Tuesday, July 11, 2017

A Ditadura do Trabalho:

Recentemente, por razões pessoais, tenho gozado de um período de pausa com termo indefinido nas minhas tarefas profissionais.

Apesar de esta paragem ser voluntária, contra a expectativa inicial de iniciar um período de maior contemplação e de distância do remoinho diário da rotina profissional sobre o qual a minha vida se centrava, tenho-me visto amiúde assaltado por estados de ansiedade e de depressão quanto ao meu futuro, modo de sustentação financeiro e preocupações relacionadas com a perceção deste estado junto de família, amigos e antigos colegas profissionais.

A observação destes estados emocionais e a troca de impressões com outras pessoas relativa à minha situação atual, promoveu reflexões mais profundas sobre a natureza do trabalho vigente no chamado Mundo Ocidental.


 Sendo este um tema vastíssimo, limitar-me-ei em baixo em condensar algumas observações, sem quaisquer pretensões“ científicas” ou académicas:

1.    O Trabalho como sentido de vida:
Os Antigos consideravam o trabalho, no pior dos casos, indigno e vulgar, algo a ser arcado pelas classes mais baixas, algo que denigre o Homem; no melhor dos casos, um fardo inevitável que terá de ser suportado mas minimizado o mais possível, fruto da queda do Paraíso original e parte da eterna condenação a que o Homem está sujeito. Em ambos os casos, o trabalho é visto como algo acessório, cujo exercício de modo algum pode preencher o ser humano de forma completa, sendo visto como empecilho às realizações que o Homem verdadeiramente livre estaria destinado nesta etapa terrestre.


Com o advento da modernidade, esta visão é totalmente rechaçada e o oposto é visto como dogma nas sociedades encubados no ideário da Revolução Francesa: o trabalho é visto, no mínimo, como um direito e dever cívico de todos (capitalismo, social-democracia); em versões musculadas do ideal democrático com tendências messiânicas, como um dever cuja falha implicaria traição ao respetivo ideário e acarretaria as mais nefastas consequências (consulte-se as leis laborais da URSS ou de qualquer regime de tendências comunistas do séc. XX).

Se a frase “o trabalho liberta” está ligada ao regime nazi, bem poderia ser confundido pelo slogan de qualquer outro sistema político moderno, incluído, claro está, o atual sistema democrático, tanto nas suas vertentes liberal e socializante, cujos tentáculos se apropriam a passos cada vez mais acelarados da totalidade da raça humana.

Liberto o Homem dos chamados dogmas religiosos, modos de organização e outros costumes de antanho, vistos como atávicos (que, na verdade, já eram então cada vez menos compreendidos e credores de defesa convicta), a sociedade organizou-se desde então tendencialmente com fins puramente utilitários e pragmáticos, estando agora apetrechada para fornecer ao maior número de homens possível o novo paraíso neste pedaço de terra do sistema solar.



Infelizmente, se no regime moderno os direitos de alguns se democratizaram de forma massiva (acesso ao voto, propriedade, liberdade, etc.), o mesmo se passou com os deveres para com a sociedade. Destes, haverá algum que se possa ter universalizado tanto como o trabalho?
Não é de admirar que numa sociedade totalmente democratizada e cujos valores da maioria são os que predominam, o dever que é mais comum - tanto no sentido quantitativo como qualitativo - é aquele próprio do que definia a classe escrava – o Trabalho. Não olharão os Antigos de cima para o mundo atual com ironia e gozo ao ver as consequências das boas intenções humanas?
E não se pense que ao mencionar-se trabalho me refiro apenas ao labor manual: o trabalho aqui engloba todas as atividades manuais e mentais que têm a matéria física e psíquica como objeto, englobando tanto o administrador público que regista um ato governativo, o empresário que discute preços e fecha negócios, o químico que analisa e regista os dados observados num laboratório privado, o soldado que termina a sua comissão numa missão de paz no Médio Oriente, ao professor universitário que disserta a sua tese relativa à dinâmica dos buracos negros no sistema solar, atá ao político que realiza um comício público em vésperas de eleição.
Se há algo que é transversal à modernidade é a captação progressiva de toda a atividade humana pelo trabalho (cada vez mais assalariado), havendo menos e menos redutos de ação humana verdadeiramente independentemente, onde o Homem exerce a sua ação de forma soberana e independente, constituindo um centro em si mesmo.
Se na Antiguidade tal era o apanágio da função Real e subsidiariamente das classes guerreiras e religiosas, hoje é fácil notar o quão invertida a equação se encontra ao constatarmos que o próprio representante máximo de uma qualquer república ocidentalizada é um assalariado do próprio Estado (o mesmo razoamento se aplicará às monarquias fantoche europeias).


Se na antiguidade havia centros de independência e sociedades humanas e familiares constituídas por homens verdadeiramente livres dentro de uma organização política, há de se notar que, nos dias que correm, o que dantes era uma elite se converteu hoje numa exceção, ou, melhor ainda, um resquício do passado cujo progresso histórico de libertação do homem se encarregará de retificar, segundo nos asseguram as mentes mais progressistas.

Hoje, a realidade é infelizmente outra. Um ser humano que recebe um salário ou cuja condição depende da produção material, nunca foi nem nunca será verdadeiramente livre, se tivermos em conta uma definição de homem cujas possibilidades não se esgotam na produção de matéria ou num mero centro de consumo.


Notámos tal em todos os estratos profissionais e socioeconómicos, inclusive nos grandes chefes de empresas, alguns com fortunas bilionárias, como são por exemplo os grandes diretivos e titãs de Wall Street – acontece que a única verdadeira diferença que têm para com o canalizador da mesma empresa é somente a quantidade e o modo de pagamento do salário, já que aqueles reportam também aos donos da empresa, mais concretamente, diretamente a um conselho de administração.





Pensar-se-ia que uma exceção se poderia fazer quanto aos donos dos meios de produção e do capital. É de notar que estes, mesmo quando não tenham iniciado as suas carreiras como simples assalariados, partilham do mesmo “ethos” do trabalhador comum. O seu papel de empresários (negociantes) é levado a cabo à exaustão e preenche a vida destes homens muito mais que a vida do cidadão médio no papel de trabalhador assalariado, tanto na intensidade da função, como no número de horas dedicados à mesma.

Não é de estranhar que estes homens, hipnotizados pelo lucro, devotem, com raras exceções, a maioria do seu tempo e energia a aumentar as suas fortunas e stocks, sem qualquer intenção de gastar o mesmo numa vida de retiro e despreocupações. Pelo que muitas vezes, a perda da sua riqueza ou parte dela é seguida de tentativas furiosas de recuperá-la e superar os patamares anteriores, uma atitude não sem semelhanças ao jogador compulsivo que arrisca as últimas fichas numa derradeira aposta de casino.

As razões deste acumular desmedido de riqueza que nunca se conseguirá gastar ou da natureza compulsiva de fazer o “último grande negócio” nunca são verdadeiramente explicadas por estes, já que dar uma razão de fundo implicaria expor o carácter patológico destas atividades, reveladores, na verdade, de um espírito limitado por compulsões sub-racionais.


Por certo estes homens estão infinitamente mais próximos em termos de mentalidade e atitude do varredor de lixo que mal garante sustento para si e para os seus ou de um mendigo de rua, que da atividade contemplativa do eremita Tibetano que habita sem sustento uma gruta de montanha ou do samurai japonês que rege a sua via por um estrito código de ética e honra.



Interessante notar que na sua autobiografia, o atual presidente americano se gabava de dormir apenas 5 horas diárias e que fazer negócios preenchia até à sua eleição o restante das demais horas diárias e que, inclusive, nunca tirava férias ou tinha tempo para ver a mulher e filhos. Admitia ainda que todas as suas relações sociais ou de amizade eram motivadas por presentes ou futuras oportunidades de negócio.

Que este homem seja a quinta-essência do tão propagado “sonho americano”, é tudo menos motivo de admiração. Haverá assim tanta diferença entre a atitude ética de um Donald J. Trump com a do antigo trabalhador modelo na URSS que devotava todas as suas atividades fabris e familiares à causa comunista?

As mesmas considerações podem, grosso modo, ser estendidas a todas as camadas sociais modernas.

Relativamente ao atual cidadão médio, o seu trabalho, para além da componente patológica, representa acima de tudo um meio para atingir um nível de sustento que lhe garanta, pelo menos, a manutenção do agregado familiar (cada vez mais reduzido) no corrente estrato socioeconómico.


Com a crescente falta de referências culturais próprias da comunidade, aliada à concomitante erosão de certos constrangimentos religiosos que timidamente ainda se vão mantendo, este ser quase puramente económico só tem como referentes de comparação a situação económica da sua família de origem com o mundo que o rodeia (seja na sua comunidade mais alargada, seja cada vez mais com os estilos de vida divulgados pelos mass media digitais que consome). 


Como o material é tanto ponto de partida, veículo e destino deste homem cada vez mais desenraizado, a sua escolha de trabalho vai depender menos da sua vocação do que da função que melhor granjeie as suas ambições socioeconómicas (mais sobre as vocações abaixo).

O caminho mais seguro será o de assegurar o mais bem pago trabalho assalariado disponível, cuja componente de estabilidade irá também ter preponderância já que neste ser predomina a submissividade e a superficialidade que caracteriza o “homus urbanus”, que ambiciona acima de tudo poder frequentar os locais da moda, vestir para impressionar e decorar a casa com as últimas tecnologias. Para tal, o que representa o sacrifício da quase totalidade dos seus dias úteis de vida num trabalho em que passa a maior parte do tempo em frente ao ecrã a digitar dados no teclado, a estar presente em reuniões em que finge estar interessado e a mostrar serviço ao seu chefe direto, que discretamente despreza mas cuja boa relação é chave para garantir a próxima promoção?


Nada! Este trabalho é fundamental não só para sustento seu e da sua família, como, ainda mais importante, para a projeção do seu estatuto social junto da mesma, do círculo de amigos e daqueles grupos a que ambiciona pertencer. É o trabalho que lhe permite manter as aparências para adquirir o último modelo do carro da moda, o mais moderno sistema de tecnologia móvel que pode passear na rua, como lhe vai permitir atingir o estilo de vida que lhe foi impingido durante os consumos incessantes de publicidade de que é vítima nos anúncios ou séries de tv.



Ao contrário do grande empresário, o estilo de vida dele está intimamente ligado ao número de horas que passa no escritório que comparte com centenas de outros “colaboradores”, com quem mantém conversas de ocasião sobre o tempo e o último jogo de futebol.

Ele sabe que o seu estilo de vida está dependente da sua situação laboral mas, infelizmente, esta depende não só da sua produtividade individual, como da da empresa, da conjetura da indústria em que está inserido e também da economia em geral, sem esquecer dos humores e caprichos do seu superior hierárquico.


Ele acorda todos os dias para ir trabalhar com a noção que irá mais uma vez passar uma jornada a repetir atos de forma mecânica, num trabalho massificado em que a sua influência em termos concretos é muito limitada, vendo-se como uma peça no mecanismo que não controla. Quaisquer semelhanças entre ele e um operário fabril numa linha de montagem fordista serão pura coincidência! Obviamente não veste fato-macaco pois a farda nos dias de hoje consiste no fato e gravata…

2.       O Trabalho como fim da Educação:
Desde o berço, atravessando todo o ensino até à entrada no mundo profissional, a atividade profissional, é apresentada às futuras gerações adultas como o grande desiderato de vida, ao qual todas as outras atividades paralelas ou extracurriculares se devem subordinar.

Um emprego seguro e com grau de sucesso medido proporcionalmente à crescente contrapartida financeira é o pano de fundo que rege a educação de todas as crianças no mundo ocidental e ao qual são devotadas a maior parte das energias das classes educadoras.

A este altar são imoladas todas as energias dos jovens alunos que vêm nesta meta a chave para uma vida de sucesso, no torno da qual irão encontrar parceiro para a vida, constituir família e atingir os respetivos desejos (melhor dito – necessidades) materiais.


Os jovens que, por via de instintos menos adestrados, se mostram menos propensos a encaixar neste molde, são vistos com preocupação por pais e educadores, que irão tomar medidas preventivas e repressivas para corrigir os comportamentos delinquentes: desde chamar a atenção para a “preguiça” daqueles, até envolver a classe médica na diagnosticação do problema, o que envolve cada vez mais a prescrição ao menor de medicação conducente a aumentar os níveis de atenção e robotização do pequeno, tanto na sala de aula como nos períodos de convivência com colegas e família. 



Os sintomas do efeito totalitário que o trabalho exerce na vida escolar são vistos de forma cada vez mais aguda na competição selvagem que já existe nos estados escolares universitários e pré-universitários (últimas fases de seriação dos lugares de entrada mais apetecíveis do mundo de trabalho), e que já avançam rampantes adentro do ensino básico e primário, onde a menor variação da nota final - único critério, abstrato e quantitativo, admitido pela sociedade de massas para selecionar as vocações estudantis – pode decidir a entrada ou não no curso almejado e assim o futuro profissional do jovem aplicante. Será por acaso que o Japão - um dos países ocidentalizados e com um dos sistemas de educação mais exigentes, onde o culto do trabalho é fortíssimo - lidera as taxas de suicídio infantil e juvenil?


É reveladora a descoberta que a totalitarização do culto do trabalho no mundo profissional e escolar é acompanhada pelo proporcional decréscimo da verdadeira cultura vocacional, na qual a escolha e atribuição de determinada carreira a um jovem dependeriam de outros fatores que não só uma nota académica universalizada a toda a comunidade estudantil, mas outras considerações qualitativas, hoje tomadas cada vez mais como inadmissíveis e arcaicas, sejam estas, por exemplo, indicações de orientadores, tendências interiores do jovem, passado familiar, testes de aptidão não académicos, etc.).


A nova mundivisão é facilmente confirmada pela constatação que a esmagadora maioria dos jovens com melhores notas de acesso ao mercado universitário escolhem desproporcionadamente os cursos que lhe permitirão aceder às indústrias profissionais que, em cada País, oferecem o melhor rácio compensação financeira/segurança no acesso ao trabalho (exemplos: em Portugal, a maioria esmagadora de alunos com média escolar mais elevada escolhe o curso universitário de medicina, cujas vagas de emprego artificialmente baixas e ligadas a hospitais públicos, garantem salários exorbitantemente elevados para a realidade do País, aliado à segurança provida pelo carácter público da profissão; nos EUA, os melhores alunos escolhem universidades de negócios, que lhes darão vantagem em aceder aos melhores empregos em Wall Street ou Silicon Valley), demonstrando claramente que razões puramente utilitárias e financeiras permeiam as escolhas vocacionais. Já que se tem de trabalhar para o resto da vida, porque não fazê-lo ao melhor preço?


As consequências do pensamento acima descrito são contribuidoras para uma classe trabalhadora que se encontra presentemente totalmente desmoralizada e só raramente se sente preenchida pela sua atividade diária, que vê nela não mais que um modo de ganhar sustento (não é de estranhar todos os artifícios que os empregadores modernos têm de encontrar para manter os níveis de produtividade, sinal de que reconhecem que as motivações dos seus subordinados são totalmente temporárias e superficiais, as quais não correspondem de modo algum ao seu estado interior). 


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