e queima, que transforma os corpos, derrete metais e torna-se o poderoso instrumento da indústria humana. O fogo do coração é de uma natureza muito diferente. É um fogo puro, que só pode ser produzido com a ajuda de certos ritos, e que só pode ser mantido com certos tipos de madeira. É um fogo casto, do qual a união dos sexos deve ser removida para muito longe da sua presença. Eles rezam a ele não apenas para riquezas e saúde, mas também com vista à pureza de coração, temperança e sabedoria. “Tornai-nos ricos e prósperos,” diz um hino Órfico; “tornai-nos também sábios e castos”. Então o fogo sagrado é uma espécie de ser moral; ele brilha, e aquece, e prepara a comida sagrada; mas ao mesmo tempo ele pensa, e tem uma consciência; ele conhece os deveres humanos, e vê se eles foram cumpridos. Um poderá chamá-lo de humano, porque tem a dupla natureza de homem; fisicamente, brilha, move-se, vive, busca abundância, prepara o repasto, alimenta o corpo; moralmente, tem sentimentos e afetos, dá pureza ao homem, ordena o belo e o bom, alimenta a alma. Pode-se dizer que suporta a vida humana na dupla série das suas manifestações. É ao mesmo tempo fonte de riqueza, de saúde, de virtude. É verdadeiramente o deus da natureza humana. Mais tarde, quando este culto tinha sido relegado para segundo lugar por Brahma e por Zeus, ainda se manteve no fogo sagrado o que de divino era mais acessível ao homem. Tornou-se o seu mediador com os deuses de natureza física, encarregou-se de levar ao céu a oração e a oferenda do homem, e de trazer de volta os favores divinos. Ainda mais tarde, quando fizeram o grande Vesta deste mito do fogo sagrado, Vesta tornou-se a deusa virgem. Ela não representava no mundo a fecundidade ou o poder; ela era ordem, mas não a ordem rigorosa, abstrata, ordem matemática, a lei imperiosa e imutável, que logo se descobre na natureza física. Ela era ordem moral. Eles imaginavam-na como uma espécie de alma universal, que regulava os diversos movimentos dos mundos, como a alma humana mantém ordem no sistema humano.

Então somos permitidos a olhar para o modo de pensar das gerações primitivas. O princípio deste culto situa-se fora da natureza física, e encontra-se neste pequeno mundo misterioso, o microcosmo – o homem.

Isto traz-nos de volta ao culto dos mortos. Ambos são da mesma antiguidade. Eles encontravam-se tão estreitamente próximos que a crença dos antigos fez disso uma religião. Fogos, demónios, heróis, Lares, todos se confundiam num. Observamos de duas passagens de Plauto e de Columela que, na linguagem comum, eles dizem, indiferentemente, fogo ou lar doméstico; e também sabemos que, no tempo de Cícero, não distinguiam entre o fogo e penates, e vice-versa. Em Sérvio lê-mos, “Pelo fogo os antigos entendiam o Lares”, e Virgílio escrevia, indiferentemente, fogo e Penates. Numa famosa passagem da Eneia, Heitor diz a Eneias que lhe vai confiar os penates de Troia, e é o fogo sagrado que é confiado ao seu cuidado. Noutra passagem, Eneias invoca estes mesmos deuses, chamando-os ao mesmo tempo Penates, Lares e Vesta.

Já vimos que aqueles cujos antigos chamavam Lares, ou heróis, eram não outros que as almas dos mortos, aos quais os homens atribuíam um poder super-humano e divino. A reminiscência de um destes mortos sagrados estava sempre ligada ao fogo sagrado. Ao adorar um, os adoradores não podiam esquecer o outro. Eles estavam associados no respeito pelos homens, e nas suas preces. Os descendentes quando falavam do fogo sagrado, falavam constantemente do nome do antepassado: “Deixa este lugar,” diz Orestes à sua irmã, “e avança em direção ao fogo antigo de Pélops, para escutar as minhas palavras.” Do mesmo modo, Eneias, falando do fogo sagrado que o transporta através das águas, designa-o pelo nome do Lar de Assáraco, como se visse neste fogo a alma do seu antepassado.

O gramático Sérvio, que era muito lembrado em antiguidades gregas e romanas - as quais eram muito mais estudadas nessa altura do que no tempo de Cícero - diz que era um uso muito antigo enterrar os mortos nas casas, e acrescenta: “Como resultado deste uso, eles honram os Lares e os Penates em suas casas.” Esta frase claramente estabelece uma antiga relação entre a adoração dos mortos e o fogo sagrado. Podemos supor que o fogo doméstico era de início apenas um símbolo do culto dos mortos; que sob a pedra da lareira repousava um antepassado; que o fogo era acendido aí para o honrar, e que o fogo parecia preservar a vida nele, ou que representava a sua alma como sempre vigilante.

Esta é meramente uma conjetura e não possuímos prova dela. No entanto, é certo que as mais antigas gerações das quais os gregos e os romanos brotaram não figuravam os seus deuses com forma física, mas no próprio homem, e tal tinha como objeto a adoração do ser invisível que se encontra em nós, o poder moral e pensante que emana e governa os nossos corpos.


Esta religião, depois de certo tempo, começou a poder o seu poder sobre a alma; tornou-se enfraquecida gradualmente, mas sem desaparecer. Contemporaneamente às primeiras idades da raça ariana, tornou-se tão profundamente enraizada nas mentes desta raça que o brilhante religião do Olimpo grego não a pode extirpar, só o conseguindo o Cristianismo.

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