Thursday, November 16, 2017

A Sacralidade da Guerra




Continuando a série de artigos de Julius Evola, na revista Diorama, sobre o significado sobrenatural da batalha e da via divina do guerreiro, deixamos em baixo a segunda tradução da mesma, intitulada ‘A Sacralidade da Guerra’, onde são exploradas antigas conceções das mesmas, nomeadamente da Antiguidade Clássica, Nórdica e Iraniano-Persa.

Sem demoras, passemos a palavra ao Mestre.


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No nosso artigo prévio vimos que o fenómeno do heroísmo guerreiro tem várias modalidades que podem conter significados fundamentalmente diferentes, como visto do ponto de vista de uma conceção intencionada a estabelecer os valores da verdadeira espiritualidade.

Resumindo o nosso argumento deste ponto de vista, devemos começar por indicar algumas conceções relativas às nossas antigas tradições, as tradições Romanas. Geralmente possui-se apenas a ideia secular dos valores da antiga Roma. De acordo com esta ideia, o romano era meramente um soldado, no sentido mais limitado da palavra, e era por intermédio das suas qualidades guerreiras, junto a uma feliz combinação de circunstâncias, que ele conquistou o mundo. Esta é uma opinião falsa.

Em primeiro lugar, até ao fim do Império, os romanos consideraram um artigo de fé que as forças divinas tanto criaram como protegeram a grandeza de Roma – o Imperium e a Aeternitas. Aqueles que se querem limitar ao ponto de vista ‘positivo’ estão obrigados a substituir esta perceção, profundamente sentida pelos romanos, por um mistério; o mistério, isto é, de que um punhado de homens, sem quaisquer razões fundamentais, sem sequer ideias de uma ‘terra’ ou de ‘pátria’, e sem quaisquer dos mitos ou paixões aos quais os modernos tão voluntariamente deitam mão para justificar a guerra e promover o heroísmo, avançaram continuamente, mais e mais longe, de um país para o próximo, seguindo um estranho e irresistível impulso, baseando tudo numa ‘ascese de poder’. De acordo com o testemunho unânime de todos os autores Clássicos, os primeiros romanos eram altamente religiosos – nostri maiores religiossimi mortalhes, Sallust relembra – e Cícero e Aulo Gélio repetem este ponto de vista – mas esta sua religiosidade não estava confinada a uma esfera abstrata e isolada, mas permeava a sua experiência na sua totalidade, incluindo nela própria o mundo da ação, e portanto também o mundo da experiência guerreira.

Um especial colégio sagrado de Roma, o Fecial, presidia sobre um bem definido sistema de ritos que proporcionavam a contraparte mística a todas as guerras, desde a sua declaração até à sua conclusão. Mais genericamente, é incontrovertido que um dos princípios da arte militar dos romanos requeria deles que não se permitissem entrar em batalha antes de certos sinais místicos terem definido, por assim dizer, o seu ‘momento’. Por causa das distorções mentais e dos preconceitos resultantes da educação moderna, a maior parte das pessoas de hoje estaria naturalmente inclinada para ver nisto uma superestrutura extrínseca, supersticiosa. Os mais benevolentes poderão ver nela um fatalismo excêntrico, mas de facto não é nenhum destes conceções. Como outras disciplinas similares, a essência da arte augural praticada pelo patriciado romano, aproximadamente com as mesmas características facilmente encontráveis no ciclo das grandes civilizações Indo-Europeias, não era a descoberta do ‘fates’, que seria então seguido com passividade supersticiosa: antes, era o conhecimento dos pontos de juntura com influências invisíveis, o uso nas quais as forças dos homens podiam-se desenvolver, multiplicar e serem guiadas para atuarem num plano mais elevado, em adição ao do dia-a-dia, levando então – quando a harmonia era aperfeiçoada – à remoção de todos os obstáculos e de todas as resistências dentro do evento-complexo que era ao mesmo tempo material e espiritual. À luz deste conhecimento, não pode ser duvidado de que os valores romanos, a romana ‘ascese de poder’, possuía necessariamente um aspeto espiritual e sacral, e que eram consideradas não apenas como um meio para a grandiosidade militar e temporal, mas também como um meio de contacto e de ligação com forças sobrenaturais.

Se o fosse apropriado aqui fazer, poderíamos reproduzir vários materiais conformes a esta tese. No entanto, limitar-nos-emos a mencionar que a cerimónia do triunfo em Roma tinha um carácter que era muito mais religioso que militarístico no sentido secular, e que muitos elementos parecem demostrar que os romanos atribuíam a vitória dos seus líderes menos aos seus meros atributos humanos do que a uma força transcendente que se manifestava de modo real e efetivo através deles, do seu heroísmo e por vezes do seu sacrifício (como no rito do devotio, no qual os líderes se sacrificavam). O conquistador, na acima mencionada cerimónia do triunfo, vestia a insígnia do supremo Deus do Capitólio, como se fosse ele próprio uma imagem divina, e ia em procissão para colocar os láureos triunfais sobre as mãos deste Deus, como se o último fosse o verdadeiro conquistador.

Finalmente, uma das origens da apoteose triunfal, isto é, do sentimento que um númen imortal se encontrava escondido no Imperador, era indubitavelmente a experiência do guerreiro: o Imperador era originalmente o líder militar, aclamado no campo de batalha no momento da vitória: neste momento, ele aparecia transfigurado por uma força dos cimos, terrível e maravilhosa, que impunha precisamente a impressão do numen. Esta visão, permita-se-nos acrescentar, não é particular a Roma, mas encontra-se através de toda a antiguidade Mediterrânica Clássica, e não se restringia aos vencedores da guerra, mas por vezes também se aplicava aos vencedores dos Jogos Olímpicos e às sangrentas lutas do circus. Na Hélade o mito dos heróis emergiu com as doutrinas místicas, como o Orfismo, que significativamente unia o caráter do guerreiro vitorioso ao do iniciado, que conquistavam a morte, no mesmo simbolismo.

Estas são indicações precisas de um heroísmo e de um sistema de valores que se desenvolveram por diversas vias espirituais mais ou menos conscientes, caminhos santificados não apenas pela gloriosa conquista material que mediavam, mas também pelo facto de que representavam uma espécie de evocação ritual envolvendo a conquista do intangível.

Vamos considerar algumas das evidências desta tradição, a qual, pela sua própria natureza, é metafísica: elementos como a ‘raça’ não podem portanto possuir mais do que um lugar secundário e contingente. Dizemos isto porque, no nosso próximo artigo, pretendemos lidar com a ‘guerra santa’ praticada pelos guerreiros do ‘Sacro Império Romano-Germânico’. Essa civilização, como é bem sabido, representa um ponto de convergência criativa entre vários componentes: Romano, Cristão e Nórdico.

Já discutimos as características relevantes do primeiro destes componentes (isto é, o Romano). O componente Cristão aparecerá com as características de um heroísmo cavaleiresco, supra-nacional, nas Cruzadas. O componente Nórdico falta ser indicado. Para evitar alarmar os nossos leitores desnecessariamente, afirmamos à partida que o que agora referimos tem, essencialmente, um caráter supra-racial, e não é portanto calculado para encorajar a tomada de posição de quaisquer povos autointitulados de ‘especiais’ contra outros. Para nos limitarmos a uma pista do que aqui queremos excluir, diremos que, surpreendente que possa parecer, no revivalismo nórdico mais ou menos frenético que hoje é celebrado, ad usum delphini, pela Alemanha Nacional Socialista, encontramos maioritariamente uma deformação e uma vulgarização das tradições nórdicas que existiram originariamente e como ainda podiam ser encontradas naqueles príncipes que consideravam ser uma grande honra poderem dizer de si mesmos que eram Romanos, apesar de partilharam a raça teutónica. Em vez, para muitos escritores racialistas de hoje, ‘nórdico’ veio a significar anti-romano e ‘romano’ veio a significar, mais ou menos, ‘judeu’.

Tendo dito isso, pensamos ser apropriado reproduzir esta significativa fórmula de exortação do guerreiro como encontrada na antiga tradição Celta: ‘Luta pela tua terra e aceita a morte se assim for necessário, já que a morte é a vitória e a libertação da alma’.

A expressão mors triumphalis na nossa tradição Clássica corresponde a este conceito. Relativamente à própria tradição Nórdica, é bem conhecido de todos o aspeto que se relaciona com o Valhalla, o lugar da imortalidade celestial, reservada à divina estirpe ‘livre’ e aos heróis caídos no campo de batalha (‘Valhalla’ significa literalmente ‘do palácio dos escolhidos’). O Senhor deste lugar simbólico, Ódin ou Wotan, aparece no Ynglingasaga como o que, pelo seu auto-sacrifício simbólico na ‘Árvore do Mundo’, mostrou aos heróis como chegar à estadia divina, onde eles habitam eternamente num pico luminoso, que se mantém sob a perpétua luz solar, acima de qualquer nuvem. De acordo com esta tradição, nenhum sacrifício ou forma de oração era mais apreciada pelo Deus supremo, e rica em frutos supra-mundanos, que aquela realizada pelo guerreiro que luta e cai no campo de batalha. Mas isto não é tudo. Os espíritos dos heróis caídos juntam as suas forças à falange daqueles que assistem os ‘heróis celestiais’ que combatem no Ragnarökk, isto é dizer, o destino do ‘escurecimento do divino’, que, de acordo com esses ensinamentos, e também de acordo com os Helenos (Hesíodo), tem ameaçado o mundo desde tempos imemoriais.

Veremos este motivo a reaparecer, sob diversas formas, nas lendas medievais que se relacionam com a ‘última batalha’ que o imperador imortal lutará. Aqui, para ilustrar a universalidade destes elementos, apontaremos a similitude entre estas conceções nórdicas (as quais, diga-se de passagem, Wagner tornou irreconhecíveis por meio do seu preguiçoso e bombástico romanticismo teutónico característico) e as antigas conceções iranianas e mais tarde persas. Muitos ficam espantados ao ouvir que as bem conhecidas Valquírias, que escolhem as almas dos guerreiros destinados ao Valhalla, são apenas a personificação transcendental de partes dos próprios guerreiros, partes que encontram o seu equivalente exato nas Fravashi, das quais as tradições iraniano-persas falam – as Fravashi, também representadas como mulheres de luz e virgens retumbantes de batalha, que personificam mais ou menos as forças sobrenaturais pelo meio das quais as naturezas humanas dos guerreiros ‘fieis ao Deus da Luz’ se transfiguram e trazem vitórias terríveis, esmagadoras e sangrentas. A tradição iraniana também inclui a conceção simbólica de uma figura divina – Mitra, descrita como o ‘guerreiro que nunca dorme’ – que, à cabeça dos seus fiéis Fravashi, luta contra os emissários do negro deus até ao retorno do Saoshyant, Senhor de um futuro reino de paz ‘triunfante’.

Estes elementos da antiga tradição Indo-Europeia, na qual são recorrentes os motivos da sacralidade da guerra e do herói que não morre realmente mas que se torna parte de um exército místico numa batalha cósmica, tiveram um efeito percetível em vários elementos do Cristianismo – pelo menos naquele Cristianismo que podia realisticamente adotar a divisa: visa est militia super terram, e reconhecer não apenas a salvação através da humildade, caridade, esperança e o resto, mas também – ao incluir o elemento heroico do nosso caso – de que ‘o Reino do Céu pode ser tomado pela força’. É precisamente esta convergência de motivos que dá nascimento à conceção espiritual da ‘Grande Guerra’ peculiar à idade medieval, que discutiremos no nosso próximo artigo na ‘Diorama’, onde lidaremos mais de perto com o aspeto interior, individual, mas não menos pertinente destes ensinamentos.


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